sexta-feira, 27 de junho de 2025

FIEL SERVO DA MEMÓRIA

 

Por. Nelson Saúte
A minha mais remota recordação de uma espécie de tertúlia literária advém dos tempos em que o meu pai, um homem forjado nos Caminhos de Ferro – conferente de carga no Porto de Maputo e no Porto de Nacala –, chegava a casa às tantas da noite, depois de fazer a ronda dos bares, e o seu estado etílico puxava-lhe por uma velha e frustrada paixão: a língua, o léxico, a gramática e os livros.
Então tínhamos, com o natural exaspero da minha Mãe, que agora habita os páramos da eternidade, noites e madrugadas a discutir, em voz alta, vocábulos e obras literárias. Era uma espécie de competição entre pai e filho.
A biblioteca do meu pai era escassa, mas mesmo assim tinha alguns autores oriundos de geografias diversas e extremamente interessantes. Foi a partir dessa modesta biblioteca que me tornei um leitor obstinado.
Em Nacala, onde vivera entre 1975 e 1980, começara a ler os livros da vetusta colecção Arizona, que eram uma espécie de romances de cordel. Também iniciara ali, naquela cidade inclinada sobre escarpas, ruas de poeira e amendoeiras, e de um mar exuberante que se impunha – e impõe – pela paisagem, a leitura dos poetas revolucionários que foram uma espécie de viático para a minha jornada. Além dos moçambicanos óbvios, líamos em voz alta poetas estrangeiros, como o chileno Pablo Neruda ou o turco Nazim Hikmet.
Seria, no entanto, em Maputo, e na Escola Secundária Josina Machel, que teria um encontro marcado com dois professores que viriam a ter uma influência decisiva na minha vocação literária: Agostinho Mamade e José Seifane.
As aulas do professor Agostinho Mamade foram a minha primeira lição de interpretação. Passávamos dias a descodificar textos e a entender a carpintaria que estava no segredo criativo daqueles autores. Recordo-me, sobretudo, dos textos de Luís Bernardo Honwana e da sua ingente obra Nós Matámos o Cão Tinhoso, ou da escrita de Carneiro Gonçalves (“Malidza”, de Contos e Lendas), que o professor Agostinho Mamade nos ensinava a ler e a descodificar.
José Seifane, que muito cedo abandonou o reino dos vivos, aproximou-nos da literatura africana. Emprestava-nos livros preciosos de importantes escritores do continente, como Wole Soyinka (Os Intérpretes), Chinua Achebe (A Flecha de Deus), Ngũgĩ wa Thiong’o (Um Grão de Trigo), Mongo Beti (O Pobre Cristo da Bomba), Sembene Ousmane (O Harmatão), Camara Laye (O Menino Negro), Birago Diop (Os Contos de Amadou Koumba), Alex La Guma (País de Pedra), Ferdinand Oyono (O Velho Preto e a Medalha) ou Cyprian Ekwensi (Capim em Chamas), entre outros.
Nos anos 80, houve ainda uma colecção designada Autores Moçambicanos, que fez publicar sucessivamente José Craveirinha (Cela 1 e Xigubo), Luís Carlos Patraquim (Monção), Orlando Mendes (Lume Florindo na Forja), Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas), Sebastião Alba (O Ritmo de Presságio e A Noite Dividida), Rui Nogar (Silêncio Escancarado), Jorge Viegas (O Núcleo Tenaz) e Albino Magaia (Assim no Tempo Derrubado).
Magaia seria, anos depois, quem me haveria de receber na vetusta revista Tempo e incumbir-me-ia, aos 21 anos, da responsabilidade de editar a “Gazeta de Artes e Letras”, fundada por Luís Carlos Patraquim.
