quinta-feira, 24 de março de 2016

Os Missionários Combonianos e o Estado Novo

Por: CARLOS NEVES SOBRINHO, Missionário Comboniano



No dia 25 deste mês ocorrem os 25 anos da Revolução dos Cravos, que abriu as portas do futuro ao País. Não faltarão cerimónias para comemorar a efeméride que mudou o regime político e devolveu as liberdades político-sociais ao povo português e pôs termo ao último império colonial do Ocidente. A revolução trouxe um suspiro de alívio aos Missionários Combonianos, cuja permanência no País se encontrava seriamente em risco, dado que se temia a breve trecho a sua expulsão e o encerramento das suas casas de formação. «Além-Mar» recorda alguns dos momentos mais tensos da relação dos combonianos com o Estado Novo, em Portugal e em Moçambique.


OS COMBONIANOS E AS TEIAS DA POLÍTICA

Os problemas dos Missionários Combonianos com o regime político iniciado por Salazar e denominado Estado Novo tiveram início nos anos 60. Os tempos estavam a mudar, o regime continuava demasiado fechado e as tensões eram inevitáveis.

Chegados a Portugal em 1947, eles tinham aberto a primeira casa em Viseu e iniciado a formação de membros portugueses destinados às missões assumidas na diocese moçambicana de Nampula; o Acordo Missionário de 1940, assinado entre o Estado português e a Santa Sé, exigia que todas as congregações missionárias estrangeiras, exercendo a sua actividade nas colónias, abrissem também casas na metrópole para a formação de membros portugueses.
 Em 1956 começaram a publicar uma pequena revista a que deram o nome de Além-Mar; de formato pequeno, primeiro bimestral e depois mensal: era uma aposta no valor da imprensa como meio de difusão do ideal missionário e como porta-voz de um Instituto que procurava tornar-se conhecido entre nós.
Os iniciadores da obra comboniana em Portugal eram italianos, membros de um Instituto nascido em Verona, no Norte de Itália (e precisamente por isso mais conhecidos por “Padres de Verona”); um Instituto quase cem por cento italiano que começava então a abrir-se à internacionalidade. Os campos de missão haviam sido o Sudão, o Uganda e a ex-colónia italiana da Eritreia.
Uma vez chegados ao nosso te, pela sua simplicidade e pelo seu amor ao trabalho. A linguagem usada na revista Além-Mar enquadrava-se perfeitamente no ambiente eclesial de então, em que Igreja e Estado caminhavam de mãos dadas; havia, no entanto, um toque de maior abertura, fruto de experiências de outros territórios de missão para além dos territórios ultramarinos portugueses.

Ventos de mudança

Com o surgir do nacionalismo africano, que levou às primeiras independências políticas no início da década de 60, os missionários católicos assumiram, muitos deles, desde logo, uma atitude de simpatia e abertura aos anseios dos povos daquele continente.
Os ventos que sopravam lá fora não tardaram a fazer-se sentir também cá dentro. «A questão ultramarina tornava-se (...) no mais importante problema do País e do regime, sobre o qual se concitavam também as atenções internacionais. O mundo lá fora mudava, e essa mudança obrigava também a uma viragem neste domínio cá dentro» (M. Braga da Cruz, O Estado Novo e a Igreja Católica, Ed. Bizâncio, 1998, p. 163).
 A revista Nigrizia, editada pelos combonianos da Itália numa veste tipográfica e num estilo jornalístico modernos, sobressaía na defesa dos anseios africanos. Porque ela chegava a Portugal através de alguns números de oferta, o facto não passou despercebido. Assim, o jornal A Voz, quotidiano ligado ao regime salazarista, na sua edição de 11.11.60 publicou a carta de um leitor protestando contra a Nigrizia. Título: «Uma revista missionária de uma congregação que tem casas em Portugal metropolitano e ultramarino faz contra nós uma campanha sistemática.» No texto da carta lia-se: «...a mentalidade e a alma que se apreende em Nigrizia, folheando-a e lendo-a, é francamente, desembuçadamente, antiportuguesa.»
O grupo comboniano em Portugal era ainda, na quase totalidade, composto por italianos (os membros portugueses já formados limitavam-se a três: dois padres e um irmão). Por conseguinte, face a uma acusação destas, passou a ser olhado como uma congregação missionária de ideias contrárias às do Governo português. E este apercebeu-se logo do perigo de ter na metrópole e no ultramar missionários de um Instituto nascido para salvar a África com a África, para quem os africanos eram homens com os mesmos direitos dos outros homens.
A reacção do jornal A Voz provocou um certo receio entre os responsáveis do grupo. Havia que evitar consequências para o futuro, e por isso se compreende o tom da carta resposta do então superior dos combonianos em Portugal publicada no mesmo jornal lisboeta, tomando as devidas distâncias da revista italiana: «Os missionários combonianos de Verona que trabalham em Portugal e no Ultramar português repudiam energicamente a campanha que na revista do seu instituto se faz contra Portugal.»

