OPINIÃO
21/05/2015 - 00:10
A forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros.
Daniel Oliveira escreveu um texto no Expresso Diário intitulado “Mãe que arrepia” sobre a reacção da mãe do jovem de 17 anos que assassinou barbaramente um miúdo de 14, em Salvaterra de Magos. Essa mulher escreveu um texto impressionante no Facebook, que tem sido bastante comentado por fugir por completo ao papel tradicional da mãe abnegada, que coloca o amor aos filhos acima de todas as coisas: “Neste momento, estou de luto, enterrei um pedaço de mim que não consigo entender como pôde fazer tamanha crueldade. Deus me perdoe o que vou dizer, o meu filho morreu, o que fez vai ter de pagar e sozinho, pois não posso acompanhá-lo nesta etapa. (…) Preferia mil vezes que ele estivesse no lugar do Felipe. (…) Os pais não têm de pagar pelos erros dos filhos e vice-versa. (…) Peço desculpa a todos os familiares e amigos do Filipe. Ninguém vai conseguir curar a dor da perda. Peço perdão, não posso fazer mais nada nesta hora.”
O artigo de Daniel Oliveira exibe uma indignação profunda pela atitude desta mãe. Escreve ele: “Não posso, sem precisar de mais nada para além do meu instinto paternal, deixar de me arrepiar com a forma como a mãe do homicida de Salvaterra ofereceu à comunidade, na busca de perdão para si, o seu filho para sacrifício.” No seu entender, “os pais amam irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas” e, por isso, espanta-se que “haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal”.
Um importante ponto prévio: não quero avaliar em concreto as condições de vida daquela família, os traumas do homicida — que cresceu longe dos pais e a saltar entre instituições — ou o perfil psicológico da mãe, que entretanto já se mostrou arrependida do que escreveu e disse que iria acompanhar o filho em tribunal. Interessa-me, isso sim, discutir a ideia de que o amor pelos filhos está “acima do bem e do mal”, não por acaso uma frase nietzschiana que tenta superar as categorias clássicas da moral cristã. Moral essa, convém recordar, construída a partir da fé num Deus que entrega o próprio filho para morrer na cruz — ou seja, antes da secularização do mundo, o amor dos pais pelos filhos nunca esteve acima do bem e do mal (é começar nos gregos e acabar em Shakespeare), e até a própria mitologia lusitana cultiva com denodo e admiração a lenda de Egas Moniz, que se entregou de baraço no pescoço, juntamente com a mulher e os seus filhos, ao rei de Castela.
A forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros — daí o interesse da mensagem cristã, mesmo para quem é ateu, desde que tenha superado os tiques mata-frades. Ela é um convite para sair do nosso reduto em direcção ao outro, ainda que esse outro não nos seja próximo — melhor: sobretudo se ele não nos for próximo. Se Daniel Oliveira ficou horrorizado por uma mãe declarar o abandono do seu filho — e consigo entender isso, ainda que lhe aconselhe a audição de Uma canção desnaturada, de Chico Buarque —, eu fiquei sobretudo comovido ao vê-la escrever: “Preferia mil vezes que [o meu filho] estivesse no lugar do Felipe.” Perante uma frase tão forte quanto esta, há quem possa ver nela uma “mãe que arrepia”. Mas eu vejo sobretudo uma mãe que se recusa a colocar o seu coração à frente do sentimento de justiça — e isso, no mundo em que vivemos, é tanto mais raro quanto digno de admiração.
Jornalista, jmtavares@outlook.com
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