Luís Carlos Patraquim havia sido o meu primeiro editor, quando fez publicar, na “Gazeta”, os meus poemas, em 1985. Patraquim era uma espécie de Papa da nossa geração. Tinha – e tem – uma bagagem literária invejável, era um leitor omnívoro e emprestava-nos livros essenciais. Li, entre outros, pela mão dele, de Conde de Lautréamont, Os Cantos de Maldoror. Também permanece na memória o livro Fala, Amendoeira, de Carlos Drummond de Andrade, que o Patraquim me deu a ler, entre tantos outros autores e obras.
Muitos dos livros que lia distanciavam-se da literatura engajada, pese embora as livrarias estivessem atafulhadas de obras oriundas desse género.
Foi uma época de descobertas. Líamos de tudo. Devorávamos livros. Tínhamos sede de leitura e de conhecimento. Os avatares da televisão, com as telenovelas brasileiras e as suas personagens magnetizantes, não tinham ainda chegado. Nem o futebol, que se via amiúde nas salas do Grupo Dinamizador, no Mundial de Espanha, ou na Marconi, em 1982, ou, quatro anos depois, na casa de alguns amigos, aquando do Mundial do México de 1986.
Íamos ao teatro, vibrávamos com as personagens. Tínhamos a benesse do Cine Clube e os ciclos de cinema, onde se projectavam filmes e depois se fazia uma discussão à volta. Do cinema russo ao italiano ou a séries cubanas. Éramos devedores de muitas referências, de muitas influências, de muitos penhores.
Em Junho de 1984, foi lançada a revista Charrua na Associação dos Escritores. Mais tarde, integrei, como mais novo do grupo, o movimento e as tertúlias que animavam a irreverência dos jovens desta geração: Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Filimone Meigos, Armando Artur, Tomás Vieira Mário, Marcelo Panguana, ou António Pinto de Abreu, mais próximo de mim em termos etários.
Participavam também do movimento Aníbal Aleluia ou Cyprian Kwilimbe, grande divulgador da obra de João Dias, autor de Godido e outros contos, filho de Estácio Dias, um dos precursores do nosso jornalismo, companheiro de João Albasine, outro nome ínclito das nossas letras. Aliás, os seus nomes não só enformam o nosso jornalismo como estão associados ao protonacionalismo. Estão na origem de O Africano e, mais tarde, de O Brado Africano.
A “Charrua” teve uma vida efémera, mas o seu gesto e a sua ousadia foram além dos seus breves números. O seu marco distintivo foi a recusa de uma literatura laudatória, a favor da liberdade total na criação. E, se de liberdade fazemos gáudio, não poderia haver exemplo maior, entre nós, desse exercício arrojado naqueles anos 80 em que declinava a I República.
Queríamos escrever o que nos apetecia, com total liberdade, e estávamo-nos nas tintas para os ditames da revolução ou para os antípodas dos mais velhos, com quem convivíamos calorosamente, como Marcelino dos Santos ou Sérgio Viera.
Ali, na Associação dos Escritores, tivemos uma verdadeira escola da democracia e de liberdade. Creio que o nome a quem devemos creditar esse carácter é o de Rui Nogar, o nosso secretário-geral. Ele sabia das nossas discordâncias, mas sempre nos amparou e permitiu-nos dissentir. O Rui foi um grande democrata e respeitou sempre a liberdade de todos.
Nas nossas tertúlias discutíamos sobre Jean-Paul Sartre ou Albert Camus, Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa, José Cardoso Pires ou José Saramago, Eugénio de Andrade ou Herberto Helder, Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto.
Fortuitamente, quando era estudante da Escola Secundária Manyanga, a caminho da escola, numa dessas tabacarias da 24 de Julho, descobri o livro Reino Submarino, de Rui Knopfli, que viria a ter grande influência no meu entendimento da arte poética. Ao tempo, não se falava do seu nome – estava, de certo modo, proscrito. Hoje, Knopfli é reivindicado, sobretudo pela nova geração de poetas moçambicanos. Quando eu era jovem e debutava no ofício, isso não acontecia.
O encontro com Rui Knopfli foi, para mim, crucial. Ali percebi que a nossa história literária era mais complexa e estava distante do maniqueísmo com que era apresentada ou contada. Diria, afoitamente, que a nossa História também.
