Eis onde se pode encontrar o artigo http://www.gouvealemos.blogspot.pt/
PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE
(última parte)
O compadre Tomás apanhou-o na queda e meteu-lhe um ombro sob o
sovaco, puxou-lhe o braço à roda do pescoço e levou-o, de pernas bambas, pés a
arrastar, os dois aos bordos, numa solidariedade forçada. O compadre Tomás,
enfermeiro do Quadro de Saúde, ia a pensar na vida do João e perguntava-se a si
mesmo, se fazia bem ou mal em levá-lo a casa. Ao mesmo tempo ia reparando em
que a viagem, assim, era nervosa e cansativa. Quando chegaria ele, Tomás, à sua
casa? E pensava, Tomás, que entraria de serviço na manhã seguinte, bem cedo.
João resfolgava. Que idéia a tua João!
*
Por mim, minha
amiga cidade, vou apagar a luz na mesa de cabeceira. Cansado e tentado a não
ter esperança. Mas sei que acordarei com um sol doirado e quente, em céu escandalosamente
azul, a envolver-te completa, nos arrebiques e maselas, no riso e no choro, na
música e nos gritos, nas flores e nos charcos, nos prédios e nos barracos, no
amor e na briga de todos os contrastes, dando-se na mesma dádiva às trezentas e
cinqüenta mil pessoas de que és feita. E o sol, minha amiga, minha mais bela
cidade do mundo, o sol nasce agora às seis e trinta e seis. Nasce fatalmente!
FIM
.
domingo, 6 de junho de 2010
PARA
UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (05)
Também varam a noite outras mulheres, sem filhos no dorso. Sem
filhos no dorso, que atrapalhariam o “twiste” . Entram com a sua parte no
coquetel do grande “show” nocturno, misturando-se com as espanholas e as gregas
e as transvalianas, da cançoneta e do baile. São elas as encarregadas do “tic”
exótico. Como começaram, como vão acabar, oh! la, la! – isso é que interessa?
Para já, bebem e fumam, dançam e divertem.
*
Rápida corrida para os cinemas. Rápida corrida para casa. Um
atrasosinho para meio bife. Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer.
Lourenço Marques, a moderna capital da província portuguesa de Moçambique, é
uma cidade que cresce espectacularmente.
Os jornais, esta manhã, dizima todos o mesmo. Os que não diziam o
mesmo diziam, obrigatoriamente disparates. Os que não diziam disparates não
diziam nada. Mas será verdade o que eles dizem?... E o que eles não dizem, será
verdade?...as consta, me garantiram-me ... Deixe que eu pago os cafés. Até
amanhã.
*
Antes de ir para a cama, ainda quero dizer que Lourenço Marques é
uma cidade acentuadamente desportiva. As piscinas, os “courts” de tênis, os
estádios abertos e cobertos, o Eusébio. Agora temos uma estação aéreo muito
melhor para receber hoquistas.
Pronto, as redações fecharam. Ficaram os impressores a fazer os
jornais. Só falta cumprir a conversa de bar. Começa em nobreza: a “cidade de
caniço” foi o grande assunto jornalístico deste ano; devemos comprometer-nos a
explorá-lo toda a vida. Concordam? Tudo concorda. Mais adiante umas garrafas,
surge a primeira discrepância. Pequena. Depois outra, maior. E outra e outra.
Vem a mãe das discrepâncias e cerra o horizonte da bula-bula. Só há uma
solução: cada um fala do seu assunto. E vários monólogos simultâneos dão todo o
esoterismo da conversa de bar.
(Continua...)
Foto do de Ricardo
Rangel, que tratava Gouvêa Lemos como "meu Mestre".
.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
PARA
UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (04)
Sobretudo a praia, a praia principalmente. Eis o grande atractivo
turístico da turística Lourenço Marques. É certo que há os camarões e os
lagostins. É certo. E as lojas dos chinas e a arte indígena. O ambiente muito
continental dos hotéis e a pincelada ibérica das touradas. E a hospitalidade,
também, de que as turistas (nem sempre) se queixam. Mas a praia, sim, é que dá
o tom. Por isso a marginal é o que é, e se tornou obrigatório rodar por ali,
doze quilômetros a ir, doze quilômetros a vir. E por isso, também o Sr. Alves
Pinheiro se embasbacou e falou dos “seus clubes navais”... Por trás dumas
grades acampam turistas vermelhos que comem bananas. A gente vai vê-los, quando
eles não estão comendo bananas e sim a porem-se vermelhos sobre a areia.
Convencionou-se que elas são todas “giras”, o que dá uma certa alegria à
rapaziada, que se embebeda, também convencionalmente, com coca-cola.
*
Do sétimo andar caiu um belo vasinho de avencas. Escarrapachou-se
no tejadilho do Hilman do senhorio. Um magnífico fim de tarde, prenhe de
interesse, espumante de agitação. O senhor Freitas, seu marido, prefere a pesca
de paredão. Ao menos ali, ninguém o chateia nem fala de ninguém. Deixou foi de
levar o “transistor” para pousar na balaustrada, pois afastava os safios.
*
Além da pesca desportiva, há a outra, sobre qual as teorias são
diversas, parecendo, porém, provado que nas águas do Canal de Moçambique pescam
bem os japoneses. Entretanto poveiros em traineiras, gente de Marracuene em “tatarjos”,
indianos em barcos à vela, lá vão trazendo o teu peixe, amiga cidade. Arrancado
a pulso, com saber e paciência, ao teu amado Índico. Mulheres, de filhos no
dorso, varam a noite, metidas na água salgada até às coxas, caçando mariscos
para o teu caril dominical e para ornamento da rendosa “season”. Peixe e
mariscos para regatearmos bem regateados, que a visa, assim a subir... mas que
grande roubalheira!
(continua...)
.
quarta-feira, 2 de junho de 2010
PARA
UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (03)
Negros Mercedes-Benz são lavados sob alpendres das moradias, no Sommerchield;
fardas de impedidos, paletós de motoristas, fardetas de moleques passam as
cancelas de ferro. O pão já veio. Saem meninos para a escola. Lá para a rua
Nevala, comanda um clarim com voz de galo. O Grêmio Civil ainda tem os vidros
embaciados e já o sol toma banho na baía. É verdade: na baia, convém que um
navio apitasse. Embora a chuva que há-de vir já traga, à cidade inteira, os
silvos das locomotivas em manobras. E uma ambulância corra, tão cedo, com a
sirene a gritar, pela Pinheiro Chagas, levando a mulher que ia tendo a criança
na rua. Suponho que já chega de música de fundo, com a ubíqua motorizada na
bateria.
*
Cai toda a gente no afã de ganhar a vida consumindo outro dia.
Tilintaram relógios de ponto. Chaminés largaram uns fumos de indústria.
Caixeiros iniciaram o eterno dobra-e-desdobra das peças de tecido. E as barcas
da Catembe vêm e voltam , carregando e descarregando gente, cestas e cangarras.
Nos mercados municipais ou furtivos agitam-se figurantes em cenário de natureza
morta. Compradores e vendedeiras fazem torneios de voz alta. A bela Juju ainda
na cama, acorda e boceja; só agora dá conta, em câmara lenta, da noite que foi
a noite passada. – Ahahnnn ...., foi demais, ela própria confessa, e enovela-se
em busca do sono, que ao fugir, a deixa nua diante de si. . Vamos fugir da
Juju, que ela vai chorar.
*
Entretanto, lembremo-nos dela, ingenuamente fingindo de
ingênua-bardot, a passar na Avenida da República, rentinha às mesas do
Continental, entre as cinco e cinco meia da tarde. Não há lugares para mais
ninguém nem é preciso haver, que estão lá todos do costume. As pessoas falam
uma com as outras, não se olhando, pois o olhar é preciso para quem passa. As
conversas... ora para que falar das conversas? Não interessam e nem podem
interessar até porque, se interessarem, quem as apreciaria mais não seriam os
interlocutores mas aquele sujeito da mesa ao lado; quem é ele, que faz ele, que
está sempre na mesa do lado?...
(continua...)
Foto: Av. da
República, Lourenço Marques na década de 60. Foto apanhada no Blog "Rua dos dias que
voam"
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terça-feira, 1 de junho de 2010
PARA
UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (02)
São quatro e meia da manhã e o vermelho machibombo arranca em
frente do Bazar do Xipamanine, com os seus cigarros “king size” e seus sorrisos
de dentifrico nos lombos, carregando lá dentro sob as luzes amarelas cinqüenta
e tal estivadores, rumo à Praça Mac-Mahon. Que é do sol, que ainda não veio
alumiar estes heróis no avanço do cais Gorjão, onde vão manusear às lingadas o
pão nosso de cada dia? Que é do sol, que se guarda para acordar a Polana?!
Minha amiga cidade, atenção a esse sol, não vá ele aburguesar-se.
*
Pela Avenida Craveiro Lopes, já vem chapinhando na água das
chuvas, chap-chap, os pés descalços no leito do asfalto do rio parado, o
mainato, os moleques, os cozinheiros, os mufanas, as mamanas, os serventes, os
ardinas. Os camiões de lixo recolhem. Os de leite circulam. Na Caldas Xavier
galopa uma carrinha de quatro cilindros, trabalhando em três e batendo os
guarda-lamas, com um cão a ladrar-lhe. Leva galinhas, ovos e papaias.
*
Mesas empilhadas e cadeiras encolhidas junto das cervejarias, água
e vassouras espreitando às portas, criados retirando as latas vazias de lixo,
vai começando o ronronar contínuo dos motores de toda a casta de bichos com
rodas, e – bom dia Lourenço Marques! – o sol já nasceu sim senhores, que as
empregadinhas já pisam , e pisam bem, e ainda bem que pisam, as ruas que descem
para as lojas, para os armazéns, para os salões, para os escritórios, para as
repartições, ah! as empregadas já vêm, faladoras, os cabelos cacimbados do
chuveiro, ó cidade amiga, elas dão-te mais graça, elas são mais frescas, elas
são mais repousantes que todos os parques e jardins!
(continua...)
.
segunda-feira, 31 de maio de 2010
PARA
UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (01)
Vou
hoje começar a reeditar a crônica “PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE”, de
24 de Julho de 1963, de Gouvêa Lemos quando este escrevia para o jornal “Dário
de Moçambique” da então Lourenço Marques.
Uma
crônica, como muitas dele, que fazia fundir o cronista ao poeta. A poesia que
“homenageava” a sua Lourenço Marques com o olhar critico sobre os contrastes
das diferenças sociais da então capital da província.
Colocarei
a mesma por partes, pois cada parágrafo desta crônica já por si merece ser lida
como um instantâneo daquela Lourenço Marques, e desta forma dividirei com os
leitores.
Zé Paulo
PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE
O sol nasce agora
às seis e trinta e seis, mas continua a nascer no mar como em todo o ano. No
lado noroeste da cidade não esperam por ele para começar o dia; usam madrugadas
com lua, auroras de pobre.
*
O Samuel, que é um contínuo num terceiro andar da baixa desde as
sete às dezassete e come o farnel à sombra de árvores, chamadas em latim no
Jardim da Gama, e vai à noite às aulas da Industrial, mora as restantes quatro
horas no Chamanculo. Chega ali já noite alta; sai de lá antes que a noite
finde. Samuel é um morcego que sonha ser pássaro. Minha amiga cidade, Samuel
será pássaro, não será ?
(continua...)
sábado, 22 de maio de 2010
Natal - 70
Como
havia comentado no post anterior, coloco agora o segundo poema que o José
Moreira de Carvalho tinha guardado junto a outros seus pertences. É um poema
recheado de saudades de uma filha que pela primeira vez não passava o Natal
junto a si e a todos nós.
Haviamos
perdido a Joãozinha em 1970 com paludismo, na época na Beira quando recem havia
completado 8 anos de idade.
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quarta-feira, 19 de maio de 2010
epigrama
porventura válido
Coloco
hoje aqui um poema, da década de sessenta, que há muitos anos não o lia. A
folha datilografada pelo próprio Gouvêa Lemos, com algumas correções feitas
também pelo próprio, estavam guardadas por um Tio, o José Moreira de Carvalho,
junto com outro poema, que aqui também colocarei por estes dias, e a outros
seus pertences.
O
José Moreira de Carvalho, cunhado do Gouvêa Lemos, em outros tempos farmeiro na
região de Vila de Manica, foi sempre um grande admirador e irmão do GL, e só
isso o faria guardar por tantos anos estes dois presentes que acaba por nos
presentear.
Obrigado
Tio Zé!
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sábado, 15 de maio de 2010
As cartas
anônimas
[In: Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1:680, 27 de
Novembro de 1957, p. 1]
Estou a
ouvir aquela voz nortenha, franca e sã, com ressaibos de Miragaia, da Hora dos
Pobres. O paciente senhor queixa-se das cartas anônimas que recebe e, muito a
propósito, declara que mais valia terem ficado analfabetos os seus autores.
Tem razão.
Isto de
saber ler e escrever começa a ser uma coisa horrível. Pelas libertinagens que
ocasiona e pela coacçöes e inibições que traz.
- O senhor
doutor sabe ler e escrever?
- Sim.
Infelizmente, sei.
Também
tinha razão o bacharel, que respondia ao burocrata.
É uma
carga de trabalhos este dote de - tão simplesmente - saber ler e escrever. O
que nos faz ler! O que nos apetece escrever...
Mas as
cartas anónimas, essa miserável cloaca, para onde convergem os recalques e as
misérias dos tais - que sabem ler e escrever é uma necessidade lamentável e
tristíssima, como outras chagas de humanidade, que subsistirão, enquanto a
humanidade não for melhor que isto. São a única justificação, a simples
aplicação de muito diploma de instrução primária.
O único
remédio conhecido, que pode resultar alguma coisa, na profilaxia de tal
moléstia, é a coragem de não ler as cartas anónimas.
Dominar a
curiosidade, o sadismo, o masoquismo e antes de percorrer com os olhos todas as
linhas, atirar ao lixo esses documentos de baixeza.
Mais
efectivo, mais radical seria não aprender a ler.
Eu vou
mesmo ao ponto de propor uma campanha de analfabetização.
Começa a
haver gente de mais, que sabe ler e escrever...
domingo, 9 de maio de 2010
Por
trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher...
Há
uma famosa frase que diz que “por trás de um grande homem existe sempre uma
grande mulher”.
