segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Reclusos ainda vivem o inferno nas cadeias

  
Reclusos ainda vivem o inferno nas cadeias
Diante do facto de terem sido atirados para o corredor da morte sem provas nem julgamento, a superlotação das prisões acaba por ser o menor dos problemas para os milhares dos reclusos das cadeias moçambicanas. À ausência de cuidados de saúde, higiene e saneamento ou a falta de alimentação condigna, junta-se a condenação sem acesso à defesa jurídica.
Em Fevereiro deste ano, quando a delegação conjunta da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH) e a Amnistia Internacional (AI) falou com o recluso José Cossa na Cadeia de Máxima Segurança da Machava em Maputo, ele não se lembrava exactamente do dia em que foi preso. Mas outros reclusos, presos desde 2001, contaram que Cossa já lá estava quando chegaram.
Cossa foi preso por agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) quando vendia algumas obras de arte num dos passeios da cidade de Maputo. Não tinha sido condenado por nenhum crime, nem tinha sido julgado em tribunal, mas ficou detido na Machava por mais de 12 anos.
A prisão de Cossa ilustra, tristemente, um dos maiores problemas da justiça moçambicana nos nossos tempos - a violação sistemática dos direitos humanos. “Quando visitámos as cadeias, as condições em que se encontravam foram bastante chocantes para nós”, disse Marisete de Castro, representante da AI. “Encontrámos detidos, entre eles crianças, sem qualquer evidência de que tenha sido cometido um crime e sem prova suficiente de que o tenham cometido”, acrescentou Muluka-Anne Miti, investigadora da AI para Moçambique.

Prender para depois investigar
A LDH e a AI, que lançaram um relatório sobre detenção arbitrária e tratamento nas prisões de Moçambique, na quinta-feira (22) em Maputo, descrevem as cadeias moçambicanas como autênticos centros de violação dos direitos humanos. O relatório analisa as falhas do sistema de justiça penal moçambicano, concentrando-se na prisão e detenção arbitrária.
“Este relatório não pretende atiçar o fogo que iniciou em Gorongosa, mas sim trazer à superfície alguns problemas que persistem”, disse Alice Mabota, presidente da LDH. “Há melhorias sim, senhora ministra, mas o Ministério do Interior e os tribunais continuam a prender e depois investigar “, acrescentou.
Apesar das prisões arbitrárias serem proibidas por leis nacionais e internacionais, a polícia de investigação criminal moçambicana é acusada de manter as pessoas presas de forma prolongada enquanto procede à investigação.
“O Ministério Público e o juiz de instrução não desempenham eficazmente o seu papel de limitação da detenção em prisão preventiva e de prevenção das detenções arbitrárias”, lê-se no documento, que acrescenta que, em alguns casos, o juiz de instrução autoriza as prisões e detenções que foram efectuadas sem fundamentação legal ou contrariando os procedimentos normais.
Para os investigadores, em boa parte dos casos, o Ministério Público falha, no cumprimento efectivo do seu dever de assegurar que as detenções se enquadrem nos prazos legalmente prescritos.
Por outro lado, frisa que, embora os reclusos recebam alimentação em quantidade suficiente, geralmente não há variedade de alimentos, além do facto de não terem valor nutricional adequado, o que significa que os presos vêem-se forçados a depender de familiares, que lhes trazem comida para suplementar dieta.
Conclui que não se deve permitir que continue o padrão persistente de prisões e detenções arbitrárias, por isso as autoridades moçambicanas devem tomar medidas imediatas para assegurar que os órgãos de justiça trabalhem com eficácia para as prevenir e para rectificar a situação se ocorrer.
“Além disso, embora a Amnistia Internacional e a Liga dos Direitos Humanos reconheçam as medidas positivas que foram tomadas para reduzir o problema da sobrelotação e melhorar as condições de detenção em algumas prisões, as condições nas prisões e o tratamento dos reclusos continuam a suscitar grandes preocupações”, lê-se. Â

Justiça só com dinheiro
Ademais mostra que a justiça funciona sempre contra os pobres, que são os alvos preferidos dos maus tratos da polícia. Para os que pertencem aos grupos economicamente desfavorecidos, o estudo aponta que a situação agrava-se ainda mais pelo facto de, não terem advogado que os represente e assegure a sua libertação. “O acesso à justiça em Moçambique é sistematicamente recusado a quem não tem dinheiro”, disse Anne Miti.
Muitas vezes os que ficam nas cadeias durante muito tempo não são informados sobre os seus direitos ou são incapazes de os compreender. Porque não podem pagar um advogado, são quase sempre representados por pessoas que não são qualificadas e raramente aguardam em liberdade um eventual processo.
Segundo o relatório, muitos dos reclusos disseram terem sido forçados a assinar documentos cujo conteúdo desconheciam. Outros queixaram-se de terem sido torturados ou sofrido maus tratos na altura da detenção.
Além de Cossa, o documento menciona vários outros casos. Um deles aconteceu com António Macuaca, 30 anos de idade, e Abel Ngoambi, com 23. Ambos foram detidos em Novembro de 2009, por suspeita de terem roubado uma mala. Em Fevereiro deste ano continuavam à espera de julgamento, sem saberem quando iriam a tribunal e só em Setembro, o procurador informou que estavam livres desde Abril por “irregularidade na sua detenção”.
Diferentemente deles, Ana Sílvia (nome fictício) teve outra experiência. Foi detida em Novembro de 2010, aos 15 anos por acusação de ter morto a mãe. Aparentemente, a morte nada teve de suspeito e não foi feita autópsia. A detenção foi baseada na declaração de um responsável do bairro, que responsabilizou Ana pela morte da mãe alegadamente porque dias antes tinham discutido.
Até Fevereiro Ana ainda não tinha sido julgada. A Amnistia Internacional foi há poucos dias informada de que, em Julho, a jovem foi condenada. O Procurador-Geral não explicou por que razão não foi feita a autópsia à mãe e disse apenas que a arguida foi condenada a dois anos de prisão, por estrangulamento. Como o período de detenção ultrapassava metade da pena foi libertada condicionalmente.
Em muitos casos, pessoas como Ana não têm meios para sair da prisão e assegurar a sua libertação. “O Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) deveria oferecer assistência jurídica a estes grupos de pessoas, mas tem falhado no desempenho efectivo dos seus deveres na maioria dos casos, mesmo em prisões nas quais existe um gabinete do IPAJ no próprio estabelecimento”, lê-se no documento.
As duas delegações visitaram três prisões de Maputo, duas da província de Nampula e outras instalações de detenção do país. Nos locais contactaram centenas de reclusos detidos por longos períodos, sem julgamento e concluíram que casos assim contam-se aos milhares um pouco por todo o país.
Doze anos depois, José Cossa foi recentemente liberto, alegadamente porque constatou-se irregularidades na sua detenção, uma prisão que no entanto devia ter sido evitada se Moçambique estivesse de facto preparado para ser um país dos direitos humanos.

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