Nos meus encontros com Noémia de Sousa, falava-lhe desses poetas proscritos e dizia-lhe da minha admiração por Rui Knopfli. Claro que tinha admiração por ela – antes dos 20 anos escrevera-lhe um elogio (“Carta a Noémia de Sousa”, em Setembro de 1986, nos seus 60 anos), o que está na origem da nossa amizade. Muitos anos depois, após muita relutância, Noémia encarregou-me da tarefa de coordenar a edição de Sangue Negro, lançado no dia dos seus 75 anos, a 20 de Setembro de 2001.
Tinha igualmente admiração por José Craveirinha, cuja casa frequentava. Recordo-me especialmente dos domingos em que ficava horas a ouvi-lo falar – ele, Ricardo Rangel e o médico Óscar Monteiro, todos de grata memória. Frequentava amiúde a casa de Orlando Mendes. Como frequentava as de outros amigos.
Craveirinha falava-me de figuras como Karel Pott ou Rui de Noronha, de José e João Albasini – do exemplo que eram no contexto da afirmação da moçambicanidade. Noémia falava de Cassiano Caldas, Henrique Dahan, Miguel da Mata, Victor Santos (irmão de Marcelino dos Santos), Amélia Ringler ou Dolores Lopez y Lopez.
Aliás, Craveirinha, Noémia, Dolores e Rangel assinaram um manifesto exigindo a independência de Moçambique, nos anos 50, no antigo Jardim Paraíso. Rangel documentou esse momento.
A minha relação com os mais velhos e a necessidade de entender melhor o nosso passado está na origem do meu futuro trabalho como memorialista.
Noémia de Sousa perguntou-me, em 1989, à margem do I Congresso de Escritores, em Lisboa, por que razão eu preferia estar na companhia dos mais velhos, preterindo, no caso, a companhia do White, Khosa ou Armando, que eram os meus companheiros de geração.
Disse-lhe, assertivamente, que queria perceber como fora o passado.
José Saramago, que se apercebeu dessa minha predileção, disse-me, na mesma altura, que eu estava na companhia dos meus antepassados literários. Era a descrição perfeita daqueles meus velhos companheiros, cujas casas frequentava, de quem ouvia as confidências, a quem escutava com atenção. Memorizava o que me diziam. Esse convívio aguçava ainda mais a minha curiosidade pelo passado.
Foi desse tempo que nasceu o meu livro de entrevistas Os Habitantes da Memória. Queria registar, para o futuro, a memória daqueles escritores.
O José Craveirinha, numa das suas estadas em Lisboa, voltou a insistir, enquanto escrutinávamos as montras e as ruas da Baixa, na conversa sobre a memória: «Nelson: procura ser um fiel servo da Memória de todos os tempos, para que a tua voz se faça ouvir no teu tempo.» Eu tinha 24 anos. Impôs-me, no fundo, um anátema.
A minha devoção pela memória vem também daí. Foi dessa incumbência. Foi desse testemunho que recebi daquela geração. Foi do convívio com os fundadores da literatura moçambicana, como José Craveirinha, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, Rui Nogar, Aníbal Aleluia, Rui Knopfli, entre outros. Foi dos encontros com Fonseca Amaral ou Cassiano Caldas.
Também muito cedo, com menos de 20 anos, começara, anos antes, a trabalhar com a Professora Fátima Mendonça numa antologia que levaria anos a ser publicada. Iniciámos a nossa empreitada em meados de 1980, e só em 1993 viria a Antologia da Nova Poesia Moçambicana a ser publicada. O convívio com Fátima Mendonça é também um convívio importante para mim. Sou devedor disso.
Luís Bernardo Honwana haveria de me incumbir, em 1992, a tarefa de co-organizar o livro A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas. Foi um encargo importante para um jovem de 25 anos.