«Altas esferas» chocadas

Em 1963, a sede da revista Além-Mar mudou-se para Paço de Arcos, onde os combonianos tomavam conta da paróquia e tinham a procuradoria das suas missões. Passou a formato grande e a ser impressa em rotogravura, num esforço de adaptação aos novos tempos; estava-se no início do Concílio Ecuménico Vaticano II. A tiragem aumentou, a difusão alargou-se a todo o País e em breve a revista passou a ser notada no ambiente eclesial português pelo novo estilo que revelava. Dois anos depois do início desta nova fase,Além-Mar viu-se envolvida numa séria questão com o regime salazarista. Não porque a provocasse, por uma infeliz coincidência, simplesmente.
No número de Novembro de 1964 foi publicado um artigo intitulado «Um congresso para a Índia», sobre o Congresso Eucarístico Internacional que naquele mês se realizaria em Bombaim; o texto, da autoria de Fábio Pimentel (pseudónimo do padre Rogério de Sousa, primeiro sacerdote comboniano português e redactor da revista), nada tinha de especial, mas teve o azar de ser publicado num número posto a circular poucos dias após o anúncio da viagem do Papa Paulo VI a Bombaim, a fim de participar no Congresso. Porque o Governo de Salazar declarara, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros Franco Nogueira, essa viagem «um agravo gratuito... praticado pelo Chefe do Catolicismo em relação a uma nação católica» (21.10.64), a revista foi imediatamente suspensa e ao Instituto comboniano foi retirado o reconhecimento oficial de «corporação missionária».
Segundo o director dos Serviços de Censura, em conversa telefónica com o superior dos combonianos, as «altas esferas» haviam ficado muito chocadas, indignadas mesmo, com o teor do artigo. Mais tarde soube-se que se pôs a hipótese da expulsão de todos os combonianos do País. A crise diplomática provocada pela viagem do Papa à Índia atingiu grandes proporções e os filhos de Comboni viram-se envolvidos nela não por mérito próprio mas por um acaso; no entanto, na sanção contra Além-Mar pesou bastante todo o antecedente relacionado com a linha da revista Nigrizia. Numa comunicação do embaixador Faria, junto da Santa Sé, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (Janeiro de 1965), lê-se que à queixa do Vaticano «pela retirada do estatuto missionário aos padres combonianos por terem publicado um artigo sobre a visita do Papa», «o embaixador ripostara que (...) com os combonianos se procedera assim por não seguirem a política portuguesa em África e publicarem nas suas revistas italianas artigos ou referências desagradáveis a Portugal em África» (M. Braga da Cruz, op. cit., p. 175).
A suspensão de Além-Mar manteve-se até Abril de 1965; ao reaparecer, a revista foi obrigada a submeter à censura prévia «os artigos de natureza política ou social e os noticiários susceptíveis de dúvida». Quanto ao resto, ficava ao critério da direcção. Na prática, a censura passou a abranger tudo, fotos inclusive. Em artigo publicado no trigésimo aniversário da revista («Nos tempos do lápis azul», Além-Mar, Maio 1986), tentei descrever a odisseia desses anos de submissão à censura, primeiro salazarista, depois caetanista. Muitas das coisas que outros podiam publicar, Além-Mar não podia. Na redacção éramos obrigados a usar de uma certa astúcia para veicular a mensagem nas entrelinhas, porém com certos riscos: uma vez por outra, leitores mais inteligentes mas ideologicamente criaturas do regime, causavam-nos problemas ao alertar as «altas esferas»... A linha seguida pelos combonianos revelava-se diferente da dos outros, sobretudo na hora da agudização do problema colonial. Por isso, tudo o que eles diziam ou escreviam era passado a pente fino.