Em
nossa casa isso sempre ficou bastante evidente, tanto quando o Pai era ainda
presente fisicamente como depois da sua partida.
Para
homenagear a companheira de Gouvêa Lemos neste Dia das Mães no Brasil, coloco
aqui hoje uma crônica do José Craveirinha desenvolvida em cima de uma carta que
a Mãe lhe enviou poucos meses depois do falecimento do Pai, ainda em 1975, mas
quando nós já havíamos retornado a Moçambique e tínhamo-nos instalado em Vila
Pery.
É
esta uma homenagem que faço à Mãe pelo Dia das Mães mas é também uma obrigação
de aqui deixar formalizada a importância da Madalena como companheira de Gouvêa
Lemos.
Foto: Madalena e Gouvêa Lemos
Clique sobre a imagem para aumentar o seu tamanho.
sábado, 1 de maio de 2010
“Dignidade
no Trabalho”
Em
homenagem ao Dia do Trabalhador transcrevo aqui uma crônica do Gouvêa Lemos de
1963 no ambiente de um Moçambique colônia onde, naquele período, atingiu um dos
picos da hipocresia deste sistema colonialista pilotado por uma ditadura
fascista.
Felizmente
já haviam pessoas como Gouvêa Lemos que percebiam como o sistema funcionava,
mas infelizmente eram ainda poucas. Ainda que nem todas, como Gouvêa Lemos, não
fossem vozes carimbadas pelas "frelimos" principalmente de hoje.
A
foto que coloco aqui para ilustrar parte dessa hipocresia é do grande fotógrafo
Ricardo Rangel.
Zé
Paulo
“Dignidade no Trabalho”
[Coluna “Teclado Universal” de Gouvêa Lemos – Jornal Tribuna – 1963]
A
dignificação do trabalho é uma bela meta. Aliás antiga. Trata-se de expressão
que faz voga e continua a brilhar em discursos de circunstância, especialmente
em festas de confraternização de patrões com o seu pessoal. Trabalhai que é
bonito, dizem os patrões.
É
digno, diz o capital. Seja como for, já hoje ninguém duvida de que ao trabalho
deve a humanidade a caminhada cumprida, e no trabalho busca a humanidade
redimir-se. No trabalho físico, no trabalho do espírito.
Assim,
à primeira vista, qualquer campanha desenvolvendo-se onde quer que seja, no
sentido de encaminhar ao trabalho quantos não trabalham, é coisa elogiàvel;
resta saber se será eficiente em quaisquer circunstâncias. Se não será
demasiado empírico o simples convite: Meu filho, trabalha que trabalhar é
bonito. Se, de facto, ao contrário do que se deseja, não está a agudizar-se uma
fome, em vez de satisfazer-se uma necessidade. Interessa interrogarem-se os
promotores de propaganda psicológica a favor do trabalho, se deve enfrentar-se
uma discutível propensão para a indolência de qualquer agrupamento humano, ou
uma bem palpável ausência de oportunidades verificada em determinada zona
geográfica, para os seus habitantes se realizarem no trabalho.
Claro
que seria errado partir-se do pressuposto de que um grupo étnico tivesse
qualidades intrínsecas, de natureza rácica, contrárias à necessidade humana do
trabalho e que fosse, em consequência, necessário assentarem-se as baterias
duma campanha contra o fatalismo de tais características. Claro que seria
errado ignorarem-se todas as verdadeiras razões que mantém milhares ou milhões
de seres afastados do trabalho regular e justamente remunerado, razões de ordem
económica e social.
No
caso concreto da anunciada acção psicossocial para dignificação do trabalho,
com cartazes a tudo, oferece-se como questão fundamental, antes de mais nada,
esta pergunta: em quê, onde vão eles trabalhar?
A
profunda remodelação dum território como Moçambique, em estado de
subdesenvolvimento, a revolução económico-social dum país, como a que se dá
mostras de pretender-se, não pode operar-se por parcelas, desencontradamente,
atacando-se consequências em vez de eliminarem causas, procurando-se coçar a
comichão, em vez de tratar a sarna.
É
preciso não desconhecer a crise de desemprego que é notória, entre os
africanos, mesmo em aglomerados populacionais como Lourenço Marques, oferecendo
maiores possibilidades de trabalho. Assim, chega a tomar aspectos – como direi?
– cínicos, aconselhar o trabalho a quem procura, aflitivamente, trabalho.
E
quanto a Moçambique inteiro – o que se impõe, o que é urgente? – o seu rápido
desenvolvimento económico, a sua ocupação agrícola, a sua industrialização,
criando-se assim uma larga e permanente absorção de mão-de-obra, com pagamento
certo e suficiente, para a dignificação do trabalho. E os trabalhadores
surgirão, aos milhões, em busca de elevação do seu nível de vida, em procura de
“dignificação” da pessoa humana, faltando só à chamada natural os indolentes de
sempre e de toda a parte, na Europa, na Ásia, na África, na América e na
Oceânia.
Cria-se
o clima, proporcione-se o ambiente, fabriquem-se condições autênticas, que o
resto virá por acréscimo.
De
maneira que, pode afirmar-se, mais uma vez, o que é preciso é o progresso que
tarda, para em todos os sectores da vida humana de Moçambique, se realizar o
milagre que esperamos. Sem cartazes.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
GOUVÊA
LEMOS - Por Eugénio Lisboa
Os
jornais noticiaram abundantemente a morte do jornalista Gouvêa Lemos. Que um
homem tão pouco acomodatício tenha despertado uma tal unanimidade de tom nas
notícias publicadas nos jornais das mais diversas orientações - eis, desde
logo, uma indicação: Gouvêa Lemos era respeitado mesmo pelos que dele
discordavam. Digamos que havia nele um não sei quê que desde logo se impunha.
Talvez a sua bondade. Talvez a sua afabilidade. Talvez, sobretudo, o saber-se
que era um dos raros homens que estava disposto a pagar com a própria vida o
preço das suas convicções mais profundas.
Várias
vezes o vi em sérias dificuldades - e estou talvez a dizer pouco: alguma vez o
terei visto à beira da rotura total. Nunca notei, nesses momentos, que
mostrasse, fosse como fosse, que o desespero o devorava.
Ficava-se
amigo dele com facilidade - e ficava-se para o resto da vida.
Como
jornalista, era muito mais do que um profissional sério e cheio de vivacidade.
Tinha um estilo próprio. Qualquer texto seu, além de ser um modelo de literatura
jornalística, era também um texto literariamente muito pessoal. Gouvêa Lemos
escrevia bem, tinha o gosto da palavra única, aquela que, inesperadamente,
entra em ressonância com a ideia que se quer percutir. Era um escritor genuíno.
A sua
malícia estilística escondia um pouco o homem. Quem o lesse não deduziria dos
textos o personagem que depois emergia. Estes eram por vezes mordazes,
contundentes, aqui e acolá, méchants. Faltava, a temperá-los, o sorriso
bonacheirão, a suavidade da voz e a doçura do olhar. De resto, falava como
escrevia, mas, falado, deixava uma impressão diferente e mais suavizada.
Era
sobretudo um homem de coragem, no plano profissional e no plano privado. Amava
a profissão de cujos privilégios e autonomia era intransigentemente cioso.
Tinha o brio próprio do técnico competente e odiava por isso a intromissão
atrevida e volátil das aves de arribação.
Suponho
que sabia exactamente o estado precário da sua saúde. No entanto, sempre que
discretamente o sondávamos, mostrava-se animoso e cheio de planos. Creio que se
tratava mais de sossegar-nos a nós do que de sossegar-se a si próprio. Era
corajoso mas, com a sua peculiaríssima tolerância, não via razão para que os
outros o fossem também. Por isso nos aquietava.
Partiu
para o Brasil e não voltou. Dizem-me que nos últimos dias, já depois de
operado, quando se lembrava disto, da terra e das pessoas, chorava. A chorá-lo,
pela perda irreparável que a sua partida representa, ficamos nós. Parece que as
pessoas como Gouvêa Lemos se demoram pouco neste mundo que é o nosso. Fulgem, -
e desaparecem. No entanto, como observava um personagem de José Régio, 'este
mundo ficaria mais pequeno se eles não passasem por cá'.
[In: A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano XIII, nº. 363, de
9 de Abril de 1972, p. 2]
sábado, 3 de abril de 2010
38
anos sem o Pai e jornalista Gouvêa Lemos
Há 38
anos, a 02 de Abril de 1972, em um Domingo de Páscoa, falecia Gouvêa Lemos aos
47 anos de idade.
Estávamos, eu e mais 3 irmãos, nas areias da praia de Ipanema no Rio de Janeiro junto a uns tios e amigos destes. Todos na expectativa do Almoço de Páscoa que iria acontecer em nossa casa, cuidadosamente e carinhosamente feito pela Madalena, onde a família iria festejar a Páscoa mas mais ainda o restabelecimento do pós operatório do mais velho dos Gouvêa Lemos.
Lá em cima, no Bar do Castelinho onde antes ele gostava de tomar o seu choop, estava na companhia da sua sempre companheira Madalena e de um dos filhos, o António Maria, e ainda com o proprietário do Castelinho com quem batia sempre um bom papo.
A certa altura, lá da praia, ouvimos da marginal uma freada de carro, uma buzinada. Em segundos, ao vermos que chegava em correria à nossa barraca o Tó Maria, deduzimos que a freada e a buzinada tinham sido causadas pela sua louca e apressada travessia da marginal da praia para logo nos alcançar e nos dizer:
- O pai desmaiou!
O Pai, quando levava um copo de suco de laranja à boca, deixou-o cair e tombou para nunca mais acordar do “desmaio”.
Ali, aos meus 11 anos de idade, perdi a oportunidade de conviver com ele com uma maturidade onde poderia ter aproveitado melhor os seus ensinamentos. Ali os meus irmãos mais velhos, mas não tanto, também perderam o seu herói. A sua companheira, Madalena, assumiu de imediato esse posto, Mãe e Pai.
Mas se nós perdemos, sei também que Moçambique perdeu definitivamente naquele Domingo de Páscoa o jornalista e Homem que ainda tanto teria para doar aquela terra que ele passou a amar quando emigrou de Portugal.
Se Gouvêa Lemos mostrava ter desistido de Moçambique colônia naquele inicio de 1972, quando o deixou para vir para o Brasil, tenho hoje eu a certeza que se não tivesse falecido tão precocemente não demoraria a retornar.
Mas se por muitos anos, depois da ida dele, fui ainda educado pelo meu Pai através dos seus amigos e pela minha Mãe quando me faziam o conhecer pelo o que eles o conheceram, sem medo de errar e fugindo de qualquer aparente prepotência, sei também que o jornalista Gouvêa Lemos deixou legado para o jornalismo, e não só, de Moçambique.
* O retrato do Pai é do pintor e poeta luso-angolano Neves e Sousa.
Estávamos, eu e mais 3 irmãos, nas areias da praia de Ipanema no Rio de Janeiro junto a uns tios e amigos destes. Todos na expectativa do Almoço de Páscoa que iria acontecer em nossa casa, cuidadosamente e carinhosamente feito pela Madalena, onde a família iria festejar a Páscoa mas mais ainda o restabelecimento do pós operatório do mais velho dos Gouvêa Lemos.
Lá em cima, no Bar do Castelinho onde antes ele gostava de tomar o seu choop, estava na companhia da sua sempre companheira Madalena e de um dos filhos, o António Maria, e ainda com o proprietário do Castelinho com quem batia sempre um bom papo.
A certa altura, lá da praia, ouvimos da marginal uma freada de carro, uma buzinada. Em segundos, ao vermos que chegava em correria à nossa barraca o Tó Maria, deduzimos que a freada e a buzinada tinham sido causadas pela sua louca e apressada travessia da marginal da praia para logo nos alcançar e nos dizer:
- O pai desmaiou!
O Pai, quando levava um copo de suco de laranja à boca, deixou-o cair e tombou para nunca mais acordar do “desmaio”.
Ali, aos meus 11 anos de idade, perdi a oportunidade de conviver com ele com uma maturidade onde poderia ter aproveitado melhor os seus ensinamentos. Ali os meus irmãos mais velhos, mas não tanto, também perderam o seu herói. A sua companheira, Madalena, assumiu de imediato esse posto, Mãe e Pai.
Mas se nós perdemos, sei também que Moçambique perdeu definitivamente naquele Domingo de Páscoa o jornalista e Homem que ainda tanto teria para doar aquela terra que ele passou a amar quando emigrou de Portugal.
Se Gouvêa Lemos mostrava ter desistido de Moçambique colônia naquele inicio de 1972, quando o deixou para vir para o Brasil, tenho hoje eu a certeza que se não tivesse falecido tão precocemente não demoraria a retornar.
Mas se por muitos anos, depois da ida dele, fui ainda educado pelo meu Pai através dos seus amigos e pela minha Mãe quando me faziam o conhecer pelo o que eles o conheceram, sem medo de errar e fugindo de qualquer aparente prepotência, sei também que o jornalista Gouvêa Lemos deixou legado para o jornalismo, e não só, de Moçambique.
* O retrato do Pai é do pintor e poeta luso-angolano Neves e Sousa.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Como
vi e senti Moçambique
Gouvêa
Lemos passou uma temporada de quase 2 anos, entre 1955 e 1956, no Brasil. Veio
aqui buscar um estágio no jornalismo brasileiro e o fez no jornal carioca
"Tribuna" de Carlos Lacerda.
Escreveu
uma bela crónica sobre os prazeres turísticos de Moçambique. Sem ter nela
nenhum tom politico, critico, que lhe passou a marcar a sua personalidade
jornlistica quando voltou a Moçambique, realça o Parque da Gorongosa.
Esta crónica foi editada em um jornal da comunidade portuguesa no Brasil, "Mundo Português".
Esta crónica foi editada em um jornal da comunidade portuguesa no Brasil, "Mundo Português".
Zé
Paulo
Como vi e senti Moçambique
Por
Antonio Gouvêa Lemos em 15/05/56
Portugal
é tido no mundo inteiro, justamente, como um paraíso de turismo. E eu quero
fazer notar que essa convicção cada vêz mais generalizada, como resultado
brilhante de uma ótima e honesta propaganda não deve cingir-se a Portugal na
Europa, mas pode estender-se a Portugal em África Oriental Portuguêsa que eu
conheço melhor, visto que por lá estive quase 7 anos.
