24/05/2015 - 07:29
Uma cidade única e Património da Humanidade, e mais uma página da História, foi tomada pelos radicais. Que ameaçam agora rasgá-la. Há dois mil anos, “era um lugar de tolerância, onde pessoas de vários países e culturas podiam viver juntas. Será o mesmo sob o domínio do EI? Sabem a resposta…”
A presença do autoproclamado Estado Islâmico (EI) em Palmira é uma ameaça à “Veneza das areias”, um “local avassalador” pela sua dimensão, importância e beleza. Um oásis literal e cultural, espaço milenar de tolerância e uma entrada única no grande livro da História da humanidade. A urgência é palpável nas vozes de todos os que lembram que a sua preservação deve ser “uma batalha de todo o mundo”.
A hipérbole é constante nas descrições da cidade-oásis cujo património está agora nas mãos dos guerrilheiros que deixaram uma rota de destruição no Iraque (o museu de Mossul, partes das cidades ancestrais de Nimrud e Hatra, vestígios assírios em Níneve) e que agora ameaçam o antigo entreposto comercial na Síria.
Tal como na quarta-feira os guerrilheiros assomaram a Palmira erguendo as suas bandeiras negras, gerando a fuga do Exército de Assad e dos habitantes que conseguiram escapar, durante milénios vários povos entraram na zona em busca de descanso, dinheiro e do outro – o comerciante de distantes paragens, o mercador do Eufrates, o soldado romano.
A chegada a Palmira tem sido descrita nos últimos dias como uma experiência sensorial especial, desde os viajantes do século XVII e XVIII, quando da sua redescoberta e consequente influência na força do Neoclássico no Ocidente até aos arqueólogos, historiadores e arquitectos que lá confluem para a estudar. “É quase uma experiência fora-de-corpo” a um local “avassalador”, disse ao New York Times o professor Nathanael J. Andrade, autor de Syrian Identity in the Greco-Roman World, recordando a sua visita em 2010 a um dos primeiros locais classificados pela UNESCO como Património da Humanidade logo em 1980, um ano depois das pirâmides de Gizé. As imponentes colunas que se erguem no meio do deserto e o Templo de Bel são os seus cartões de visita.
A arqueóloga francesa Sylvie Blétry, que esteve em Palmira pela primeira vez em 1989 e que há apenas quatro anos trabalhou novamente na região, é emotiva na recordação desse primeiro impacto: “Chegámos depois de uma tempestade e havia um maravilhoso arco-íris sobre a cidade, como se ela nos quisesse dar as boas-vindas. Foi espantoso!” A visita ao sítio arqueológico foi toda uma experiência. “As ruínas ficam nas imediações da cidade moderna, mas ainda assim numa área de deserto e temos a impressão de um lugar selvagem e de liberdade. Os edifícios antigos são feitos de uma pedra local que se torna mais ou menos cor-de-rosa ao pôr e ao nascer do sol.” Circulava-se livremente e fez amigos, lembra, com os quais se preocupa. "...especialmente nos últimos dias. Não tenho notícias deles…”, escreve ao PÚBLICO.
Blétry foi responsável, até 2011, por uma missão arqueológica sírio-francesa em Zenobia, um sítio romano-bizantino, e trabalhou também em Palmira sobre a sua iconografia. “A principal originalidade de Palmira consiste no facto de uma cultura complexa, compósita e mista se ter desenvolvido ali devido ao comércio intenso vindo sobretudo das caravanas mas também de barcos do Eufrates e do Golfo, da Pérsia, Índia e até do Extremo Oriente, rumo ao Mediterrâneo. A influência de muitas religiões pode ser ali encontrada.” Algo que é visível na arquitectura, refere a professora no Departamento de Arqueologia da Universidade Paul Valéry em Montpellier, mas também nas mentalidades de Palmira. “Por exemplo, cada templo ‘romano’ revela elementos arquitectónicos vindos do Ocidente e também do Oriente”. Uma amálgama sem igual em qualquer outro ponto do mundo, garante, como a necrópole “totalmente original” em cujo interior há relevos típicos da região e cenas da mitologia clássica.
Ainda hoje é um ponto nevrálgico na economia e geoestratégia – recentemente “ainda era a principal estrada para Bagdad e o governo teve de construir uma estrada que evitasse o sítio [arqueológico] devido à caravana constante de camiões” que ali passava. “E todos os sírios sabem sobre a sua rainha Zenobia [240 –275], que tentou e quase conseguiu construir um império contra os romanos”, diz ainda Sylvie Blétry, frisando o orgulho sírio nessa mulher culta.
Os militantes do EI têm justificado a destruição de relíquias da Antiguidade e património arqueológico na sua esteira pelo facto de representarem a idolatria – mas o valor elevado de algumas peças não lhes escapa e as rotas do tráfico de antiguidades estarão a ser usadas pelo EI para financiamento das suas actividades. Além de a indignação da comunidade internacional perante as perdas humanas e a destruição de pedaços da História da humanidade por parte dos radicais alimentar a sua máquina de propaganda.
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