Combonianos na berlinda

Pouco antes do 25 de Abril de 1974, deram-se os casos dos padres Alfredo Bellini e Silvano Barbieri, ambos italianos e com passado missionário em Moçambique.
O primeiro ocorreu em Coimbra, onde o padre Alfredo era responsável pelo seminário comboniano a nível de liceu. Durante uma pregação missionária na Igreja de S. Bartolomeu, o padre viu-se publicamente contestado por um dos presentes na eucaristia, militar na reforma. Segundo esse tal, os missionários em geral e os combonianos em particular eram responsáveis pelos problemas que então existiam no Ultramar. O pior foi que a contestação não acabou ali, transformou-se em denúncia feita à DGS. Uma semana depois, o padre foi convocado à delegação coimbrã da polícia de Estado, interrogado e informado tout court de que seria imediatamente expulso do País. Se tal não veio a acontecer, deveu-se à presença de espírito do colega que o acompanhara e que, ao saber do que se estava a passar, correu a informar o então bispo de Coimbra D. João Saraiva; este alertou imediatamente o cardeal-patriarca de Lisboa e a ordem de expulsão foi cancelada in extremis, quando o bilhete de avião já se encontrava feito. Decisiva a intervenção do falecido cardeal D. António Ribeiro, que enviou o seu secretário particular com uma carta para o primeiro-ministro, Marcelo Caetano. Anulada a pena de expulsão, o missionário foi obrigado a afastar-se de Coimbra por um período de seis meses.
Depois foi a vez do padre Silvano Barbieri, um veterano das missões de Moçambique, que se encontrava na comunidade comboniana de Santarém em trabalho de animação nas paróquias. A acusação era a sua maneira de pregar, dando a entender que em Moçambique havia fome e miséria. Chamado à delegação da DGS, foram-lhe dados três dias para abandonar o País. De novo o cardeal-patriarca interveio pessoalmente e obteve que a ordem de expulsão fosse suspensa até se fazer um julgamento objectivo do caso.
Com a tomada de posição dos combonianos de Nampula, em Fevereiro de 1974, através do documento Um imperativo de consciência e a consequente expulsão de onze deles juntamente com o bispo D. Manuel Vieira Pinto, os combonianos presentes em Portugal viram-se, de repente, no meio de uma grande borrasca: a imprensa, a rádio e a TV falavam de combonianos traidores e inimigos da Pátria. Nada fácil a posição do superior provincial português, já que, face ao Governo, era para todos os efeitos também superior dos missionários expulsos. Temia-se mesmo a expulsão, como represália, dos combonianos italianos presentes em Portugal.
Foi precisamente no dia de uma reunião convocada de urgência em Coimbra, para se decidir o que fazer, que a Revolução dos Cravos veio resolver o problema, provocando um virar de página que marcou o início de uma mudança que tanto haveria de afectar o País e a sorte imediata dos combonianos.
Com a queda do regime marcelista e o fim do Estado Novo, a maior satisfação para os que trabalhavam na revista Além-Mar, e também para todos os outros membros do Instituto, foi ver que não era preciso modificar nada do rumo até então seguido.
Como se escreveu no opúsculo Andarilhos da Missão, editado em 1997 para assinalar os 50 anos de presença comboniana em Portugal, poucos dias depois do 25 de Abril de 1974 «os combonianos expulsos de Moçambique eram convidados para debates na televisão, o julgamento do padre Silvano Barbieri foi esquecido e o padre Alfredo Bellini recebeu, como recordação a guardar, o bilhete de avião da sua projectada expulsão».


Salazar achou caro o orçamento

Um dos primeiros missionários combonianos, irmão Elísio Locatelli, construtor do Seminário das Missões de Viseu, tornara-se conhecido em toda a região por ter sido ele a introduzir a técnica das placas em tijolos furados.
Através do seu grande amigo doutor Crespo, personagem de grande poder naquela cidade beirã, Salazar veio a conhecer a habilidade do irmão missionário italiano e pediu-lhe para ir a Santa Comba Dão ver um poço que lá tinha na sua propriedade e dar-lhe um orçamento para uma cobertura (os antigos poços das quintas beirãs tinham uma abertura bastante larga).
O irmão Elísio foi, mediu, fez os seus cálculos quanto aos tijolos, vigas e cimento a gastar, procurou ser o mais económico possível, e apresentou o orçamento ao senhor professor. Trabalho inútil, porque o primeiro-ministro Oliveira Salazar achou a coisa demasiado cara e desistiu de cobrir o seu poço!



O bispo da camisa cinzenta

Uma recordação dos tempos da censura prévia: «Recordo-me daquela vez em que cortaram toda uma entrevista com o bispo comboniano de São Mateus, Brasil. Qual a razão? Simplesmente porque tinha por título “O bispo da camisa cinzenta”, e ao censor isso deve ter cheirado a progressista, senão mesmo a comunista... Fui lá, expliquei que não era nada disso, tratava-se apenas de um título de efeito... e o corte foi levantado.»
(In “Nos tempos do lápis azul”, Além-Mar nº 328, Maio 1986, pág. 18)



Salazar refere-se à revista «Além-Mar»

Num cartão autografado enviado a Fernanda Jardim, fundadora da Cáritas Portuguesa, Salazar escrevia:
«É de escandalizar o último número de uma pequena revista, «Além-Mar», duns padres (italianos?) de Carcavelos (não era Carcavelos, mas sim Paço de Arcos – ndR), membros de uma ordem missionária. A estes não pode ser permitido irem para a África e é duvidoso que possam continuar aqui. A revista foi apreendida. O pior é que eles não inventaram a doutrina: ela é ensinada na universidade pontifícia. Aqui há uma incompatibilidade absoluta entre os católicos portugueses ou portugueses católicos e os católicos sem pátria. Penso que o problema tem de ser visto com cuidado pelo Episcopado, que aliás julgo confessar-se todo português, como tenho visto nalgumas pastorais.»


OS COMBONIANOS EM MOÇAMBIQUE – EM DEFESA DAS POPULAÇÕES

A maioria dos missionários combonianos a trabalhar no território tinham visões político-sociais e teológicas diferentes tanto das autoridades do regime como de parte da hierarquia. Os desentendimentos culminaram com a expulsão de onze combonianos, juntamente com o bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, nas vésperas do 25 de Abril.