Os
encontros naturais daquêle extenso e portentoso território são um vigoroso
atrativo para quem quiser recrear os olhos, travar conhecimento com panoramas
diferentes, com aspectos exóticos e grandiosos.
As
características especiais do continente africano determinam um turismo
"sui generis", que se não é rodeado das condições ótimas de
comodidade e repouso encontradas na Europa é, contudo aliciante e
surpreendente.
A
ressaltar, neste fundo de paisagens e costumes estranhos, que se oferece para
vibração do temperamento de quem pratica a viagem pela viagem, surge, como
grande motivo de umas férias em Moçambique, o prazer forte, a sensação violenta
da caça, que ali tem perfeito ambiente.
Não
vou usar como argumento publicitário as fitas de Tarzan e outras africanices
igualmente hollywoodescas, as quais felizmente não foram ali situadas. Não,
amigos, não confundam a ginástica com a magnésia! Sómente informo que em
Moçambique, no seu distrito de Manica e Sofala, existe a maior reserva de caça
do mundo.
A
Reserva de Caça de Gorongosa, a qual se chega em poucas horas, indo da Beira de
automóvel e em menos de 1 hora indo de avião, é anualmente visitada por
milhares de pessoas. Ali apreciam de perto e no seu "habitat" a
riquíssima e espetacular fauna do continente negro, numa aliança de quantidade
e variedade que atinge o máximo existente.
Mas,
valentes caçadores ou candidatos, naquêles quilômetros quadrados, que o Governo
demarcou em plena selva, não se dá um tiro. Conservam-se as espécies, não se
dizimam. Passeia-se de automóvel pelas picadas, em companhia de guardas que nos
guiam e nos infundem a necessária confiança com a sua calma e conhecimentos dos
hábitos e modos peculiares das feras, previnem acidentes e evitam sustos.
Ali
se pode gozar um excitante fim-de-semana em alojamentos cômodos (e seguros,
senhores citadinos inveterados...). Não é impossível que o célebre e
magestático silêncio da noite africana, venha a ser cortado por um ou outro
urro do soberano leão, que terá como mais temível consequência, fazer sentar o
turista na sua cama fôfa, de um só pulo. .. O jeito é deitar de novo e procurar
dormir.
Mas,
quanto à caça-desporto a que nos vínhamos referindo, a Reserva da Gorongosa foi
citada como prova da abundância de matéria prima por aquelas paragens. E o
resto é fácil. Qualquer agência de turismo, em Lourenço Marques ou na Beira,
providenciará o resto: caçadores profissionais, armas, transportes, etc.
Quando,
em Setembro do ano passado, de lá parti, tinham chegado recentemente aquele
magnifico pedaço de Portugal ultramarino, dois moços brasileiros que lá foram
demandar com alvorôço os caminhos dêsse turismo, que hoje, tão ligeiramente
apontamos. Soube-o numa casa de artigos desportivos onde eles tinham ido por
armas e munições.
A
idêia, portanto, não é nova. Esperemos que ela se expanda e se torne moda. Há
uma carreira marítima direta. Há muitas, marítimas, aéreas, indiretas. Há bons
hotéis nas duas cidades principais ; há caminhos de ferro, há carreiras aéreas,
cobrindo todo o território e táxis-aéreos que nos vão pousar nos lugares mais
remotos. E há, sobretudo, um povo admirável e portuguesíssimo; hospitaleiro,
franco e gentil para os que chegam.
E
tôdas as possíveis deficiências serão sempre (foram sempre) compensadas com
vantagem por tal gente.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Canção de
Angónia
Visto a camisa
lavada
e vou para o
contrato.
Quem de nós,
quem de nós irá
voltar?
Vinte e quatro
luas,
sem ver as
mulheres,
sem ver a minha
terra,
sem ver o meu boi.
Quem de nós,
Quem de nós irá
morrer?
Visto a camisa
lavada
e vou para o
contrato,
trabalhar lá longe.
Vou para além da
montanha,
para lá do mato,
onde some o rio.
Quem de nós,
Quem de nós irá
voltar?
Quem de nós,
Quem de nós irá
morrer?
Veste a camisa
lavada,
é hora de ir ao
contrato.
Entra, irmão, no
vagão,
vamos andar noite e
dia.
Quem de nós.
Quem de nós irá
voltar?
Quem de nós,
quem de nós irá
morrer?
Quem de nós,
Quem de nós irá
voltar
e ver as mulheres,
e ver
nossas terras
e ver nossos bois?
e ver nossos bois?
Quem de nós irá morrer?
Quem de nós?
Quem de nós?
*Poesia de Gouvêa Lemos, escrita na
década de 60 de Moçambique colônia.
domingo, 17 de janeiro de 2010
UMA
PONTE FEZ ACORDAR A ILHA DA TEIMOSIA
Por
Gouvêa Lemos (em 1967)
Desejada
há quatrocentos anos, a ponte nasceu tarde — é o que pensam na ilha de
Moçambique, alguns dos seus mais lúcidos residentes. Já não é possível deter
Nacala. Nacala é um porto propriamente dito, um milagre na costa oriental de
África, será infalivelmente a porta do Norte — consideram eles, com algum
desgosto. Mas não desistem, mesmo assim; agora, que a ponte existe e já
funciona, defendem a idéia do porto de Moçambique e arrancam para uma campanha
por uma nova ponte-cais. E se arrancam para uma campanha, aqueles homens da
Ilha da Teimosia nunca mais param; teimarão nela, ainda que seja por mais
quatrocentos anos — disse-me um deles, com a ironia duma certa descrença.
Pois
a ponte, como era de prever, já modificou a vida na Ilha, já começou a influir
na fisionomia da cidade, já alterou o seu ambiente repousado e
tradicionalíssimo. Muitos são os que assistem ao fenômeno com júbilo
desvanecido; outros, porém, enfrentam-no com melancolia, saudosamente.
O
contra-senso do sonho
No
sonho, ainda que feito realidade, o contra-senso persiste. Assim é que a ponte,
inaugurada festivamente no mês passado, com grande multidão a assistir, vivas e
discursos, os moleques das marmitas correndo, deslumbrados, com a fome dos
patrões atrás dos cavalos nunca vistos que vieram do continente e muitos carros
apitando pelas ruas seculares, já dá passagem a camiões que são vistos na carga
e descarga desde a Fortaleza ao Crematório dos Baneanes, enquanto um
espectacular Ford «Mustang» buzina pela rua dos Arcos, um carro de instrução
com os seus dois volantes dá infindas voltas com alunas e alunos, pela Rua 28
de Maio, que vai dar à Rua da Liberdade, onde é a Cadeia, pelo largo de S.
Paulo, onde está o palácio dos Capitães-Generais, pela praça Mouzinho de
Albuquerque com seu coreto, ou, ainda, pela Ponta da Ilha, lá para o bairro do
Areal, até ao Cemitério dos Cristãos. Enquanto isso e o buzinar ferve ecoando
pelas ruelas e travessas e os carros pesados esboroam os passeios nas curvas
impossíveis, enquanto isso tudo, a gente vai para a Ilha, chegada ao Lumbo de
comboio ou de avião, tal qual ia dantes: de barco à vela, o que continua a ser
a viagem mais bela que se faz em toda a costa moçambicana.
Logo
na gare do caminho de ferro o «capitão» Ali carregou as nossas bagagens antes
de lhe respondermos à pergunta «vai para a Ilha?». A caminho da praia formou-se
a fila indiana dos seus passageiros, que ele ergueu em seus ombros, um a um,
depondo-os cuidadosamente a bordo da lancha «Graças a Deus», que, graças a
Deus, tinha uma grande vela não muito esfarrapada e fez uma boa travessia com
vento de feição. Além dos repórteres, iam uma velha mulher de vestes garridas à
moda da terra, feições nobres e ar respeitável que conversou suavemente com os
tripulantes ao longo da hora e meia de navegação; outra mulher mais nova, com a
sua filha, pequena e risonha; um rapaz alto, magro, negro retinto, de casaco de
coiro e rádio portátil fazendo ouvir, todo o caminho, fados, anúncios, ié-ié,
anúncios; além do «capitão» Ali, sentado à ré, com a vara do leme na mão
esquerda, havia três marujos divagando sobre os malefícios da ponte.
O mar
estava doce, de pequeninas ondas, azul e transparente. Era uma serena manhã e o
barco embalava-nos enquanto ao longe se estendia, baixa e longuíssima, a ponte
que assim estreávamos, alheia a remoques, indiferente aos barcos à vela, que
aqui e além pintalgavam de branco a aguarela magnífica daquela travessia.
E
agora, Sulemane?
Desembarcados
na praia do Celeiro, ao lado da Mesquita Grande, logo pedimos um táxi; e logo
nos acudiram os rique-xós, que ainda são os táxis da Ilha, embora correndo para
o fim próximo. Angustiados, também, com a existência da ponte que lança os
automóveis na Ilha, em catadupas, os moços dos riquexós não sabem ainda o que
vão fazer quando esse transporte finalmente e naturalmente se for abandonando.
Tilintando a sua campainha ou batendo a sua tábua, lá vai Sulemane com
ligeireza rebocando o turista para a Pousada. Respeita os sinais de trânsito,
recentemente colocados em profusão, sobretudo a indicar vias de sentido único e
estacionamento proibido, pois um carro toma a rua toda.
Quando
cruza com um automóvel, viatura rápida e buzinante — buzina-se muito, para
aviso dos peões, ainda por habituar a tamanho tráfego —, Sulemane lança-lhe um
olhar de ressentimento, enquanto vai arfando, compassadamente, o seu pequeno
motor de 2 tempos, um breve ruído a erguer-se, ténue, sobre o silêncio das
rodas de borracha na paz da Ilha. Despachado aquele fortuito freguês, Sulemane
descansa o riquexó à sombra, junto dos outros, esperando horas a fio por um
cliente nunca mais chegado.
Senta-se,
limpa o suor da testa e os outros olham-no interrogativamente, expectantes,
como se ele pudesse trazer boas novas dos lados da ponte. Os seus olhos
perguntam: — E agora, Sulemane?
A
ponte é nossa
Mas a
ponte é um dogma. Indiscutível. Mais do que matéria de facto e de concreto, é
matéria de fé. Os residentes vão fiscalizá-la, pessoalmente, caminhando até
onde está a capela de S. Francisco Xavier e continua o banco de Mousinho sob a árvore
enorme e velhíssima. Ali se liga a Ilha com o Sancul, a 5 quilómetros do Lumbo.
Conversando com o guarda, à porta da sua guarita, os citadinos olham o fundo da
ponte esperando os carros e alegrando-se quando os avistam. Colaboram na
cobrança da portagem e dão explicações aos transeuntes. Um peão paga 1$00 por
ida e volta; uma bicicleta, 2$00; uma motorizada, 3$00; uma moto, 5$00; um
automóvel, 25$00; um autocarro, 60$00; um camião de carga, 100$00. Peso máximo,
10 toneladas. Todos acham bem, assim é que está certo, é para o progresso da
Ilha, a ponte é nossa. Daqui para o futuro, tudo será possível, parece dizerem
alguns dos indivíduos com quem se trocam impressões sobre a «ordem do dia».
-
Agora precisamos dum cais acostável, ao menos para atracarem os navios
costeiros — sugere um.
-
Água, é o que precisamos de arranjar a seguir — opina outro.
-Corrente
alterna, quanto antes — contrapõe um terceiro.
- Um
bom hotel, urgentemente — pede alguém.
-O
comércio reviverá e a Ilha voltará a dominar o distrito — há quem se atreva a
profetizar, entre os elogios ao almirante Sarmento Rodrigues.
-
Vamos desenvolver o turismo — é resolução unânime.
Uma
coisa é certa: a ponte fez estremecer a velha Ilha de Moçambique e algo de novo
e vivificante a acometeu. Naquela relíquia do passado somente se fala de
futuro. A estridência dos claxons levanta a poeira de mais de quatrocentos anos
na capela de Nossa Senhora do Baluarte, onde dormem navegantes e conquistadores
da índia. A história da Ilha foi cortada ao meio por esta ponte.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
Tiros para o
ar
Por Gouvêa Lemos -A TRIBUNA - 1963
Tenho uma idéia vaga de, em tempos da minha meninice, ter um
vizinho de quinta amedrontado e maníaco, que se assustava muito com muito luar.
Por isso, em noites claras de Janeiro ou de Agosto e até de outros meses, o
senhor ia ao muro do fundo que dava para a estrada e de lá punha-se aos tiros
para o ar com uma caçadeira que ele tinha.
Quando
o interrogavam sobre aquelas batalhas a solo, o sr. José - chamemos-lhe Sr.
José - explicava que era contra os inimigos que disparava, em noites de lua
cheia, ou luva nova ou mesmo com um quartozinho crescente. Quer dizer, muita
lua e o Sr. José, pum, pum, pum, desatava aos tiros para o ar - contra os
inimigos.
O que
tinha graça nisso era que ninguém conhecia inimigos do Sr. José que nem era mau
homem, era só maníaco e amedrontado, assim um pouco palerma; não se sabia
portantode quem eram inimigos os inimigos que o afligiam, coitado do Sr. José.
Ora
eu tenho reparado que ultimamente aparecem muitos artigos em alguns jornais,
escritos por uns senhores que me lembram o Sr. José, lá nos tempos da minha
meninice, por acaso na Beira Alta. Não sei se é de haver lua - há lua? - ou lá
porque é, sei só que nesses artigos muito vagos, nada objectivos embora
conceituosissimos, se fazem acusações gravesde grandes e pavorosos pecados (que
devem ser mas não se sabe quais) contra pessoas muito incógnitas, muito
anônimas, se calhar nem existentes.
Mas a
xingação é brava e contundente. Fala-se de traidores, tipos que são contra,
vendidods, perigosos inimigos como o Sr. José dizia), mas ninguém sabe nem
percebe a quem é que os tais traíram ou vão ou estão a trair, quem foi que os
comprou ou vai ou está a comprar e, finalmente, de quem ou de quê eles são
inimigos, a quem ou a quê eles oferecem perigos. É um raio duma confusão!...