Tinham passado quase 10 anos do dia em que, em finais de 1983, Luís Loforte, Manuel Maurício, Abdul Ussene e eu decidimos concorrer para a Escola da Rádio e fazer o curso de rádio-drama com professores cubanos, sob a batuta do inesquecível Sant´Anna Afonso, homem de grande valia e muitos talentos, hoje injustamente esquecido. Na Rádio aprendi quase tudo e formei-me como homem. Na Rádio encontrei o meu futuro e “O poema para a paz” da Ana Juliana, minha musa. O Manuel e o Abdul cedo abandonaram este reino.
Foi também na Rádio que me cruzei com Leite de Vasconcelos. Ele chamava-me ao seu gabinete de director, e atardávamo-nos a falar de literatura, da revista Caliban, do Rui Knopfli, dos nossos poetas electivos. Isto em 1985. Há quarenta anos!
A Rádio, com os seus programas literários e o seu programa de teatro foram importantes na minha formação. O teatro na rádio tinha uma forte tradição. Reinaldo Ferreira fora um dos seus precursores.
No programa No coração da noite, do Izidine Faquirá e da Luisa Menezes, ganhei o meu primeiro prémio com um poema intitulado “Terra”. A Maria Pinto de Sá tinha um programa de poesia e contos de todo o Mundo.
A Rádio era também um instrumento poderoso para a nossa aprendizagem literária.
O livro e a leitura foram decisivos para mim. Para a minha formação. Para o meu futuro como jornalista e escritor. Para o meu futuro como cidadão.
O livro cria cidadania. Cria espírito de liberdade e de crítica.
O livro liberta-nos.
Uma sociedade não se constrói sem cultura, e não há sociedades sãs sem cidadãos livres, cultivados e esclarecidos, política, social e culturalmente.
Por outro lado, não há sociedades sem memória.
Hoje, isso, é o escopo da minha actividade.
O conhecimento, adquirido através do livro, em particular, ou da cultura, em geral, é um elemento essencial e indeclinável para a afirmação da cidadania e da Nação moçambicanas, que estão em permanente construção e afirmação.
Devo, por conseguinte, a estas figuras acima aludidas e a muitas outras que mereceriam aqui referência tudo quanto sou.
Se hoje me dedico quotidianamente a fazer a memória literária e cultural de Moçambique, cartografando-a, rememorando-lhes as obras e/ou os percursos, apostrofando os seus nomes, isso deve-se a estes encontros com a História, para parafrasear Oriana Fallaci, a grande jornalista italiana que me ensinou a arte da entrevista.
Moçambique é hoje um país onde se cultiva o esquecimento. Onde se pratica o oblívio e onde se renegam os melhores.
Somos pródigos nisso.
A nossa arte é a desatenção, a indiferença, o abandono ou a omissão.
É contra a omissão e a indiferença que cultivo obstinadamente a memória.
Craveirinha também me alertara quanto ao ónus desta tarefa: «sentirás sobre os ombros o peso – o verdadeiro peso – de um genuíno legado, o legado do teu Amanhã.»
Dou-lhe razão.
Espero estar a cumprir esse desígnio que ele e a sua geração me impuseram: o de ser um “fiel servo da Memória”.
Poder fazê-lo, teimosamente, é também uma remuneração aos meus predecessores por tudo quanto significam, e pela lição que me deram de ser ostensivamente moçambicano.
Faço-lhes este tributo e esta mesura.
KaMpfumo, 20 de Junho de 2025
Pode ser uma imagem de 1 pessoa
Todas as reações:
7
1
1
Gosto
Comentar
Partilhar
Francisco Wache Wache
Mas que grande memória. Mas também aqui, Saute reclama o lugar da literatura nos 50 anos da Independência. De facto, lembramo_nos todos dos militares e outros cidadãos que contribuiram para esta Independência e pouco falamos dos fazedores das letras que fizeram uma luta além fronteira nesse periodo. O Saute, ainda vivo, merecia uma homenagem nas letras nestras comemorações. Ele é, sem duvidas, a grande referência da história da Literatura moçambicana.

Sem comentários: