OPINIÃO
Das coisas de que guardarei mais grata memória da minha actividade política é a lei que permite restituir a nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal.
Das coisas de que guardarei mais grata memória da minha actividade política é a lei que permite restituir a nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal no final do século XV e no século XVI e que, apesar de todas as errâncias, preservaram a ligação à ancestralidade portuguesa.
Os sefarditas, judeus do Ocidente, estavam cá, como em Espanha, bem antes de Portugal existir. Contam-se entre os nossos fundadores, aqueles que foram dando corpo ao reino de Portugal, o mais antigo dos reinos ibéricos e dos Estados da península. A sua expulsão, na esteira de um movimento que começara em Castela, foi um momento particularmente infeliz. Foram expulsos, primeiro, de Castela e Aragão, vindo dezenas de milhares acolher-se justamente em Portugal, onde reinava D. João II. Mas, poucos anos depois, são expulsos daqui também, sendo já rei D. Manuel, com medidas que feriram tanto os refugiados de Espanha, como os “judeus da nação portuguesa”.
É facto que fontes referem que as perseguições em Portugal foram de grau bastante inferior às ocorridas em Espanha, com grande “tolerância” aos “cristãos-novos”, o que contribuiu para o nosso êxodo judaico não ter sido repentino, mas haver-se distribuído ao longo de décadas. Isso, porém, não serve de justificação, nem desculpa. As leis iníquas são iníquas – e violentas – em si mesmas. Neste caso, serviram sem dúvida também para “legitimar” e alimentar preconceitos populares antijudaicos, contribuindo para o terrível massacre de São Domingos, em 1506, quando uma multidão, acusando os judeus de serem causa de uma seca, fome e peste que assolavam o país, perseguiu e matou centenas de judeus, na zona do actual Rossio – um terrível episódio, conhecido como a “matança da Páscoa” ou o “pogrom de Lisboa”.
Desde muito jovem que, pelas perseguições do nazismo e a história brutal do Holocausto, sou especialmente sensível ao sofrimento do povo judeu. Indignam-me as perseguições que têm sofrido ao longo da História, um pouco por todo o mundo. É coisa que, pura e simplesmente, nunca consegui entender – e só sobra mesmo repudiar. A razão por que milito pelo Estado de Israel tem a ver precisamente com essa vergonha da humanidade, que funda, fora de qualquer dúvida razoável, o direito de os judeus verem reconhecido pelo mundo inteiro poderem dispor da sua própria terra, do seu próprio país, do seu próprio Estado, sem prejuízo de, como em qualquer outro povo e todos os cidadãos livres, poderem emigrar e viver em qualquer parte do mundo, em liberdade e segurança, de acordo com as leis que aí vigorem.
Fui despertado para o caso dos sefarditas através do Facebook, em 2010, abordado directamente por descendentes com apelidos portugueses e escrevendo em português. Logo apresentei perguntas parlamentares aos ministros da Administração Interna e da Justiça do Governo da altura: na linha aberta das nossas leis da nacionalidade, entendia que a naturalização dos descendentes sefarditas já podia ser deferida ao abrigo do n.º 6 do artigo 6º da lei vigente. Chegou a organizar-se uma petição electrónica, que colheu 1500 assinaturas. A organização, porém, dos núcleos de descendentes sefarditas não era suficiente para preparar pedidos concretos, a fim de experimentar a resposta da administração portuguesa. E a dissolução da Assembleia da República, que levou às eleições antecipadas de 2011, interrompeu as diligências em curso.
Foi já no decurso da actual 12.ª Legislatura que a evolução do PS o levou a apresentar um projecto de lei sobre a questão, a que logo se juntou o CDS – aditava-se um novo n.º 7 do artigo 6.º da lei, expressamente dirigido aos descendentes sefarditas. Assim chegámos à importante Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29 de Julho, aprovada por unanimidade no plenário da Assembleia, depois de uma anterior sessão de debate, em 11 de Abril de 2013, que considero, a todos os títulos, histórica e memorável.
Agora, o processo concluiu-se com a publicação, na passada sexta-feira, do Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de Fevereiro, aprovado pelo Conselho de Ministros, em 29 de Janeiro passado, e promulgado pelo Presidente da República, em 24 de Fevereiro – encerrou-se, de forma positiva, o ciclo de intervenção legislativa de todos os órgãos de soberania políticos e democráticos. É um processo que honra Portugal.
A associar-se a este facto histórico, a RTP bem podia reemitir os três episódios da série documental Portugal Sem Fim dedicados à dispersão dos sefarditas portugueses: Terra Permitida – Judeus I, II e III. Talvez até reeditá-los, tratando-se de uma produção de 1986.
Além da unanimidade parlamentar, facto raríssimo numa lei, destaco o trabalho do Governo, ao prever, como também sugeri, a intervenção da comunidade judaica. A regulamentação demorou mais do que previsto, dada a originalidade e a sensibilidade administrativa do caso; mas a demora não foi tempo perdido, foi tempo ganho – solidez e maior maturação do processo. O Governo não se limitou a ouvir os representantes da comunidade judaica para os consultar, mas consagrou a sua colaboração futura nos processos administrativos que venham a correr. Não podia ser doutro modo: só a comunidade judaica possui o conhecimento necessário a certificar a ancestralidade de que se trata e a legitimidade das pretensões individuais. E não deveria ser doutro modo: esta lei é, nalguma medida, uma reparação histórica, ligando de novo o que fora rompido; ora, essa ligação repousa melhor, e sobretudo mais segura, na boa colaboração entre o Estado português e a comunidade judaica, velando ambos pela aplicação justa da lei, evitando abusos ou oportunismos que a desprestigiassem e pudessem pôr em risco e consolidando o novo regime como marco e pilar inapagáveis.
Na intervenção no Parlamento, tive ocasião de dizer: «Hoje é um dia histórico para muitos compatriotas da comunidade judaica, sendo também um dia histórico para nós, Assembleia da República, e para Portugal. É um dia de reparação histórica, um dia de restabelecimento da memória: o dia em que repomos a ligação por cima de 520 anos de separação forçada; o dia em que pomos termo a um hiato que nunca devia ter existido. É como que repor o trato sucessivo da nacionalidade portuguesa, o trato sucessivo da pertença comum, que, no coração de quem partiu, nunca se interrompeu. É o dia em que damos de novo as boas-vindas a quem nunca devia ter tido de partir de Portugal. É, portanto, um dia feliz.»
Esse dia consumou-se exactamente agora, 1 de Março de 2015, data de entrada em vigor quer da lei justa, quer do regulamento devido. É, na verdade, um dia feliz. Estamos de parabéns.
Deputado do CDS-PP
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