Se
isto me aflige um pouco não é por mim, que passo adiante e leio tantas outras
coisas que devo ler e não me importo: mas, como sou dos jornais e me preocupo
com estes negócios de Imprensa, acho que o tal fenômeno começa a tomar forma de
hábito com tendência endêmica, o que produzirá certamente larga desorganização
na opinião pública, gerando-se um clima de desassossego altamente nocivo ao
menos para quem precisa de dormir: qualquer dia desata tudo a comprar
caçadeiras e a dar tiros de noite, "contra os inimigos". Não está
certo.
Por
isso eu peço aos camaradas mais useiros nesses sustos de noites de luar, que
deixem disso, não tenham medo e falem claro. Ó senhores, devemos falar claro,
pôr os pontinhos nos ii, as carapuças nas cabeças, apontar cada um a sua
caçadeira para cada rés, desde que seja caso de tiroteio. Mas não assustem
ninguém, pelo menos as crianças que, ao fim e ao cabo, ainda são as que têm
mais receio dessas coisas...
Há
tempos até li um artigo enorme, bem destacado, com um grande título, muito bem
composto, sem gralhas nem nada e não consegui perceber nicles. Reli, ainda,
quase até meio; e nada. Mas como era colérico! Como estava ofensivo! Severo e
iracundo, prevenia-nos contra temerosos males e denunciava autênticas feras
humanas, postas de tocaia contra nós todos, os homens bons (eu, também, não me
considero mau homem). Mas afinal, o pobre do artiguinho resultava inútil,
porque ninguém nos dizia contra quem era aquela cólera, quem seriam os
ofendidos, que males nos ameaçavam e onde estavam as feras. Nem sequer
explicava se estas eram mamíferos ou aves ou qualquer desses bichos que há na
zoologia. Apre! Isso não deve ser jornalismo.
Aliás,
eu tenho para mim, que até do ponto de vista lá das manias deles, isso não deve
resultar. Quer dizer, nem mesmo para efeitos de denúncia à Policia ou assim,
não é? A não ser que haja qualquer código que agente não sabe. Um código só
para os homens bons... Mas então eu quero saber!
Não,
não deve ser isso. São mas é como o Sr. José, que era palerma e em noites de
luar, lá na quinta, punha-se a dar tiros com uma caçadeira. Para o ar. Contra
os inimigos.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
CARTA DO
BRASIL
Por
Gouvêa Lemos em 7-1-1963 - A TRIBUNA (Moçambique)
O leitor não tem nada com isso - a minha vida particular não lhe
interessa - , mas eu vivi no Brasil. Sim, vivi lá, tenho lá família, tenho lá
amigos e bastos motivos de saudade, tenho duas filhas brasileiras e tanto me
interesso pela vida do Brasil que até lá andei metido em políticas. Políticas
brasileiras, claro. E de tal maneira que, lá, eu até era da oposição e ninguém
via mal nenhum nisso.
Explicando
melhor : apesar de não ser brasileiro, achavam os brasileiros das minhas
relações que, só porque eu vivia no Brasil, ali produzia algo, ali contribuia
de qualquer humilíssima forma, para o progresso do Brasil, nem que fosse
únicamente pagando imposto, achavam eles que eu tinha o direito de fazer
críticas à administração, de discordar do Governo, de ter, em suma, opiniões
políticas.
Os
brasileiros são muito giros...
O que
é certo é que eu usava esse direito, com uma descontracção explicável sómente
pela força aliciante de tamanha liberdade, pelo entusiasmo decorrente de tanta
compreensão.
Assisti
à eleição do Presidente Juscelino, lá permaneci durante o Governo do Presidente
Juscelino - eu era contra o Presidente Juscelino. Tão contra como os que iam
aos mesmos comícios que eu procurava, da Praça do Congresso a Caxias do
Deputado Tenório. Eu era contra, mas como estimo hoje o Presidente Juscelino,
de tanto poder ser contra ele!
Vem
tudo isto a propósito das cartas que recebo do Brasil, da minha mãe e dos meus
irmãos, pondo-me às vezes em dificuldades para lhes responder, tal a confusão
que lhes lavra no espírito sobre certas coisas que, à distância, são inexplicáveis
(para me livrar de trabalhos, já tenho respondido que não posso responder) e
nas quais me são contadas todas as dificuldades, todos os problemas, todas as
tarefas que a família enfrenta, que a vida lhes opões, a par das pequenas
alegrias e tristezas vulgares que são tema das cartas familiares. E tudo isto é
mesclado, sempre, de comentários, de notícias, de esclarecimentos, de muitas
espinafrações à política, ao Governo, de queixas contra os governadores de
Estados, contra os ministros, contra o Presidente da República (a minha mãe não
gosta do Jango Goulart), a propósito do custo de vida, a propósito do preço do
gado, a propósito de tudo e de nada. Que beleza!
Aqui
há tempos, mandei dizer a um irmão meu, preocupado com coisas que não lhe
esclarecera devidamente em cartas anteriores, que já tinha percebido o seu
grande amor pelo Brasil, a sua perfeita adaptação ao grande país, à maneira de
ser do magnifico povo, pelo seu tom severo e exigente de referir-se às coisas
públicas do Brasil. "Estás bom, meu irmão. Estás maduro. Deus te salve e
ao teu Brasil".
A
minha Mãe, que quando as vacas se vendem mal, ou não chove para os lados do Rio
Pardo, no interior da Baia, se dá a excessos de pessimismo, escrevia-me há
dias: "Não sei onde isto vai parar, mas tenho muita fé".
Gostei
e vou responder-lhe:
"Tenha
fé, senhora mãe. Tenha fé que onde vai o Brasil parar é muito longe e muito
alto. Continue a mandar-me dizer mal do Jango e a aspirar por um presidente
inteiramente "udenista", um Juarez, um senhor muito fino e
respeitável das direitas. Continue a escrever-me sem medo do que pensa, e diga
aos manos que também, que discordem, que falem, que se preocupem. Vivam cada
minuto brasileiro com esse entusiasmo, com essa unção, compenetrados de que
tudo é, ao fim ao cabo, negócios de família. E mandem-me dizer, oh! mandem-me
dizer sempre, que me sabe muito bem ler isso que pensam e com o que , aliás, eu
nem concordo. Mas digam, digam, livremente o que lhes parece dessa terra que é
sua, minha mãe, e vossa, meus irmãos, e dessa gente admirável que afinal vós
sois também."
"Escrevi
toda a casta de espinafração contra o que não vos quadra ao parecer que tendes
e á opinião que defendeis. Escrevi, que eu irei respondendo, assim sem jeito,
atabalhoadamente, que não sei responder."
As
cartas do Brasil, leitor, fazem-me reconstituir o espírito; dão-me saúde. Não
só porque mato saudades da família - ou as exacerbo, o que vem a dar no mesmo -
como renovam a fé que tenho no Brasil. Que tenho no futuro, vivendo em
Moçambique e recebendo cartas da família.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Natal
Por
Gouvêa Lemos, em 1957
Coluna
Mesa Redonda
Para
lá e para cá da Cortina de Ferro, o dia 25 de Dezembro é o Dia de Natal.
Até o
roliço e reinado Nikita, com o ar de camponês abastado e contador de anedotas,
há-de beber alegremente um bom vodka e renovará os votos habituais de paz e
desarmamento, à mistura com umas graças pesadas sobre os países capitalistas.
As agências ocidentais noticiarão, mais tarde, que certos círculos chegados ao
Kremlim insinuaram que o sr. Kruschev estava etilisado. Serão, de certo, os
mesmos círculos que, depois da morte de Staline, anunciaram ter sido constatado
um endurecimento muscular do seu coração e daí tirarem definitivas conclusões
morais...
O
simpático Eisenhower, com o aspecto feliz de quem chegou das manobras e despiu
a farda, há-de ser fotografado para o Mundo inteiro, com os netos nos joelhos,
com a Mamie à sua direita, o filho e a nora, sorridentes, atrás. Tudo à sua
volta, verificando a Humanidade, embevecida, que assim vive o chefe de uma
grande nação democrática.
E
enquanto os chefes de governo europeus, que participaram da última conferência
da NATO, hão-de celebrar com as suas ilustres famílias a vitória colectiva, que
se diz terem alcançado - não contra o inimigo e sim contra o aliado, o que se
torna um pouco difícil de entender -, o que se celebra, na verdade, é,
simplesmente, o nascimento de um Homem pobre mas estranho. Tão estranho, que
era Deus.
E
há-de haver um momento - tem de haver - em que todos esses personagens
importantes ficarão a sós com os seus pensamentos, se alhearão de tudo o que se
passar à sua volta e hão-de meditar um pouco sobre o dia que vivemos.
O
depurador Kruschev pensará como é vária e inconstante a existência, de tal modo
que aquele que hoje depura, será depurado amanhã. Que isso, ao menos resulte
numa folga para Zhukov e para os peritos encarregados de lhe lavar o cérebro. E
Eisenhower, tal como os seus colegas ocidentais, vacilarão uns segundos nas
suas certezas. Hão-de suspeitar ou acreditarão mesmo, no íntimo, que a palavra
Paz tem sido usada em vão e em mentira.
Todos
eles - os grandes chefes - devem sentir, de súbito, vergá-los o peso brutal da
responsabilidade por este mundo eriçado de projécteis balísticos, entumescido
por bombas nucleares, ensombrado por bombardeiros e caças.
Todos
se hão-de lembrar, para lá e para cá da Cortina de Ferro, que o dia 25 de
Dezembro é o Dia de Natal. O dia em que chegou à Terra o Mensageiro autêntico
da única Paz.
[Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº 1702, 23 de
Dezembro de 1957, p. 1]
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O CARNAVAL -
1958
Hoje, 18
de Dezembro de 2009, o Pai faria 85 anos. Como tenho tido dificuldade de
escrever - Freud talvez explicasse - sobre e para ele neste blog criado para o
homenagear, vou mais uma vez no meu ritmo de aqui colocar o que é o maior foco
deste espaço; o de dar a conhecer o que um homem pensava e como jornalista
escrevia em outros tempos, décadas e ditaduras.
No seu
aniversário de 1957, a 18 de Dezembro, GL escreveu sobre o carnaval carioca. Um
carnaval que se de 1957 para cá mudou muito, onde grandes interesses
financeiros tiraram muito da sua pureza, na sua essência não mudou tanto de
como GL tentou o descrever.
Zé Paulo
O CARNAVAL - 1958
Por
Gouvêa Lemos - Coluna Mesa Redonda
Fala-se
já em Carnaval e projecta-se um renascimento dessa pândega anual, em Lourenço
Marques. Muita gente deve achar cedo para se falar de Carnaval, mas eu
lembro-me agora de que, nesta altura, no Rio de Janeiro se conhecem os êxitos
musicais do próximo Carnaval carioca. Já os compositores se afobam e os poetas
se afadigam, lançando no mercado os sambas que hão-de marcar os bamboleios dos
blocos e cordões de sábado a quarta-feira de cinzas. Já as escolas de samba, de
Cascadura á Praia do Pinto, ensaiam e capricham nos coros, nos trajes e nas
evoluções dos passistas. Já seu Ataúlfo e as suas pastoras gravaram um samba de
morro, dos autênticos, do estilo - Amélia é que era muié di vêrdadje. E a onda dos
plagiadores já foi buscar a inspiração aos clássicos do samba. E já se canta o
que há-de fazer rêbolá e se esbaldá - todo o mundo - nas ruas.
Não
serão as composições de melhor melodia e de versos mais bonitos as que se
hão-de sagrar vencedoras nas preferências da multidão, comprimida, farrapeira
embriagada e enfurecida pela febre de se divertir, mas submetida ao ritmo
dominador, contínuo, uniforme - que se entranha nos corpos e parece estar até
na atmosfera - o ritmo do samba.
Vencerão
aquelas que têm sabor de Carnaval. As que fazem gingar os quadris, abanar os
troncos, descair as cabeças para trás e arrastar os pés, a compasso.
Sabem
como é? Se não viram, não sabem e eu também não sei explicar - como ninguém
soube, até hoje.
[Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1698, 18 de
Dezembro de 1957.]
Foto: Da esquerda para a direita, cantores Blecaute, Eloína, Orlando
Silva com Wilza Carla que foi eleita por voto popular a Rainha do Carnaval de
1958. Fonte: Blog PandiniGP
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
O
MELO DO "NOTÍCIAS" - COMO SÓI DIZER-SE
Nas
suas "Folhas Perversas" do último Domingo, Guilherme Judas de Melo, o
Melo do "Notícias", como sói dizer-se - como sói dizer o Melo -
atendeu a encomenda de se meter com o ‘Notícias da Beira’. Forçado ele foi, com
certeza, pois não contando a coragem nem o desassombro entre os seus trunfos e
sabendo ele bem o vespeiro em que bulia, só por um sombrio pavor que alguns lhe
conhecem faria o que fez.
Foi
pegar de mau jeito numa página de Poesia organizada por uma colaboradora deste
jornal em homenagem a Fernando Pessoa e numa discutível impropriedade das
ilustrações escolhidas para os poemas farejou traições ao Poeta e traições à
Pátria, pretendendo, em vão, mais do que colocar a senhora em situação crítica,
atingir os “dirigentes e responsáveis” deste jornal, ‘que por ele responderão’,
como não se esquece de ameaçar.
Antes
de mais, o que torna especialmente descarada esta atitude é o facto de vir
falar das responsabilidades que terão os dirigentes doutro jornal, quem,
precisamente nunca foi capaz de as assumir no seu. Conhecido pelos seus antigos
ou actuais colegas e subordinados por uma proverbial incapacidade para chefiar,
dirigir e orientar, chefe de Redacção desrespeitado ou secretário-geral
irrespeitável, atreve-se o Melo - eu conheci-o - a oferecer autoridade e a
exportar disciplina...
‘Notícias
da Beira’, cuja posição perante os problemas fundamentais da actualidade
portuguesa e da realidade ultramarina é bem conhecida e resulta claramente duma
firme orientação superior - que até a mim transcende, quanto mais a ele - não
requer nem consente observações dum invertebrado escriba fugidio como o
Guilherme de Melo.
Primeiro,
o sujeito descobre um soldado, possivelmente desertor, num estafado campista,
descontraído, estendido na plataforma rochosa duma qualquer montanha,
visivelmente gozando o ‘prazer de não cumprir um dever’.
Depois,
avulta a ligeireza com que se apossa, em sôfrego exclusivo, do espírito de
Fernando Pessoa, que manipula por receita, metendo entre balas ‘a sua mensagem
única e bem clara’, para nos afirmar que o ‘menino de sua mãe’ nunca poderia
ser um ‘negro, asqueroso, imagem perfeita do bandoleiro a monte, arrancado aos
pântanos de um Vietname". Aqui ficamos em dúvida sobre a ordem de razões
em que o Melo se funda para considerar bandoleiro um negro, certamente
americano, que se bate no Vietname. Mas ele lá explicará isso a quem deve.
Por
outro lado, verificamos que tem da Poesia uma idéia tão ampla e da liberdade
criadora do Poeta um conceito tão aberto, que, autor de versos e ganhador de
prêmios literários, assim lhe compreenderemos facilmente a obra pífia de
poetinha pseudo-lírico. Preocupado com os ‘poetastros que por aí pululem
convencidos que ‘isto’ de se fazer poemas à Fernando Pessoa não custa nada’- e
ele sabe o que custa -, o Melo tenta pôr-se de fora, quando, nisso mesmo que
diz, poetastro ele é, poetastro se confirma.
Ora,
de que tenta, afinal, acusar-nos o Melo? De termos albergado em página deste
jornal o ‘mais revoltante e indigno achincalhamento do que por este nosso
Ultramar toda uma juventude generosa e magnífica tem vivido, desde há sete anos
feitos, em sacrifício e holocausto’, achincalhamento que seria constituído
pelas tais ilustrações que ele reprova e a nossa colaboradora escolheu para 2
poemas de Pessoa. Uma delas, então, ele acha especialmente revoltante, porque
se trata dum homem de cor, a figurar o ‘menino de sua mãe’. E diz que ‘aquela
coisa ali arremessada como um escarro para aquela página’ não pode servir,
sequer, para ‘englobar na mensagem belíssima e humaníssima que o poeta contém
os nossos irmãos negros’. Porquê, não explica. E talvez não possa faze-lo,
porque ninguém lhe garante que tenha sido negro aquele corpo queimado pelo fogo
da guerra, que ‘jaz morto e apodrece’, e, de certo, tinha mãe.
Mas
faz-nos pensar em que o Guilherme de Melo de ‘As Raízes do Ódio’, se não anda a
preparar-se para alguma sessão pública de auto-crítica, ocupa-se com fervor em
construir a sua retratação. Sobre as raízes do ódio, no seu romance, dizia o
João Tembe (que não poderia ser o filho da sua mãe da ilustração revoltante) :
‘Mas também não posso esquecer que essas raízes, foram a violência e a
injustiça, foram a destruição e a morte que as plantaram. Elas não germinaram
espontaneamente no coração de cada um de nós. Alguém nos atirou a semente do
ódio para o coração, alguém fez germinar essas raízes. Ah! Não senhor doutor,
elas não germinaram espontaneamente nos nossos corações. Como impedir agora que
a planta se desenvolva livremente e que a árvore frutifique? Como? Como senhor doutor?’
e respondia-lhe o doutor Santana (esse podia ilustrar o poema, que era alvo e
louro) : ‘Compreendo-te, João Tembe,. Compreendo tudo o que sentes, tudo o que
pretendes demonstrar. Sei tudo isso. Ao mesmo tempo que sinto que uma nova
África começa a surgir. E nós estamos em África. (...) E é por essa África nova
que todos nós - eu tanto como tu ou o António Manuel, repito-o - precisamos de
lutar. Mas lutar com amor e confiança entre os três. Só assim valerá a pena
Deus nos ter dado esta maravilha rara de vivermos a nossa existência
precisamente na altura em que a Humanidade assiste a essa autentica viragem
histórica: a surgir dessa nova África!’
Pois
disto escrevia o Melo entre 1960 e 1962, já depois de terem começado a
contar-se os tais sete anos feitos, e publicava há uns 3 anitos, quando começou
a ir conviver com os soldados ao Norte, como diz, onde combatem, como confessa,
o ‘João Bazenga ou Fabião Souquiço’, ao lado dos ‘Zés Marias e dos Augustos e
dos Antónios’.
Quando
seria, pois, sincero, o Guilherme de Melo? Então, cantando as rubras manhãs
duma África nova? Ou agora, arrancando, a pedido, um ‘apartheid’ poético da
‘Mensagem’ de Pessoa? Eu digo-vos, porque estou certo disso, que ele não foi
sincero então nem é sincero agora.
Então,
ria-se a escarnecia de todos os conflitos que lhe deram tema ao romance; agora
ele ri e escarnece da guerra no Norte. Sim,: agora, ele ri e escarnece dos
dramas e das dores, dos sacrifícios e dos feitos que trata nas suas crónicas de
campanha, com farto chorrilho de lugares-comuns e ‘hinos alevanttados ao jovem
Soldado que morre pela Pátria nos planos longínquos’.
Fazendo
dessa guerra a sua coutada jornalística, nela se escuda contra sustos
profissionais e riscos de desemprego, ao mesmo tempo que colhe farto material
para as suas graçolas e historietas de humor negro, exactamente criadas a
partir do que mais respeito deve merecer a todos nós. Enquanto isso, no
noticiário e até na escolha de fotografias de actividades militares, ele trata
a guerra do Norte à luz dos seus problemas sentimentais.
Não
foi sincero nunca, por que havia de ser agora? Reagindo a esta acusação, que
não temo fazer, porque não temo provar, ele há-de erguer a voz com tremidos
hipócritas e dará soquinhos na mesa para afirmar que o ataco por ele defender
os sagrados interesses da Nação, as heróicas Forças Armadas, a permanência de
Portugal em África. Com que moral e de que ponto de vista o fará? Com base na
sua prosa oficial domingueira ou nos chilreios sarcásticos com que, entre
amigos, a contradiz?
Quase
no fim das suas ‘Folhas’ de anteontem, o Guilherme tem um laivo daquele remorso
que levou o Iscariotes à forca e escreve: E dir-me-ão, ainda, que é muito feio
armar-se em denunciante e menino queixinhas’. Que tolice. Ninguém vai dizer que
está a armar--se, pois toda a gente sabe que é. Denunciante, no pior sentido.
Que se vinga, com intrigas odiendas e queixas sinistras, das suas frustrações.
Que á falta de ascendente moral sobre os seus inferiores hierárquicos, os
castiga com falsas denúncias.
Fecha
com chave de ouro, o Melo do ‘Notícias’, erguendo de súbitos seus ais sentidos
‘por pensar que, numa altura em que tanto bradamos pela necessidade, cada vez
maior, de uma crescente liberdade para a Imprensa a troco de uma, naturalmente,
também cada vez maior responsabilidade, demos assim tão triste conta de nós,
com brincalhotices deste jaez que a ninguém aproveitam nem dignificam’. E já
prevê, como quem pede: ‘E, depois - aqui dél-rei!...’
Aqui,
está a ser coerente. Bem sabe ele que o seu próprio caso de jornalista é um
fenômeno só possível em certas condições especiais. Ele sabe que não resistirá
à água corrente da tal liberdade responsável. Ele sabe que é uma flor do
pântano.
Por Gouvêa Lemos
Edição particular para oferta
09/12/68
Este artigo, para fugir da censura, foi editado de
forma particular, ainda que usando as oficinas do "Notícias da
Beira", na cidade da Beira, Moçambique.
Aqui Gouvêa Lemos
mostrou a sua "ira" quando lhe pisaram os calos profissionais através
de uma colaboradora que percebe-se não a ter aqui exposto. Penso no entanto, se
a minha memória não falhar, pelo o que a Mãe me contava, que era esta
colaboradora a poetisa Glória de Sant'Ana.
Em outras
oportunidades que "reeditei" este artigo, em outros espaços na
internet, houve quem tivesse questionado a minha iniciativa em divulga-lo, o
que tenho para mim ser um documento do jornalismo moçambicano e por isso não
dever te-lo apenas na minha gaveta.
Conhecendo os
valores do meu Pai e por termos amigos intimos da família assumidamente
homossexuais, não vejo aqui nenhuma alusão ou critica do GL pelas preferencias
sexuais do Sr. Guilherme de Melo, que anos mais tarde, mas ainda em um periodo
onde não era fácil, corajosamente assumiu para uma sociedade preconceituosa.
O que vejo, e
provavelmente perceberam os leitores, é que o GL não gostava de "meninos
queixinhas", a quem apelidavamos de "maricas", e haveria de ter
motivos para ter feito as afirmações que fez no artigo.
Zé Paulo
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Carta
ao Gouvêa Lemos - Por Eugénio Lisboa em 1964
Quem
conheceu Gouvêa Lemos em Moçambique sabe que ele tinha como um dos grandes
admiradores e grande amigo o Eng. Eugénio Lisboa.
Algumas
vezes o Eugénio Lisboa publicou para transmitir essa admiração através da
imprensa, em especial na "Voz de Moçambique", onde GL teve
participações como colaborador, especialmente quando teve que se afastar do que
foi o seu maior sonho no jornalismo moçambicano, que havia sido o seu
envolvimento e comprometimento com o projeto do jornal "A Tribuna".
Nesta
fase o GL sofreu muitas presões dos todos poderosos do governo da província o
que começou a criar problemas para a própria "Tribuna".
Foi,
talvez, a maior crise que passou na sua profissão, pois acabou por se afastar
da equipe da "Tribuna" e ficando desmpregado (na Tribuna já estava
com problemas financeiros e com as dificuldades os chefes não recebiam antes de
se pagar os salários dos colaboradores), o que gerou, é claro, grandes
consequências na sua vida privada pois o dinheiro faltou em casa e por um bom
tempo a comida por lá chegava através de amigos. Nessa fase Gouvêa Lemos
recebeu um convite para colaborar de forma mais ativa na "Voz de
Moçambique", mostrando que por ali havia gente de coragem para, ao
conhecerem profundamente o que se havia passado na "Tribuna" ,o
convidarem para o seu meio.
Nessa
fase o Eugénio Lisboa escreveu a "carta", que reproduzo abaixo, que
teve grande impacto no meio jornalístico, na sociedade, e claro nos
"pides" e outros poderosos.
Zé
Paulo
CARTA
AO GOUVÊA LEMOS (*)
À
Quina
Caro
amigo:
Esta
carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que
lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não
chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma
argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os
factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova…
Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Por que lhe
escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por
enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso 'por que me
apetece!' O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil
exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com
alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob
a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever. Seja pois o que Deus
quiser!
Dou
ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer
de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e
sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto
para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um
pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não
hesitrei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho
lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram
essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que
partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a
preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já
por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em
qualquer dos casos, não tive o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais
vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto
correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado)
amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um 'truta' dos
antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer
aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em
si, menos impressiona. Para lhe ser franco Gouvêa Lemos, estou-me até
borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é
claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele
para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que
ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quer Você?, sou feito
assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não
creio que sejam elas, em si, aquilo que as torna pessoas dignas de estima e
admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados 'nada' fizeram
para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com
maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvêa Lemos, não tem afinal culpa
nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era
de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão
perigosos dotes… E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que
até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que
Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento
(há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais!) é uma pessoa de carácter e é
também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura
aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o
que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os
talentos que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e
dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos
absolutistas e um pouco 'farouches' que nós tínhamos quando éramos garotos e
queríamos por força ser 'sempre' os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto,
é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é
mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você
tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la:
tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é
eventual, mas contínuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e
oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que
crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais uma) para há
muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o
bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar
um velho e esquecido filme de Orson Welles (chamava-se 'Jornada de Pavor' e às
vezes há razão para ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph
Cotton, também bonzão e tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor
de um navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como
as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de
salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos,
que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotton! Teimosa raça de honestos
que Vocês são! Embirrantes criaturas, chatíssimas trepadeiras, que despistam
todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata -
esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a
honradez, a inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados…
Dizia
o bom do Alexandre Dumas Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe-me
pois o pouco alevantado das citações…), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho,
que 'a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que todos
os maliciosos não prevêem'. Como é verdade! Que grande malandro, no meio de
toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a
contarem que Você fosse se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de
olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe
conhece: 'Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!…'
Pois
é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão
simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da
bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser 'malicioso'… Parece-lhe pouco?
Salvé,
amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao
café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz
uma boa amiga nossa, 'discutirmos um assunto',
Seu,
Eugénio
Lisboa
[Semanário 'A Voz de Moçambique', nº. 146,de 13 de Setembro de
1964]
* A
Quina era a hoje falecida esposa do advogado e intelectual moçambicano Dr.
Adrião Rodrigues, amigos em comum do Eugénio Lisboa e Gouvêa Lemos.
*Pides - Os que
serviam direta ou indiretamente à PIDE, policia politica do regime fascista de
então.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
BOAS FESTAS!
Gouvêa Lemos - Coluna Mesa Redonda
Este período que antecede o Natal, pela tradição e pelo
significado, é um período alegre, risonho e de ternura universal.
Posto
isto, vejamos se não é, também, uma grande estopada!
Os
cartões de boas-festas vêm logo à cabeça. É uma prática de fina cortesia e de
inegável cordialidade, essa troca de cartõezinhos ou de vastos impressos a
cores, com votos de felizes festas e um próspero Ano Novo. É um laço que se ata
em Dezembro, entre os corações das mais diversas gentes. Mas é uma bomba, pá!
Por
exemplo: desta vez, eu tencionava manter-me anónimo e alheio a esse campo de
actividades. Mas já não posso fazer tal, sem graves danos para esta reputação
que prezo e me esforço por manter de criatura remediadamente educada.
Tenho,
pelo menos, de agradecer e de retribuir uns poucos de votos, que me buscaram
venenosamente e me encontraram, por fim. E segue-se a tragédia. Escrever
cartões, arranjar envelopes de tamanho e formato funcionais, colar estampilhas,
pôr no correio. E no meio dos afazeres inadiáveis e escravizantes de um sujeito
atrapalhadiço, como sou, surge, a espaços, a sombra negra de um lembrete, os
cartões. Ah, os cartões, tenho de fazer os cartões.
Depois
vêm os presentes. Aqueles presentes bonitos, embrulhados em papel com árvores,
caras de Pai Natal e fitas vermelhinhas. Não dou presentes a ninguém acabou-se.
Mas olha que Fulano, Beltrano e Cicraninho já deram uns brinquedos aos garotos…
surge sempre a maligna insinuação. E aí está outro problema agudo, a
cotucar-nos o espírito. Compras, dinheiro e embrulhos, numerosos embrulhos -
uma avalanche de embrulhos, um pesadelo.
Por
fim, há que acertar com todos os casais amigos o que vamos fazer no Natal.
Vocês vêm a nossa casa. Não. Vocês é que vêm à nossa. Mas que ideia! Pois isto
já ficou assente desde o ano passado! Geralmente, a estratégia é jantar nas
duas casas. Em uma delas, na véspera e na outra, no dia propriamente dito.
E a
passagem do ano? Onde vamos passar o ano? É atroz esta dúvida. Estava combinado
irmos com XX. Mas eu já disse aos YY, que sim… E ameaça-nos a sombra dos
melindres. De bom conselho é, em tais casos, sermos acometidos por um ataque de
fígado, no dia 31, à noite, procedendo-se à substituição do calendário, na
parede da cozinha tomando uns sais de frutos. Que ninguém veja nisto um sinal
de menos respeito pela maravilhosa época, vivida por toda a Humanidade, em
Dezembro. Ah, não. Que ninguém escreva para o Debate!
Mas
que também é uma grande estopada isso é. Sobretudo, porque não temos férias,
durante o mês inteiro, para bem tratarmos de todos os pormenores e de todas as
regras de uma vida social correcta e amistosa.
Entretanto,
meus amigos, Boas Festas.
(Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1700, 20 de
Dezembro de 1957, p. 1)
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
LULUS E
VIRA-LATAS
Gouvêa
Lemos combatia a falta de ética no jornalismo, na condução da função de
jornalista em si, como nas relações entre os profissionais ou mesmo entre as
organizações de imprensa, especialmente as da "Província".
Lembro-me
da Mãe me comentar que esta crônica nasceu de problemas com um colega do
próprio grupo "Notícias da Tarde", mas ligado ao “Notícias” (dois
jornais do mesmo grupo empresarial). Não colocarei aqui o nome que tenho em
memória desse “colega” por receio que esta me traia e com isso passe por leviano.
De
qualquer forma os conceitos abordados na crónica "Lulus e Vira-Latas"
podem ser projetados em várias situações e posturas de seres humanos, na área
do jornalismo de então, no atual, ou mesmo em outras posições profissionais ou
sociais.
Zé Paulo
LULUS E VIRA-LATAS - Gouvêa Lemos, na Coluna "Mesa Redonda"
Como brotam e como enrigessem os verdes troncos - com bom adubo -,
lado a lado, dos cobardes e dos aventureiros! Dos lulus e dos vira-latas.
Nunca
foi tão fácil a vida para os cretinos e para os nulos, desde que sejam apáticos
ou espertos. Ou melhor -: aparentemente apáticos e na realidade espertos. Basta
dizer que sim, que sim e por trás da cortina pedir que mais, que mais. Garantir
que V. Exª. é um sustentáculo do império e esperar um dividendozinho da
exploração industrial do mesmo império. Império que não tem nada a ver com a
verdadeira acepção da palavra. É um império diferente. Trata-se de imperar
sobre a credulidade alheia; sobre a bondade alheia; sobre a educação alheia;
sobre os escrúpulos alheios. Sobre tudo o que é alheio e positivo, mas não se
manifesta.
É
sobre tudo isso que se tepa, se lançam raízes e se germina e cresce. Os
cretinos e os aventureiros. Os lulus e os vira-latas.
( Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1686, de 04 de
Dezembro de 1957, p. 1 e 2)
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
“Católico-progressista...”
Jornal Tribuna – 1962
Fiquei
admirado um dia destes ao ouvir que é mau ser católico-progressista. Confesso
que julgava outra coisa e nunca supus que por trás de tal designação se
escondessem tão pérfidos sujeitos, que sob capa de santos, afinal tramam a
perdição do mundo e a desgraça da humanidade. Assim como se trouxessem o terço
na mão esquerda e um punhal na direita. Ou ao contrario; quer dizer, o punhal
deve estar na esquerda..!
Pensava
eu que um católico-progressista era uma pessoa que, além de crer em Deus e
seguir a fé cristã, obedecendo à Igreja Católica, se comportava de harmonia com
uma consciência social, que lhes advinha da própria doutrina social dessa mesma
Igreja, preocupando-se com o cumprimento dos princípios expostos nas encíclicas
pelos Papas que se debruçaram sobre os problemas humanos do seu tempo.
Em
linguagem popular, eu poderei dizer que estava convencido de que um
católico-progressista era um cidadão que por ser temente a Deus, não se
contentara em tratar de solicitar com fervor a salvação da sua alma, prosternando-se
perante os altares, e promovendo concomitantemente a salvação do seu corpo,
prosternando-se, cá fora, perante os poderosos, além de buscar a indispensável
tranquilidade de espírito, em relação ao seu semelhante (ama o próximo como a
ti mesmo), dando regularmente a sua esmola.
Uma
espécie de avença: o céu, a dois escudos por semana – ou mais, consoante as
posses. Vide os exemplos edificantes dos cidadãos filantropos, a quem os bens
morais até logram correspondência nas honrarias deste mundo, sob a forma de
comendas, bustos, lápidas e outras consagrações.
Julgava
eu que ser católico-progressista era mais que isso, que tanta vez não significa
nada além de egoísmo e vaidade, comodismo e inconsciência desumana. Julgava eu
que ser católico-progressista era ser católico e progressista. Isto é, viver a
sua religião e lutar pelo progresso do homem; honrar a Deus e ser irmão do
homem; ao fim e ao cabo honrar a Deus, sendo fraternalmente defensor de todos
os homens. Quando os homens sofrem misérias, ser contra a miséria; quando os
homens sofrem injustiças, ser contra a injustiça; quando os homens sofrem
prepotências, ser contra a prepotência; quando os homens são explorados, ser
contra a exploração; quando os homens são escravizados; ser contra a escravidão;
quando os homens são ignorantes, ser contra a ignorância. Quer dizer; não ser
retrógrado, ser avançado, não ser regressista, ser progressista.
Julgava
eu que assim deviam ser todos os católicos; mas activamente, e não só por
atitude, não só por ir à missa todos os domingos e tratar reverentemente a
hierarquia da Igreja e sem ser da Igreja. Julgava eu que Jesus Cristo não tinha
vindo ao mundo criar magníficos poemas para recitarmos de joelhos, pelos
séculos dos séculos e sim ditar uma doutrina para se realizar.
Julgava
eu que um católico era progressista na medida em que se esforçasse por realizar
essa doutrina, tendo de arrastar até com perigos, os perigos personificados
pelos sujeitos que cerram fileiras e apontam dedos quando não apontam armas
contra os que desejam progresso, paz e fraternidade, e que sendo católicos,
aspiram pela dignificação do homem que Deus criou à sua imagem e semelhança, e
que ainda se arrasta por esse mundo além, em condições que até fazem duvidar
dessa Verdade.
Julgava
eu e julgo – pois dou ao diabo o que dizem esses fariseus que haviam de
crucificar Cristo uma e cem vezes, se Cristo voltasse à Terra, e eles a
governassem.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
“A
terminologia no Jornalismo”
Jornal Tribuna – 1962
O
monhé* U Thant e o mulato Bunche são expressões que leio em artigos de jornal
cá da terra. Artigos sobre um problema de política internacional, que tal é o
da intervenção da ONU na província congolesa do Catanga. Não sou amigo, parente
ou inimigo do Sr. U Thant nem do Sr. Bunche, como não sou amigo, parente ou
inimigo do Sr. Tshombé ou do Sr. Adenauer, por exemplo. Falando de
personalidades como estas, em artigo de jornal, só há uma coisa que eu devo
ser; jornalista.
Assim,
o que acontece é que mesmo quando pessoalmente eu não simpatizasse com o papel
desempenhado por Tschombé ou com a política representada por Adenauer, nunca os
chamaria em crônica política, respectivamente, moleque ou boche**, por exemplo.
Até nem soava bem. E quando um jornalista se dedica ao comentário político deve
abster-se de insultar pessoas que, para mais, nem o conhecem, e portanto, nem
lhe podem partir a cara.
Confrange-me
ver praticar-se jornalismo assim. Ainda para além do que se pode simplesmente
ter como intuição ou daqui com sensibilidade dos leitores, até acontece que
pude aprender umas coisas desta atividade que é a minha profissão, e lembro-me
bem de me ter sido ensinado que o comentarista político deve manter, antes de
tudo, a sua serenidade de espírito, indispensável para atingir a imparcialidade
obrigatória e conseguir a observação justa.
Ora,
quando um sujeito se ocupa de política internacional e, logo de saída,
adjectiva desrespeitosamente importantes personalidades intervenientes nos
factos que vai focar, ele pode estar disposto a tudo, até a alistar-se como
voluntário desinteressado monetàriamente (para não ser mercenário), mas não
está a fazer jornalismo.
Em
nome de quê, gostava eu de saber, com que autoridade moral é que um sujeito em
Lourenço Marques, publica artigos a chamar monhé a U Thant e mulato a Bunche
(revelando aqui mesmo um belo racismo de muito nível), só porque não está de
acordo com a atitude assumida pelas Nações Unidas no Catanga?
Despreza-se
o público para quem se escreve, por duas formas; porque, em vez de
esclarecimento de um problema se servem insultos; quer dizer que onde se devia
ajudar o leitor a formar uma opinião, se solicita a irritação, a exaltação, a
raiva; e porque, traindo um dever da Imprensa, se baixa a terminologia a um
plano de cavalariça, esquecendo que é no jornal, precisamente, que uma grande
parte da população vai colher elementos para o enriquecimento da sua linguagem.
Embora
já estivesse habituado a ler por aí, segundo uma técnica de títulos muito
inusual, palavrões em parangonas, insultos a colunas, que aliás deve ter
causado grandes perturbações nos areópagos internacionais e dado amargos de
boca aos governantes das maiores potencias... desta vez tive mais pena,
confesso, porque a coisa foi lida no “Notícias”.
Não é
jornalismo tal pratica. E até nem é conveniente, pois isto de políticas é coisa
de grandes contingências e reviravoltas e nunca se pode jurar que não venham
necessidades da mesma ordem que orientam hoje as remessas de lama, a impor
aspersões de água de rosas sobre as mesmíssimas cabeças. Nisto de políticas, a
gente nunca sabe no que dá.
Além
de que não é bom generalizar o hábito de homens dos jornais chamarem nomes
feios em função de aspectos físicos, o que pode levar a resultados desastrosos.
Notas do António Maria:
*Monhé - adjetivo em parte ainda usado - em Portugal e todas as ex colônias africanas - para identificar as pessoas de origem indiana ou paquistanesa.
** Boche - adjetivo em parte ainda usado - em Portugal e todas as ex colônias africanas - para identificar as pessoas de origem germânica. (A palavra Boche tem a sua origem na marca industrial alemã, conhecida mundialmente; Bosch)
Ambos adjetivos mencionados acima, apesar de serem irrefutavelmente depreciativos na sua origem, são usados também algumas vezes na linguagem popular entre amigos. Assim como no Brasil se usa ainda os termos; “nêgo”, “morena”, “japa” ou “galego”, sem se ter a intenção de ofender alguém, ou estar diretamente ligado com a origem racial da pessoa a que se refere. Em Moçambique usa-se também a palavra “monhé” para descrever um “comerciante astuto” . E “boche”, define alguém “disciplinado” e voltado para a “qualidade” do que se faz.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Em
tempos de descoberta de água na Lua, vale a pena reler...
Coluna
Mesa Redonda - por Gouvêa Lemos, em Dezembro de 1957
VAE VICTIS!
Ninguém
pense que a URSS tem saldo positivo de pontos neste match sem fim com número
ilimitado de rounds, em que anda entretida com os EEUU.
Não.
Esses socos, género satélites e projécteis e mesmo o recente uppercut na
atmosfera, que foi o tal goofnik americano, são coisa nenhuma no campo do
espírito e das ideias. E aí, sim, é que se travam as grandes batalhas e se
conseguem as vitórias duradouras, efectivas.
Ora,
pelo que sabemos, o comunismo não fez, até agora, estragos notáveis na América.
Até se considerou McCarthy um visionário, a esgrimir com moinhos de vento. Há
por lá uns tipos isolados com a mania do marxismo, que nada representam se os
compararmos, em número e significado, com os que têm, por exemplo, a mania do
chewing gum.
Em
contrapartida, soube-se por uns rapazinhos russos, jogadores de qualquer coisa,
recentemente idos a Londres, que o rock'n roll, além do jazz, entrou já na Rússia
e que Elvis Presley tem uma grossa falange de fans soviéticos.
Pronto.
Vejam, depois disto, se conta alguma coisa, no plano do domínio universal, a
tal luta pelo espaço. A Rússia do futuro há-de mandar o Khrushchev para a Lua,
em foguetão especial e o Rock dominará, por fim, as estepes!… Pobre Kremlin!
Vae victis…
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
GL ouvia
isto...
sábado, 7 de novembro de 2009
Gouvêa
Lemos por Luis David
Depois que
retornei a ter mais contacto com Moçambique e/ou com pessoas de e em
Moçambique, facilitado com o advento da internet, vi pela primeira vez na
imprensa moçambicana alguém do meio a reverenciar o nome do jornalista Gouvêa
Lemos formalmente.
Quando isso
aconteceu já eu vinha a algum tempo tendo contacto com o Luis David, e a mim já
me passava toda a sua admiração pelo trabalho e pessoa do GL. Ele e a sua
companheira Ana David. A Ana é, inclusive, responsável por hoje eu ter algumas
das crônicas que estão e estarão sendo mostradas neste espaço, pois como boa
amiga teve a iniciativa de pesquisar e me enviar um valioso material.
A crônica do Luis
David aconteceu em um momento não feliz para nós, filhos do GL e da Pim, pois
foi quando eu lhe passei a notícia do falecimento da Mãe, quando nos honrou com
um belo espelho dos que foram um casal.