Os missionários combonianos que trabalhavam em Moçambique eram, na estrutura do Instituto, autónomos do grupo que se encontrava em Portugal; mas, para o Estado português, em virtude do Estatuto Missionário, tal não acontecia e o superior daqui era também responsável pela linha seguida pelos combonianos daquele território ultramarino.
Os primeiros missionários, alguns deles com vários anos de actividade no Sudão, fixaram-se na faixa litoral da diocese de Nampula. Entraram em Moçambique a convite do cardeal Gouveia, de Lourenço Marques, que, conhecendo a sua especialidade em ambiente muçulmano, quisera-os na zona litoral norte, onde se notava um rápido avanço do islão, por influência de Zanzibar.
O método apostólico era o seguido no Sudão, primeiro campo apostólico do Instituto fundado por Daniel Comboni. Apoiava-se em três pilares: catecumenado, escolas e catequistas. Em Moçam bique adaptaram-se ao sistema colonial português proposto pelo Acordo Missionário; o catecumenado era essencialmente dirigido aos alunos das escolas elementares que o Estado confiava à Igreja.
A mudança de bispo em Nampula, em Setembro de 1967, veio abrir uma nova era e lançar o fermento de uma conversão do grupo comboniano (embora com algumas resistências) às novas realidades da Igreja acabada de sair do Concílio Vaticano II. A D. Manuel Guerreiro, açoriano, sucedeu D. Manuel Vieira Pinto, do clero diocesano do Porto; além de bem conhecido como dirigente nacional do Movimento por um Mundo Melhor, era um profundo conhecedor da doutrina do Concílio terminado dois anos antes. Seria ele a imprimir um novo rumo à acção missionária em Nampula. A sua visão inspirava-se em três textos fundamentais do Vaticano II: Lumen Gentium, Ad Gentes e Gaudium et Spes. Tornou-se, pois, um dos principais impulsionadores da renovação do grupo dos missionários combonianos, os quais, até ali, à semelhança dos outros missionários, «aceitavam os benefícios do conúbio entre civilização portuguesa e acção missionária» (A. Baritussio,Mozambico, 50 Anni di Presenza dei Missionari Comboniani EMI, p. 174).

Missionários interrogam-se

D. Manuel chegou a Moçambique no mesmo ano em que morria (a 15 de Janeiro) o primeiro e grande bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, outro filho da Igreja portucalense e seu predecessor na renovação eclesial de Moçambique. Esta colónia tornara-se o ponto mais sensível nas tensões entre Igreja e Estado. O alastrar da guerrilha (iniciada pela Frelimo em 1964) e a nova consciência criada pelo Concílio Ecuménico causaram, inevitavelmente, profundas interrogações em muitos dos missionários estrangeiros que lá trabalhavam.
Em 1965 dera-se o «caso do bispo da Beira», cujos antecedentes remontavam a 1957. D. Sebastião não se vergava à política do regime salazarista e este vingava-se suspendendo várias vezes o bem conhecido jornal diocesano Diário de Moçambique por este não submeter à censura prévia os textos das homilias e notas pastorais do prelado.
O ano de 1967 marcou para os combonianos o alargamento do seu campo de acção em Moçambi que: consolidaram a sua presença na diocese de Tete, onde haviam entrado dois anos antes, e em Outubro foram também para a Beira dirigir uma escola normal para a formação de professores acabada de construir e que o falecido D. Sebastião lhes confiara.

Nova sensibilidade na Igreja

Os dois anos seguintes, 68 e 69, marcaram o início de uma mudança na orientação pastoral em Moçambique. Houvera as Semanas Missionárias de Quelimane e foi criada a Comissão Episcopal de Acção Missionária e o Serviço de Animação ou Renovação Espiritual. No início de 1968, um grupo de missionários escreveu à Conferência Episcopal denunciando a falta de liberdade da Igreja face ao Estado. O ambiente eclesial começava a agitar-se.
A nível de Nampula, o grupo comboniano confrontava-se com um bispo diferente: «Com o bispo anterior, os missionários tinham vivido quase em silêncio os condicionamentos do sistema para usufruir dos seus benefícios. Agora, pelo contrário, com o novo pastor, tornava-se explícito pouco a pouco aquilo que no passado não fora possível manifestar-se e criava-se uma relação franca e amiga que apresentava facetas novas, mesmo no contacto pastoral com o povo africano. O bispo distinguia-se, pela sensibilidade e pelas ideias, dos outros homens do sistema» (A. Baritussio, op. cit. p. 175). As duas estruturas do renovamento desejado por D. Manuel foram o Centro Catequético do Anchilo e o Conselho Presbiteral.
Entretanto o Instituto comboniano realizou em 1969 o seu capítulo geral, que marcou uma viragem de grande significado para a vida interna e para a actividade missionária do mesmo. Surgiu uma nova sensibilidade acerca da natureza da vida religiosa, da maneira de conceber a autoridade e de viver em comunidade. No campo pastoral, impôs-se a necessidade de estudar a língua e os costumes locais e de unificar os métodos de trabalho dando uma atenção prioritária à formação dos catequistas.
No início da década de 70 deu-se um acontecimento que iria ter grande repercussão: o encontro do Papa Paulo VI, no Vaticano, com os chefes da guerrilha existentes nas colónias da Guiné, Angola e Moçambique: Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. O encontro ocorreu no dia 1 de Julho de 1970 e provocou a fúria do Governo de Marcelo Caetano. «A atitude do Papa iria encorajar, quer no Ultramar quer no Continente, uma série de atitudes de católicos contra a continuação da guerra» (M. Braga da Cruz, O Estado Novo e a Igreja Católica, Editorial Bizâncio, pág. 185).

Tomada de posição

Em 1971, os Padres Brancos (presentes em Moçambique desde 1946) decidiram abandonar o território por falta de condições para se fazer uma verdadeira evangelização. O Governo marcelista antecipou-se-lhes na jogada e expulsou-os antes que eles saíssem de sua livre vontade. Os bispos de Moçambique lamentaram esta saída, «que não crêem ditada por genuíno espírito evangélico».
Em 1972 deu-se o julgamento dos padres do Macúti (Beira) e a prisão e expulsão dos missionários espanhóis de Burgos que trabalhavam em Tete. Uns e outros denunciaram, com provas, massacres de civis, perpetrados pelas tropas portuguesas. O mais célebre, pela publicidade feita, foi o de Wiriyamu (região de Tete); ocorreu em Dezembro de 1972 mas só foi divulgado pelo sacerdote jesuíta inglês Adrian Hastings em Julho de 1973, véspera da visita de Marcelo Caetano a Londres, nas colunas do conhecido jornal londrino The Times.
 Os combonianos presentes naquela região também começaram a ter problemas com a DGS (sucessora da PIDE) por tentarem defender um catequista preso e torturado. O padre Luís Afonso foi interrogado pela polícia política em Julho de 1971 e mais tarde viria a ser expulso de território por continuar envolvido na denúncia de outros massacres e torturas de africanos, uma vez que a guerrilha se alastrava àquela zona.
A revista comboniana italiana Nigrizia também se fez eco das denúncias de massacres na região de Tete, só havendo a lamentar o facto de ter publicado como verdadeira uma foto que não passava de uma fotomontagem e comprometia o então cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, que aparecia a abençoar tanques de guerra destinados à guerra do Ultramar.
Por causa da problemática da zona em que trabalhava, o grupo comboniano de Tete depressa se encontrou numa situação de mal-estar e de dificuldade de relacionamento com o seu bispo, por causa da diversidade de conceito da Igreja e do seu papel; em 1971 chegou-se mesmo a uma situação de ruptura.
A tensão ia aumentando e o vigário-geral do Instituto foi enviado a Moçambique nesse ano em que se celebravam os 25 anos de presença comboniana no território. Fazendo um balanço desses anos, o então superior provincial afirmava: «O Senhor chama-nos numa hora de viragem. Saberemos nós responder a tempo e bem? A mudança de rota far-se-á: connosco, sem nós ou contra nós. Tudo depende da nossa generosidade e disponibilidade à voz do Espírito.» (A. Baritussio, op. cit., p. 120).
 Desde 1967 que a diocese de Nampula enveredara por um novo caminho pastoral, apontado por D. Manuel Vieira Pinto. O grupo comboniano que lá trabalhava (o mais numeroso em Moçambique), aceitou, embora com algumas resistências e contrastes, essa nova linha de acção. Mas só em 1971 é que a viragem «se tornou efectiva», como afirmou o bispo. Das Missões à Igreja local (1972) e Na linha da renovação missionária (1973) são duas comunicações de D. Manuel a assinalar; juntamente com a sua carta Repensar a guerra, escrita para o Dia Mundial da Paz de 1974 (uma reflexão pastoral corajosa sobre a situação de guerra vivida no território moçambicano), estes textos criaram o clima para a elaboração do documento Um imperativo de consciência.
A decisão de preparar este documento surgiu em fins de Janeiro de 1974, numa assembleia plenária dos combonianos de Nampula, com a presença de um membro da direcção-geral do Instituto; fora então decidido apresentar à Conferência Episcopal de Moçambique um documento sobre a situação da Igreja no território e sobre a linha de acção que o grupo entendia dever seguir no futuro. O bispo de Quelimane, na qualidade de presidente da CEM, foi informado da decisão.
O texto ficou preparado em 12 de Fevereiro e foi assinado não só por todos os membros do grupo comboniano (34 padres, 19 irmãos e 41 irmãs) mas também pelo bispo Vieira Pinto. Nele se questionava a política colonial do regime e o comportamento da Igreja católica, considerado um contratestemunho. Resultado desta tomada de posição: ordem de expulsão notificada em princípios de Março a seis missionários (cinco italianos e um português), com efeitos a partir do dia 20, e a seguir suspensa. Após dias de grande tensão e de uma campanha contra o bispo e os missionários, no dia 12 de Abril de 1974 foram expulsos não seis, mas onze combonianos (nove italianos e dois portugueses). No mesmo dia partiam de Tete para a Itália dois outros combonianos da missão do Songo (local da barragem de Cabora Bassa) que tinham sido alvo da fúria dos colonos brancos por se solidarizarem com os colegas de Nampula.
Dois dias mais tarde, 14 de Abril, foi a vez da expulsão do bispo Vieira Pinto. Estava-se a dez dias do 25 de Abril.



Indesejados

As discordâncias com o caminho seguido pela Igreja em Moçambique e o comportamento das autoridades políticas não era apanágio só dos combonianos, mas perpassava outros institutos a trabalhar no território. No relatório secreto de 31 páginas intitulado «Panorâmica actual da Igreja católica, apostólica romana no Estado de Moçambique e suas implicações com a segurança», feito ao governador-geral e de que se dá conhecimento ao subdirector-geral de Segurança, de 8 de Junho de 1973, a que «Além-Mar» teve acesso, passam-se em revista as tendências teológico-pastorais e analisa-se a situação de cada instituto religioso e diocese, «com pequeno apontamento sobre o clero secular, congregações femininas e padres negros». Suscitavam mais ou menos preocupação – pela ordem indicada - os monfortinos, consolata, combonianos, Instituto de S. Francisco Xavier de Burgos, sacerdotes do Coração de Jesus, capuchinhos de Trento e padres dos Sagrados Corações (PICPUS). De entre as religiosas, duas – uma das Filhas de S. Paulo e outra das Filhas do Calvário – também eram uma quebreira de cabeça.
Em conclusão afirmava-se: «A situação político-religiosa do Estado melhoraria imenso se fosse possível prescindir dos institutos de Burgos, capuchinhos de Trento, combonianos, Sagrado Coração de Jesus e padres dos Sagrados Corações. Neste caso beneficiariam as dioceses afectadas e as que se prevê virem a sê-lo».
Um dos juízos mais implacáveis vai para um comboniano, que contribuiu grandemente para a difusão, na Europa, do massacre de Wiriyamu. O relatório diz: «Não se deve esquecer o escarcéu infame levado à cena de areópagos europeus que habitualmente nos são hostis pelo padre LUÍS AFONSO DA COSTA, sacerdote que, até hoje, mais acintosamente tem denegrido a actuação das nossas autoridades e o quadro da situação em MOÇAMBIQUE».




O massacre de Wiriyamu

O morticínio, perpetrado pelas tropas portuguesas a 16 de Dezembro de 1972, em Wiriyamu, Chawola e Juwau, foi uma das maiores manchas da nossa presença em Moçambique (sobre as circunstâncias e a execução do massacre pode ler-se: BERTULLI, Cesare, A Cruz e a Espada em Moçambique, Lisboa, Portugália Editora, s.d.).
Os combonianos a trabalhar em Boroma – uma missão a 50 quilómetros das aldeias atingidas - vêm a saber do que se tinha passado no dia seguinte. Segundo o relato dos padres Emílio Franzolin e Valentim Benigna à revista italiana «Famiglia Cristiana», naquele domingo os cristãos estão em alvoroço e só entram na igreja mediante a sua insistência. Durante a oração dos fiéis, um dos jovens levanta-se e diz: «Rezemos pelos mortos de Wiriyamu.» Um outro: «Rezemos pelos que foram assassinados em Chawola...» E outros ainda: «Rezemos pelos mortos de Juwau...» «Rezemos pelos nossos irmãos, pelos feridos e pelos refugiados...» É deste modo que os missionários tomam conhecimento dos massacres acontecidos menos de 24 horas antes. Tiram fotografias de dois sobreviventes de Chawola feridos pelas balas (Podista, uma rapariga de 20 anos, e António Mixoni, de 15 anos) e põem-nos a salvo da DGS. Correm ao hospital de Tete onde estão alguns feridos e falam com os padres de Burgos, cujas paróquias abrangem as aldeias massacradas. A gente fala de 500 mortos. Não havia tempo a perder. Era preciso avisar as autoridades eclesiásticas e dar a conhecer o facto. A 19 de Dezembro escrevem o primeiro relatório, que começa do seguinte modo: «Mais ou menos pelas 14 horas, dois reactores bombardearam as povoações de Wiriyamu e Juwau, a uns 25 quilómetros de Tete, no regulado de Gandale, enquanto cinco helicópteros desembarcavam tropas armadas, que cercavam as ditas povoações e metralhavam o povo que fugia do bombardeamento». (...)
A seguir lê-se: «A população de Chawola, povoação muito próxima das de Wiriyamu e Juwau, vendo o fogo dos bombardeamentos, das metralhadoras e das palhotas a arder, juntou-se atemorizada no pátio de Chawola. (...) No dia seguinte, somente no pátio de Chawola, contaram-se 53 cadáveres, dos quais foram identificados 43» (os nomes vêm mencionados no relatório).
As autoridades começam por negar até a existência de Wiriyamu. Mas os relatórios chegam à Europa e são amplamente divulgados pelo padre Luís Afonso da Costa, que tinha sido expulso de Moçambique, pelo padre branco Cesare Bertulli e, depois, com mais sucesso, pelo padre Adrian Hastings, no «The Times».
Curiosa é a informação dos serviços de segurança sobre a irmã espanhola Maria da Visitación Saenz de Ugarte Iriartre, que usava o nome de Maria Lúcia, residente no Hospital Regional de Tete, onde prestava serviço na cirurgia: «Depois da operação “Marosca” (nome de código do massacre), sub-repticiamente, começou a inquirir feridos e refugiados das regedorias de REGO e GANDAR que chegavam ao Hospital Regional de Tete, de maneira altamente tendenciosa.» Ainda a propósito da irmã, continua a informação: «Foi co-autora dum relatório que veio a cair nas mãos dos nossos inimigos, na Europa, e que provocaram escarcéu infame, depois da publicidade verrinosa que lhe deu o padre Adrian Hastings». A conclusão é óbvia: a sua presença «neste Estado, revela-se altamente incompatível com os superiores interesses da Nação».