Zé Paulo
Um jornalismo que precisamos saber seguir
Não
resisto hoje, aqui e agora, a transcrever uma mensagem que me chegou por via
das novas tecnologias. Pelo computador. Diz assim: "Maria Madalena Queriol
Macieira Moreira de Carvalho Gouvêa de Lemos, viúva do jornalista
luso-moçambicano Gouvêa de Lemos, faleceu no dia 4 de Abril de 2000. Madalena,
Pim para os amigos da família, faleceu em consequência de um aneurisma cerebral
seguido de um colapso cardíaco aos 76 anos, 2 dias depois do vigésimo
aniversário do falecimento do seu companheiro António Gouvêa Lemos. Madalena
representou a verdade do ditado que diz: "Por trás de um grande homem
sempre existe uma grande mulher". Compartilho Madalena com o jornalista e
homem Gouvêa Lemos momentos de grande sacrifício em nome da lealdade com os
princípios de justiça e de coerência, com os ideais éticos necessários para se
ser um jornalista de facto e de direito. Madalena ficou viúva aos 49 anos com
cinco filhos para criar. Nunca tinha trabalhado até então mas transformou-se em
uma leoa para com muita dignidade criar e preparar a sua prole para a vida.
Deixou de ser só Mãe para passar a ser também Pai sem nunca ter deixado de
faltar a seu filhos a presença do exemplo que tinha sido o Pai por direito, na
sua integridade como ser humano. Como sou feliz por ter tido a sorte de ser
filho destes dois PAIS que além de tudo me deram os meus queridos
irmãos.".
Infelizmente,
esta mensagem não é dirigida a mim. Ou só a mim. Ela é dirigida, e por isso
aqui a divulgo, a quantos conheceram e privaram com Gouvêa Lemos e Madalena. É que
eu, de Gouvêa Lemos conheço apenas o exemplo, quando ainda aprendiz de
jornalista. Ou, neste hoje, o testemunho e a admiração pelo pai sempre presente
nas mensagens enviadas pelo filho Zé Paulo, vivendo lá por terras dos brasis e
que não conheço pessoalmente, e, também, pelo seu irmão António Maria, que
vivendo pelos centros da Europa, já tive o prazer de aboletar em minha casa
nesta terra que sendo minha é de todos nós. De quantos, por ela lutaram e lutam
com dignidade. Deixo, assim, uma mensagem a Maria Inês Nogueira da Costa e a
António Soupa para que acelerem a edição da obra sobre Gouvêa Lemos, com o
patrocínio do outro seu amigo Eugénio Lisboa. E, aqui não pode ficar de fora
Fernando de Magalhães, o autor do texto "O homem que queria ser jornalista".
Como não podem ser esquecidos Malangatana e Ricardo Rangel a par, certamente,
de muitos outros que, tendo estado a seu lado quando isso lhes foi útil,
enveredaram por caminhos diferentes. Mas, deixemos de lado os medíocre e os
oportunistas. Apelemos, então, aos homens bons deste país, aos amigos de Gouvêa
Lemos, já citados alguns, para que a cidade da Beira lhe dê nome rua e o
Presidente da República o condecore a titulo póstumo como exemplo de jornalista
e de um jornalismo que precisamos saber seguir.
* O Luis David é
jornalista moçambicano, reponsavel pelo blog "Antes
e Depois".
**A imagem é parcial de um quadro do artista plástico Vitor Lemos, irmão do jornalista Gouvêa Lemos.
**A imagem é parcial de um quadro do artista plástico Vitor Lemos, irmão do jornalista Gouvêa Lemos.
Retalho
do programa radiofônico “Escola Nova” de Lisete Lopes
PERGUNTA: O que pensa da criação dum jornal infantil e qual a orientação a
dar-lhe?
RESPONDE Gouveia Lemos
Toda
a gente concorda que em qualquer literatura especificamente infantil, deve-se
orientar pelo futuro dos homens em potencial, a quem se dirige, cultivando
neles valores positivos do espírito.
As
crianças estão a brincar no átrio da sociedade em que hão-de cumprir a sua
vida; pois então que a literatura infantil as integre harmonicamente nessa
sociedade, fazendo-as amar o próximo, estimar a paz, buscar o progresso da
Humanidade.
Posta
esta hipótese de ser editado um jornal infantil em Moçambique, decorre daquele
pressuposto, que essa publicação terá de ser, além de indispensável
divertimento e jogo intelectual à medida do entendimento dos seus leitores,
algo mais que um jornal de quadradinhos, igual a tantos outros, importados, que
por aí se vendem, tipo “stantard”, estereotipados na tipografia e no contexto.
Para fazer mais um desses e gritar depois que o prefiram porque é local, vale
mais estar quieto. Julgo que um jornal para as crianças de Moçambique tem um
importante papel a cumprir e só poderá cumprir se for defendido, logo ao
nascer, de certas deformações correntes, há muitos anos.
(Lembro-me,
a propósito duma certa manhã de sábado, em que o meu filho mais velho chegou da
Escola, impressionadíssimo e confuso, por causa duma história de piratas, que
fora o tema duma prédica).
Ora,
se tal jornal aparecer – e oxalá que sim – deverá colocar o seu leitor num
pedestal, onde só cheguem sentimentos como a fraternidade, sobretudo, para além
de raças. (Serei mais claro, pois ninguém me acusará de racista, pelo meu
anti-racismo). Um jornal infantil de Moçambique não pode conter, nas suas
histórias, exclusivamente, heróis de caracóis loiros, como não deve inserir,
subsidiariamente, histórias para africanos. É necessário que se crie uma
literatura infantil bem nossa, isto é, que reflita esta sociedade que
constituímos e sirva verdadeiramente à sociedade que pretendemos desenvolver.
Que
em cada pequeno leitor se fecunde a matriz da igualdade e não se consinta no
aparecimento de pragas como os preconceitos de que a Humanidade, tanto a custo
e com derramamento de tanto sangue, se vem pelos séculos libertando.
Penso
que, entre nós, a preocupação máxima, absorvente, de todos os instantes, na
educação dos nossos filhos - que não são poucos mil, mas alguns milhões – deve
ser essa. Portanto, na nossa quiçá nascente literatura infantil, o primeiro
artigo dum programa de trabalho será relativo a essa preocupação, para que os
meninos não venham a julgar-se, na melhor das hipóteses, protectores em vez de
companheiros, padastros em vez de irmãos.
E
outra preocupação deve ser a de não acarinhar e exaltar instintos bélicos nas
crianças; nada de armas, basta de tiros.
Fale-se-lhes
num mundo de paz, sem pistolas nem bombas, com toda a gente feliz, e
explique-se-lhes que isso é possível, se todos os homens quiserem.
Sei
que não disse nada relevante sobre literatura infantil, na generalidade; mas
acredito que, hoje, não será inteiramente inútil dizer estas coisas que penso,
sobre o futuro das crianças de Moçambique.
[Jornal Notícias – em fins da década de 50 ou incios da década de
60]
terça-feira, 3 de novembro de 2009
BEM
TAMBÉM NÃO FAZ…, Por Gouvêa Lemos, em 1957
Reunião do Conselho do Atlântico Norte
a nível de Chefes de Estado e de Governo, Paris, França, 16 de
dezembro de 1957
O meu amigo Almeida, enfermeiro, que durante uns anos me amparou
nas gripes e esgrimiu com o meu paludismo, costumava, quando eu de minha
própria medicina lhe pedia umas drogas, gracejar assim: - Tome. Se não lhe
fizer mal, bem também não faz.
É um
veterano e competente profissional, que já viu chagas e gangrenas, desde Macau
a Cabo Verde e tem mais fé no bisturi, no termocautério e nos pontos naturais,
do que em demoradas terapêuticas.
Agora,
lendo telegramas e embrenhando-me, por dever de ofício, no que dizem e redizem
os chefes de Estado reunidos em Paris, na discutida conferência da NATO,
lembrei-me do meu amigo Almeida enfermeiro.
A
experiência tem-nos ensinado que não é pelos motivos agitados que nessas
assembleias, que se fazem as guerras - ou que se não fazem.
Seja
como for, é preciso discutir. Se não fizer mal, bem também não faz…
[Col. Mesa Redonda - Notícias da Tarde 1957]
domingo, 1 de novembro de 2009
Dias
Eleitorais, por Gouvêa Lemos – Notícias da Beira – 15/06/1969
Vivemos
dias intensamente eleitorais. Sentimos isso – nós, os jornalistas profissionais
de Moçambique – no noticiário internacional que publicamos, nas conversas de
café (o café é a nossa horta) e no pequeno mundo da classe profissional.
Estamos
hoje chegados ao termo da eleição presidencial imposta à França, no referendo
de Maio, pela derrota do general De Gaulle. A vitória do general De Gaulle está
à vista, como se sabe, garantindo-se a continuidade do regime no nariz gaulista
de Pompidou e no resto.
Aqui
ao lado, faltam poucos dias para outro referendo, em que Ian Smith resolveu
fazer um jogo perigoso. Quantos dirão sim e quem dirá não às bases sem realismo
duma constituição racista e sem futuro? Falta a Smith a altura do grande
Charles. Falta aos farmers da Frente Rodesiana, que empurram Smith para esta
aventura, saberem política. E falta saber quem pagará a conta, já que nos
últimos quatro anos não têm sido só os rodesianos a suportar os encargos da
independência unilateral. Nós sabemos disso.
No
âmbito interno, fala-se por aí de candidatos a deputados por Moçambique à
Assembleia Nacional. Ainda não se sabe, ao certo, quem serão eles e, portanto,
seria prematuro fazer quaisquer comentários a seu respeito. Referem-se, porém,
alguns nomes de ex-futuros-candiidatos. Pessoas que estiveram indigitadas para
figurar em listas de candidatura e que, depois, foram retiradas. Toda a gente
que conheço concorda com a retirada. Os responsáveis devem considerar este
facto um bom indício. Uma espécie de consulta pré-eleitoral com resultado
positivo.
Também
os redactores e repórteres da Imprensa diária andam em ânsias de voto para a
eleição dos primeiros corpos gerentes da secção de Moçambique do Sindicato
Nacional dos Jornalistas, a realizar esta manhã. Supreendentemente, no pântano
fizeram-se ondas e, mais que a lista única, surgiram duas, apareceram três. A
segunda anulou a primeira, é verdade, mas da simbíose resultante, apesar de
eficientemente apoiada por astuta articulação e penetrante propaganda, parece
que não vai nascer o triunfo, por uma dessas circunstâncias fortuitas,
poderosas contingências de valor psicológico, tantas vezes decisivas das
eleições, à margem e acima dos mais prestigiosos candidatos e promissores
programas. O caso é que, havendo práticamente uma só lista, a certa altura
reformulada, em que o lugar do presidente da Direcção apresentava como
candidato Rui Cartaxana, chefe da Reportagem do «Notícias», de Lourenço
Marques, parecia que este vencedor certo, com votos da capital, onde está, e da
Beira, onde esteve durante anos e ganhou fama. Até certa data, os inquéritos a
que ele próprio procedeu, com insistente actualização, davam-lhe uma tranquila
margem. É certo que também se falava um pouco do João Manuel Ferreira Simões,
delegado do «Notícias da Beira» em Lourenço Marques, que tem sido o delegado do
Sindicato em Moçambique e que nessa trabalhosa e humilde tarefa se tem portado
com brio e dedicação. Mas ninguèm supunha que o Ferreira Simões,
voluntáriamente afastado da campanha e, para mais, ao serviço dum jornal da
Beira, detivesse a carreira disparada do Rui Cartaxana. Eis senão quando, uns
colegas atentos, de espírito muito analítico e temperamento laboratorial,
julgaram descobrir e fizeram constar que uma crónica bem escrita, de agradável
humor e lúcida ironia, sobre a idade aparente das senhoras de aparente idade,
que o Rui Cartaxana subscrevia no «Notícias» de 25 de Maio p.p, já tinha sido
públicada no «Diário Popular» de 13 do mesmo mês, com assinatura de Luíza
Manoel de Vilhena. Amigos da onça, estes sujeitos, portaram-se como cabos
eleitorais do Ferreira Simões. Não contentes com a descoberta, propalaram logo
que o Cartaxana é useiro e vezeiro na prática de beber quase todo o conteúdo e
comer a forma quase toda de artigos suculentos de bons especialistas, apresentando-se
depois a opinar ex-cátedra sobre assuntos económicos e de outra natureza com
admiráveis pontos de contacto entre o seu articulado e as teses de qualificados
colaboradores da «Seara Nova», por exemplo.
Ora, se é por isto que ele perde a eleição, acho injusto. O
jornalista é um agente de informação , um factor de cultura. E torna-se muito
delicado e difícil distinguir entre o que ele transmite, por ter assimilado e o
que reproduz, simplesmente, porque é um apóstolo da comunicação. O próprio Rui
Cartaxana virá dar-nos uma explicação do fenômeno. A priori, devo dizer que não
acredito em plágio. Nesta época de vida urgente em que a seleção e a
condensação se apresentam como virtudes dos mais media, a compilação do que de
mais importante se escreve na Imprensa não diária, beneficiando os leitores dos
grandes quotidianos, constitui trabalho não menor da atividade jornalística.
Bem grande nesse labor o dr. Videira Pires, que Deus haja. Por que bater no
Cartaxana? Se o meu camarada Ferreira Simões for eleito, hoje, em consequencia
deste grave equívoco, não poderá orgulhar-se da vitória.
sábado, 31 de outubro de 2009
Momento de
Poesia
Anoitecia quando eu
passei
Na doca dos pescadores.
Uma lanterna luzia à ré
Duma traineira sem nome.
A mancha dos mestres humildes
Sem nenhuma galhardia
Riscava de carvão
A cinza do anoitecer.
E parando-se a olhar
—Olhando somente o mar—
Eu parado não sabia
Se os homens são bons ou maus.
Passou um carro a zunir
E lá dentro vozes riam.
Depois fiquei só, mais a noite
Mais os barcos e a lanterna,
Submersos em maresia.
Um vulto, de repente
Roubou a luz amarela
Àquele nocturno palpável,
—Oh! João! Já vais?…
Da terra ninguém respondeu.
Só se ouviu de novo o mar.
E enquanto ali fiquei
—Preso ao mar e libertado—
Por mais que eu procurasse,
Nenhuma ideia encontrei
—Nada que me lembrasse
Problemas sociais.
As palmeiras da avenida
Com o vento recitaram
Umas frases sem conceito.
E nada mais.
Gouvêa Lemos
Na doca dos pescadores.
Uma lanterna luzia à ré
Duma traineira sem nome.