A negação da História

A acrescentar aos documentos escritos e aos testemunhos dos missionários, vimos e ouvimos os autores materiais, da chacina descreverem o que brutalmente fizeram às populações e como, dias depois foram mandados enterrar as vítimas, sem armas para que pudessem ser massacrados. Os helicópteros que os tinham levado não os vieram buscar, como estava combinado e eles acabaram por cair muma emboscada, que vitimou muitos deles.
Perante tudo isto, e volvidos quase 27 anos sobre os acontecimentos, surpreende que, Kaúlza de Arriaga, à época comandante-chefe das forças armadas em Moçambique, continue a negar a existência de Wiriyamu (ver entrevista ao jornal «Público», de 13 de Março de 1999). Para o general, tratou-se simplesmente de «rumores de abusos das tropas», um escândalo montado pelos Padres de Burgos. Diz que os três inquéritos feitos não descobriram nada e concluíram que «não ocorreu nada em Wiriyamu. Não houve nenhum crime em Wiriyamu» (como se vê, os inquéritos já então tinham tradição!). Parece que só os políticos e as altas patentes militares é que nunca souberam de nada e persistem em tentar branquear a História!




A «infiltração» em Angola

AS autoridades do antigo regime sempre estiveram atentas à difusão de notícias que poderiam pôr em causa a segurança do Estado. Por isso, não lhes passavam despercebidas as revistas combonianas publicadas em Portugal («Além-Mar»), Itália («Nigrizia») e Espanha («Mundo Negro»). Sobre esta última há um episódio com graça, porque a ela se deve a «infiltração» dos combonianos em Angola, território onde não trabalhavam. O receio transparece num despacho de 7 de Julho de 1967, do governador-geral de Angola, mediante instrução da 2ª Secção dos Serviços Reservados da Polícia Internacional e de Defesa do Estado do dia anterior, a que «Além-Mar» teve acesso, e que determina «a proibição de entrada e circulação na província» da revista «Mundo Negro». Esta revista espanhola, congénere da «Além-Mar», ia no seu oitavo ano de edição, mas nesse ano «tinha começado a ser endereçada por via postal e individualmente a determinados destinatários, de etnia africana», de que se indicam os nomes (três padres e quatro seminaristas  residentes no Seminário Maior de Luanda e um padre da missão de Landana).
Os comentários justificativos da proibição, articulados em vários pontos, não podiam ser mais reveladores das concepções e linguagem da época: «1. É de tendências racistas, pois que se destina exclusivamente ao “elemento negro” e por isso susceptível de criar perturbações na execução da tradicional política plurirracial prosseguida desde há séculos pelo Governo da Nação.» Depois, a lógica de raciocínio continua férrea: «2. Embora se apresente como revista estritamente religiosa, a distinção que faz nas suas colunas entre “países independentes” e “territórios não independentes”, incluindo nestes o nosso Ultramar, implicitamente, denuncia uma posição contrária ao preceito constitucional português de “Estado unitário”, cuja posição não é mais que o reflexo da tendência apontada em 1., e as suas inevitáveis consequências a que ali também se alude.»
Daí que se receasse que a «instituição missionária comboniana», não exercendo a sua actividade em Angola, se mostrasse «tendente agora a “infiltração” através de “Mundo Negro”, ao que parece, movida de propósitos que não será difícil descortinar».
Pelo menos uma outra vez, «Mundo Negro» suscitou apreensão nos círculos da censura. Foi a propósito do IV Festival Panafricano de Cinema, realizado de 3 a 13 de Fevereiro de 1973, em Uagadugu, capital do Alto Volta («Mundo Negro», nº 144, de Abril de 1973), em que o prémio da Oficina Católica Internacional de Cinema (OCIC), veio a ser atribuído por unanimidade ao filme Sambizanga, realizado pela mulher do dirigente angolano do MPLA Mário de Andrade.


UM IMPERATIVO DE CONSCIÊNCIA

Eis alguns extractos do documento que originou a expulsão de um grupo de combonianos a trabalhar em Nampula e do bispo da diocese: «...nós, Missionários Combonianos da Igreja de Moçambique, em união com o nosso bispo, interrogamo-nos profundamente sobre a autenticidade do nosso testemunho missionário e o significado da nossa presença no meio do povo de Moçambique.
Enviados para anunciar o Evangelho de Cristo, sentimos que este anúncio não pode ser levado integralmente a este povo que nos espera, não tanto por causa de um condicionalismo político que nos impeça de anunciar Cristo, mas sobretudo pela renúncia da Igreja em assumir a sua missão profética e libertadora, que lhe compete por direito divino, perante os acontecimentos e a vida deste povo, que julgamos profundamente impedido de crescer fiel à sua história.
Não querendo partilhar da cumplicidade desta Igreja que colabora, talvez inconscientemente, no manter desta situação contrária ao Evangelho de Cristo, e não podendo protelar mais a resposta às interrogações deste povo, sentimos a necessidade de tomar uma decisão segundo a nossa consciência e em conformidade com o autêntico Evangelho de Cristo e as orientações da Igreja universal.
Neste sentido e com esta finalidade, passamos a expor os problemas e as situações que, em nosso entender, debilitam a Igreja e a tornam um contratestemunho para o povo de Moçambique, e a anunciar as decisões que, em consciência, julgamos dever tomar.»
Para os subscritores do documento, os problemas e as situações são as seguintes: «AIgreja renunciou ao seu múnus profético não reconhecendo que o povo moçambicano tem o direito que lhe é conferido por Deus à sua própria identidade e a construir por si mesmo a sua história.  Não proclamando e não defendendo suficientemente os direitos fundamentais do homem (direito ao desenvolvimento, direito de associação e livre expressão, direito à informação).  Não desmascarando um sistema socioeconómico que tem o lucro como objectivo primário.  Não iluminando acontecimentos graves, tais como a guerra e suas consequências.
A Igreja torna-se assim um contratestemunho:  Nas relações com o Poder constituído. Na sua missão evangelizadora dos povos (continua bastante alheia às realidades africanas nas suas estruturas e nos seus responsáveis; apresenta-se muito clerical e paternalista; os bispos não têm defendido publicamente a missão do missionário quando posto em causa pelo regime constituído).
Depois de terem pedido à hierarquia uma série de medidas a fim de a Igreja se tornar «um sinal mais autêntico de salvação», os Combonianos decidem com o seu bispo: a) orientar a evangelização e a catequese de modo a revelar o mistério total de Cristo e procurar discernir os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, ajudando este povo a descobrir os planos de Deus a seu respeito; b) continuar a rever as estruturas das missões de modo que sirvam cada vez mais o povo e apareçam como testemunho do amor de Deus do qual a Igreja deve ser sinal; c) renunciar aos subsídios concedidos pelo Governo ao pessoal missionário; d) entregar, a partir do próximo ano lectivo, as escolas do ensino primário, dado que os actuais programas conduzem à alienação deste povo dos seus verdadeiros e autênticos valores, comprometendo-se porém a continuar a trabalhar pela promoção do povo, pela formação profissional e desenvolvimento comunitário.
Esta reflexão e consequentes resoluções foram tomadas em conjunto por todos os missionários combonianos da diocese de Nampula, com o seu bispo, e comunicadas à Conferência Episcopal de Moçambique por intermédio do seu presidente. Das mesmas será dado conhecimento à Secretaria de Estado do Vaticano, aos missionários e ao povo de Deus.
Nampula, 12 de Fevereiro de 1974»

A reacção dos bispos

A reacção dos bispos de Moçambique a Um imperativo de consciência (excluindo, obviamente, D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula, que o subscreveu), pelo que Além-Mar, apurou consta numa carta ao cardeal Jean Villot, secretário de Estado do Vaticano, de 28 de Fevereiro, acompanhada por uma «reflexão» sobre o documento.
Os bispos declaram-se magoados e ofendidos com as «graves acusações» contidas no documento, que consideram «injustas e falsas». Pedem orientação sobre o caminho a seguir em relação à Concordata e ao Acordo Missionário, mas no final avisam: «Se a linha a seguir é a que vem no documento e se nós estamos a ser infiéis ao nosso ministério episcopal, como se insinua; e se tudo isto se processa com o beneplácito dos superiores maiores de alguns institutos religiosos, e com a contemporização da Santa Sé, nós bispos de Moçambique abaixo assinados, estamos dispostos conjuntamente a deixar as nossas dioceses e a entregá-las a quem o Sumo Pontífice houver por bem, dado que não podemos continuar a trabalhar num clima de desconfiança e de sombras».
Na «reflexão» que acompanha a carta, os «reparos» a Um imperativo de consciência são mais abundantes. Os bispos começam por desvalorizar o documento, afirmando que se trata «dum documento elaborado por um grupo de missionários, de um só Instituto, de uma diocese de Moçambique, com o seu bispo». Continuam pondo em causa o procedimento que o originou, a linguagem nele usada, a interpretação e aplicação dos textos bíblicos aduzidos e a sua justeza teológica e prática. Rejeitam a acusação de cumplicidade com o regime e a de que a Igreja fosse um contratestemunho. E concluem: «A análise do documento deixa-nos a impressão de um assanhado clericalismo que se quer sobrepor ao poder civil e chamar a si funções próprias do Estado.» Estava-se a menos de dois meses do 25 de Abril.

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