A mancha dos mestres humildes
Sem nenhuma galhardia
Riscava de carvão
A cinza do anoitecer.
E parando-se a olhar
—Olhando somente o mar—
Eu parado não sabia
Se os homens são bons ou maus.
Passou um carro a zunir
E lá dentro vozes riam.
Depois fiquei só, mais a noite
Mais os barcos e a lanterna,
Submersos em maresia.
Um vulto, de repente
Roubou a luz amarela
Àquele nocturno palpável,
—Oh! João! Já vais?…
Da terra ninguém respondeu.
Só se ouviu de novo o mar.
E enquanto ali fiquei
—Preso ao mar e libertado—
Por mais que eu procurasse,
Nenhuma ideia encontrei
—Nada que me lembrasse
Problemas sociais.
As palmeiras da avenida
Com o vento recitaram
Umas frases sem conceito.
E nada mais.
Gouvêa Lemos
PATRIOTEIRISMO
A consciência plena da nacionalidade
que se tem, o orgulho inteligente de a ter, fundamentados ambos no verdadeiro
conhecimento da História e na apreciação imparcial das realidades actuais; mais
a preocupação sincera pelo futuro da Nação de que se é membro, com o desejo de
colaborar na elevação do seu nível econômico, social e espiritual - tudo fundido
na forma de uma personalidade vincada, que leva a guardar ciosamente o direito
de ter opinião e participação no que é nacional e tudo realçado pelo amor à
terra que é a nossa, a dos nossos antepassados e a dos nossos filhos e pela
veneração das memórias daqueles que se ilustraram, de qualquer modo, ao serviço
da Nação e ainda pelo respeito daqueles que abnegadamente a servem hoje - tudo
isso se chama patriotismo.
É um
sentimento antigo, cuja origem se perde nos séculos e tem raízes na própria
natureza humana.
Não
foi criada recentemente e não se manifesta por gritos, melindres histéricos,
escrúpulos despropositados e receios de invasão por forças estrangeiras através
de manifestações ligeiras e divertidas, de actividades inconsequentes e de
factos, frases ou escritos sem qualquer significado especial.
Aí
começa outro fenómeno e esse não tem nada a ver com o cérebro nem com o
coração. Só terá a ver alguma coisa com o cérebro, em certos casos e isso
mesmo, se considerarmos a esperteza uma qualidade intelectual. De resto,
explica-se pela ignorância, pela estupidez ou pelo desequilibro nervoso. É o
patrioteirismo.
Encontra-se
muito nos sujeitos que se arvoram - eles próprios - em pais da Pátria e que se
sentem no dever de se ofenderem - por ele e pelos que julgam indiferentes -
como tudo quanto se esforçam por considerar grave e não tem gravidade nenhuma.
Indignam-se e pespegam lições de portuguesismo, sem cuidarem primeiro de saber
se quem as recebe delas precisa ou as pode ministrar. Falam sempre na primeira
pessoa. Porque eu, na minha qualidade de português, jamais consenti, não
consinto nem hei-de consentir que, diante de mim, etc. e tal.
Há
também os que se afligem, no seu portuguesismo de alfarrábio, porque se
comparam em certos campos, realizações estrangeiras ou conquistas de outros
povos, como o que nós fazemos, com o que nós temos. E não curam de explicar ou
de justificar as diferenças, nem dão tempo a que o outro faça tal. Enfurecem-se
patrioteiramente e, envergando a armadura, enfiando o elmo e de lança em riste,
acometem o mouro, berrando sandices.
O
patrioteiro - da família das sensitivas - dá-se muito bem em climas quentes.
[Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1705, em 27 de
Dezembro de 1957, p. 1 e 5 na Col. Mesa Redonda.]
Carta
aberta a Gouvêa Lemos e a tecnocratas - Por Carlos Adrião Rodrigues
Esta
"carta", escrita pelo Dr. Carlos Adrião Rodrigues, foi editada no
jornal V.M. (Voz de Moçambique) de 06 de Fevereiro de 1972, quando Gouvêa Lemos
estava de partida para o Brasil.
Carta aberta a Gouvêa Lemos e a tecnocratas.
Por
Carlos Adrião Rodrigues
Meu caro Gouvêa Lemos:
Soubemos que se ia embora, por altura do Natal, época de Paz, Caridade e Amor, como mandam as virtudes cristãs. Por essa altura é costume as corporativas festas das empresas, onde bota formalmente discurso o director de companhia ou gerente. Nas taças verte-se, às vezes, champanhe - Monte Castro nas dos empregados, Moet et Chandon, sorrateiramente, nas dos directores. Tudo aquilo borbulha e os corações põem-se em uníssono quando o director fala. E o director fala sempre do capital humano. É de bom tom, é chique, está na moda. Director que não fala de capital humano arrisca-se a não ser cumprimentado na rua pelos seus colegas directores e a levar umas piadas no Sheik rico, quando se reunir com outros directores que Portugal precisa do seu capital humano, que é preciso fixá-lo à terra e alguns mais saudosistas, arriscando-se ao franzir de olho de um tecnocrata mais evoluído, dirá mesmo que todos não somos de mais para continuar Portugal. O que, aliás, é corroborado pelas estatísticas do último censo que aclaram que somos menos.
Ora este capital humano somos você e eu, meu caro Gouvêa Lemos, e outros como nós que não fomos para a França ou para a Alemanha ou mesmo para a pobrezita república vizinha, a da moeda fraca e desvalorizada.
Formam-se comités para fixar o capital à terra e dizem-se até que o director da companhia em que você estava era pessoa muito salutarmente activa em fixar a Moçambique esse capital humano itinerante que é o nosso soldado. E assim tem surgido, embora com a parcimónia dos nossos meios, o soldado-colono.
Pois é nesta altura que você, meu caro Gouvêa Lemos, que foi e é, o mais certo, o mais competente, o mais qualificado e o mais vertical dos nossos jornalistas, tem de deixar a terra, o país, a Pátria - e ir-se embora, para terra estrangeira, embora irmã na língua.
Você tem no seu palmarés, aqui em Moçambique, e que eu saiba, a 'Tribuna' (a tal); a 'V.M.' (semanário) e o 'Notícias da Beira'. Tudo jornais que você fez, de cujas vicissitudes não é responsável, mas que foram, durante o tempo em que você efectivamente os orientou, o que de melhor se fez no jornalismo em Moçambique. Muita gente que julgou que a 'Tribuna' era as 'deixas' da 1ª. Página, a 'V.M.' o impacto também da 1ª. Página, e o 'Notícias da Beira' o escorreito da paginação. Mas não era nada disso. Era, sobretudo, a dignidade do tom, a justeza das posições tomadas, a renúncia a excitações demagógicas do leitor e ao sensacional fácil. Tudo isto, por 'fas ou por nefas' - e se exceptuarmos a 'V.M.', evidentemente, onde só a qualidade se perdeu - desaparece ou se esbate quando você se afasta. Lembro-me que na 'Tribuna' bastou você ao fim de meses de trabalho sem folga ir à praia para aparecer o célebre 'Vamos chovar'!
Muita gente esquece-se que o jornal não é um tribunal, nem uma Assembleia; um jornal é um… jornal. Ali se arrumam os factos, se informam as pessoas e se expressam opiniões, com as quais se tenta formar as pessoas. Mas formar pessoas é, sobretudo, não arregimentá-las, é criar-lhes o sagrado hábito de pensar.
Tudo isto você tentou fazer. Foi um bom combate, mesmo que não tivesse sido ganho. Mas agora que a preocupação dos que dominam os jornais é precisamente oposta à forma como você encarava o jornalismo - não há dúvida que a única solução é emigrar.
Nós por cá, Gouvêa Lemos, vamos ficando. Somos cada vez menos. Muito provavelmente teremos alguns que lhe seguirão as pégadas. Já não somos sequer os puros que éramos, alguns anos atrás. Mas há uma coisa que ainda somos e por isso nos diferenciamos dos outros animais: seres humanos!
[In: A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano XIII, nº. 358, 6 de Fevereiro de 1972, p.2]
Soubemos que se ia embora, por altura do Natal, época de Paz, Caridade e Amor, como mandam as virtudes cristãs. Por essa altura é costume as corporativas festas das empresas, onde bota formalmente discurso o director de companhia ou gerente. Nas taças verte-se, às vezes, champanhe - Monte Castro nas dos empregados, Moet et Chandon, sorrateiramente, nas dos directores. Tudo aquilo borbulha e os corações põem-se em uníssono quando o director fala. E o director fala sempre do capital humano. É de bom tom, é chique, está na moda. Director que não fala de capital humano arrisca-se a não ser cumprimentado na rua pelos seus colegas directores e a levar umas piadas no Sheik rico, quando se reunir com outros directores que Portugal precisa do seu capital humano, que é preciso fixá-lo à terra e alguns mais saudosistas, arriscando-se ao franzir de olho de um tecnocrata mais evoluído, dirá mesmo que todos não somos de mais para continuar Portugal. O que, aliás, é corroborado pelas estatísticas do último censo que aclaram que somos menos.
Ora este capital humano somos você e eu, meu caro Gouvêa Lemos, e outros como nós que não fomos para a França ou para a Alemanha ou mesmo para a pobrezita república vizinha, a da moeda fraca e desvalorizada.
Formam-se comités para fixar o capital à terra e dizem-se até que o director da companhia em que você estava era pessoa muito salutarmente activa em fixar a Moçambique esse capital humano itinerante que é o nosso soldado. E assim tem surgido, embora com a parcimónia dos nossos meios, o soldado-colono.
Pois é nesta altura que você, meu caro Gouvêa Lemos, que foi e é, o mais certo, o mais competente, o mais qualificado e o mais vertical dos nossos jornalistas, tem de deixar a terra, o país, a Pátria - e ir-se embora, para terra estrangeira, embora irmã na língua.
Você tem no seu palmarés, aqui em Moçambique, e que eu saiba, a 'Tribuna' (a tal); a 'V.M.' (semanário) e o 'Notícias da Beira'. Tudo jornais que você fez, de cujas vicissitudes não é responsável, mas que foram, durante o tempo em que você efectivamente os orientou, o que de melhor se fez no jornalismo em Moçambique. Muita gente que julgou que a 'Tribuna' era as 'deixas' da 1ª. Página, a 'V.M.' o impacto também da 1ª. Página, e o 'Notícias da Beira' o escorreito da paginação. Mas não era nada disso. Era, sobretudo, a dignidade do tom, a justeza das posições tomadas, a renúncia a excitações demagógicas do leitor e ao sensacional fácil. Tudo isto, por 'fas ou por nefas' - e se exceptuarmos a 'V.M.', evidentemente, onde só a qualidade se perdeu - desaparece ou se esbate quando você se afasta. Lembro-me que na 'Tribuna' bastou você ao fim de meses de trabalho sem folga ir à praia para aparecer o célebre 'Vamos chovar'!
Muita gente esquece-se que o jornal não é um tribunal, nem uma Assembleia; um jornal é um… jornal. Ali se arrumam os factos, se informam as pessoas e se expressam opiniões, com as quais se tenta formar as pessoas. Mas formar pessoas é, sobretudo, não arregimentá-las, é criar-lhes o sagrado hábito de pensar.
Tudo isto você tentou fazer. Foi um bom combate, mesmo que não tivesse sido ganho. Mas agora que a preocupação dos que dominam os jornais é precisamente oposta à forma como você encarava o jornalismo - não há dúvida que a única solução é emigrar.
Nós por cá, Gouvêa Lemos, vamos ficando. Somos cada vez menos. Muito provavelmente teremos alguns que lhe seguirão as pégadas. Já não somos sequer os puros que éramos, alguns anos atrás. Mas há uma coisa que ainda somos e por isso nos diferenciamos dos outros animais: seres humanos!
[In: A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano XIII, nº. 358, 6 de Fevereiro de 1972, p.2]
Ainda
o Poeta Craveirinha
Gouvêa Lemos
Mais
Uma vez esses
Teus princípios de costume
Em começar o próprio destino
Na eterna mudança
Meu
Doido poeta
Sempre na aventura de partir
Não indo embora
Racismo
Comeste
À mesma mesa o branco
Arroz da mulata Maria servindo-te
O molho da mútua fraternidade.
Era
Essa a tua guerra
Ou era só isso o teu excêntrico
Racismo?
Teus princípios de costume
Em começar o próprio destino
Na eterna mudança
Meu
Doido poeta
Sempre na aventura de partir
Não indo embora
Racismo
Comeste
À mesma mesa o branco
Arroz da mulata Maria servindo-te
O molho da mútua fraternidade.
Era
Essa a tua guerra
Ou era só isso o teu excêntrico
Racismo?
*Clique sobre a
imagem para ler os poemas datilografados pelo Poeta.
GL ouvia
isto...
O
chapa e poeta José Craveirinha.
O
Poeta José Craveirinha, na década de sessenta, escreveu um bilhete comentando
sobre Gouvêa Lemos. Dizia ele:
"Têm complexos aqueles indivíduos de cor que:
Não tiveram a
sorte de conviver com um branco da grandeza moral de um Gouvêa Lemos que fazia
um mulato ser mulato, um preto ser preto, todos sentindo-se completamente
homens ao lado de homens;
Em termos de
teologia serem filhos do mesmo Deus, em termos de moral serem todos bons e em
termos de ciência serem pessoas normais."
*Clique sobre a
imagem para ler o comentário escrito pelo punho do Poeta.
1972
- Entrevista à Rádio Moçambique - Última parte
1972
- Entrevista à Rádio Moçambique - 3a. parte
1972
- Entrevista à Rádio Moçambique - 2a. parte
1972
- Entrevista à Rádio Moçambique - 1a. parte
Como
documento histórico do jornalismo de Moçambique, entrevista do jornalista
luso-moçambicano, na década de 70, meses antes da sua morte.
“Sr. Procurador, diga ao Governador
que não me vendo nem às esquerdas nem às direitas!”
De Gouvêa Lemos, ao
receber uma proposta para ser diplomata em um país africano com o objetivo de o
afastar do jornalismo luso-moçambicano na década de 60.
GL - Jornalista luso-moçambicano
18/12/1924 - 02/04/1972
Serviu no jornalismo moçambicano nas décadas de 50, 60, e inicio
da 70.
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Com o arrependimento é a primavera da virtude, espero
minimizar nos postais futuros. Aquele abraço e visite-nos, sempre. HM
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