Merecer o Descanso
Já não me lembro se foi no dia 21 ou 22 de Junho de 1975. Só sei que foi dias antes da proclamação da independência. A minha beleza precoce (suponho) levou as gentes da cidade de Xai-Xai a indicarem a Delfina Zaqueu (Lolota) e a mim como os “continuadores” que iriam dar a prenda da cidade aos ilustres visitantes. Eram eles Samora Machel e Marcelino dos Santos na sua viagem triunfal do “Rovuma ao Maputo”. Ambos deram-me “upa” depois de lhes presentearmos com uma saia de palha para a dança de “xingomana” (matxika) e o Marcelino ainda me ofereceu as bochechas para eu lhe dar “bá”. Tinha 10 anos. O embaraço (que até hoje ainda sinto) foi compensado, na altura, pelo estatuto de celebridade que ganhei durante alguns dias.
Voltei a ter contacto directo com Marcelino dos Santos na Cidade da Praia, em Cabo Verde, em 2005 se não estou em erro. Ambos estávamos a participar num simpósio sobre Amílcar Cabral. Passámos uma manhã inteira a conversar no restaurante do hotel onde ambos estávamos alojados. Até perdemos a sessão dessa manhã por causa disso. Eu andava ainda com a mente ocupada pela recensão crítica que havia feito ao livro de Barnabé Nkomo sobre Uria Simango. Embora tivesse criticado o livro duramente do ponto de vista metodológico ele tinha levantado questões importantes demais para serem apenas ignoradas só porque a metodologia era problemática, algo que deixei vincado no último parágrafo da minha recensão quando escrevi que mesmo se só 1 por cento do conteúdo fosse verdade, os libertadores da pátria tinham a obrigação de vir a público dizer o que realmente tinha acontecido.
Marcelino dos Santos era bom conversador. Tão bom, na verdade, que conseguiu evadir as minhas perguntas sobre Uria Simango para falar de Amílcar Cabral e sua relação com o Partido Comunista português, relação essa que ele não via com bons olhos. Sobre Simango quedou-se nas platitudes habituais, o que me deixou completamente insatisfeito. Seria imbecil negar o importantíssimo papel histórico de Marcelino dos Santos na fundação da nossa nacionalidade. Por isso, embora tenha uma opinião firme em relação à questão do estatuto de “herói” (que é igual a que tenho em relação a Samora Machel), não me parece que essa seja a discussão mais interessante a fazer por ocasião do seu desaparecimento físico. Para mim, e tenho vindo a pregar isto há anos, a questão é saber como lidar com a proclamação da independência e o que a maneira como esta proclamação foi feita tem a ver com os problemas que ainda hoje temos no País. Tenho em mim que enquanto não encontrarmos uma maneira de discutir esta fase da nossa história, dificilmente teremos os recursos intelectuais e políticos necessários à compreensão dos desafios políticos que o País enfrenta.
Há, para mim, um sentido em que a Frelimo traíu a sua própria luta. Lutou contra o colonialismo português e, no processo, uma parte importante do movimento desenvolveu um ideal de sociedade que correspondia aos seus anseios, não necessariamente aos anseios dos moçambicanos, mas que ela confundiu com os verdadeiros anseios do povo. O momento da traição consistiu em pensar que o facto de ter liderado a luta anti-colonial conferia à Frelimo a prerrogativa não só de definir o que Moçambique seria como também de se auto-proclamar intérprete infalível da vontade do povo. Ao invés de apostar na construção dum estado que protegesse os recém-nascidos moçambicanos do tipo de excessos que o regime colonial tinha cometido na sua arrogância civilizacional, a Frelimo adoptou o mesmo tipo de arrogância, desta feita “socialista”, para manter a prerrogativa de violar a dignidade humana dos novos sujeitos a coberto duma narrativa de boas intenções.
As execuções sumárias de “traidores” duma pátria que não existia cabem aqui. Simango, Simeão, Gwendjere e outros não foram executados – em circunstâncias que, oficialmente, continuam desconhecidas no País – porque “traíram” a pátria. Foram executados porque o seu pensamento diferente – não importa se bom ou não – punha em causa a prerrogativa da Frelimo de definir quem era “verdadeiramente” moçambicano e, por via disso, de interpretar a sua vontade. Não foi a crença no “marxismo” que levou os “libertadores da pátria” a cometerem este e outros excessos como, por exemplo, as execuções públicas, a “Operação Produção”, a re-introdução de castigos corporais no sistema penal (o famoso “xamboco”). Foi o exercício dum poder absoluto cuja moderação dependia apenas dos detentores do poder. Foi a ideia de que quando alguém tem boas intenções não é necessário nenhum controlo sobre o seu poder. Vem dessa convicção o poder excessivo que o Presidente da República em Moçambique tem e que tem sido um grande obstáculo à democratização do País. Devo referir aqui que já antes de Gilles Cistac o fazer, eu criticava estes poderes excessivos e, num texto, cheguei a exortar Guebuza a perguntar a si próprio se gostaria que o seu pior inimigo tivesse os mesmos poderes que ele tinha como Presidente.
Os problemas da traição da própria luta não se reduzem aos poderes excessivos do Presidente. Reduzem-se a uma cultura política profundamente enraizada na Frelimo – e, curiosamente, mesmo nos partidos de oposição e na sociedade civil – segundo a qual fazer política é trabalhar para o bem do povo – o que até não é mentira. O problema disto é que se cai facilmente na lógica dos fins que justificam os meios, razão pela qual a Frelimo cometeu os excessos do seu período glorioso, a Renamo se entregou (e continua) à orgia da violência contra inocentes na sua luta pela democracia e, ainda hoje, grande parte da chamada sociedade civil não vê nenhum limite ético ao que faz por estar convencida de que é pelo bem. O artigo 146 da nossa constituição contém uma frase simples, mas profunda, na sua alínea 2, nomeadamente a seguinte: “O Chefe do Estado é o garante da Constituição”. O artigo 150, sobre o juramento, reitera esta alínea: “Juro, por minha honra, respeitar e fazer respeitar a Constituição, desempenhar com fidelidade o cargo de Presidente da República de Moçambique, dedicar todas as minhas energias à defesa, promoção e consolidação da unidade nacional, dos direitos humanos, da democracia e ao bem-estar do povo moçambicano e fazer justiça a todos os cidadãos.”
Nunca nenhum Presidente de Moçambique viu nestas alíneas o verdadeiro objectivo e conteúdo da política. O silêncio ensurdecedor do actual chefe do estado quando pessoas da sua confiança proferem ameaças contra órgãos de informação é, infelizmente, prova disso. A trapalhice que foi o acordo de paz definitiva com a criação dum órgão que efectivamente mandou às urtigas o direito que o povo tem de escolher os seus representantes e por eles ser governado constitui mais uma confirmação disso. A traição da luta da Frelimo pela própria Frelimo levou-nos até aqui. Acho piada sem graça quando estes “revolucionários” são celebrados como a virtude em pessoa, os íntegros e infalíveis quando, na verdade, devemos a eles o adiamento da construção de Moçambique como nação erguida sobre os escombros da dominação colonial graças, curiosamente, à sua valentia.
O que quero dizer é que o tempo urge. Eles vão morrendo porque o relógio biológico é implacável. Duvido que encontrem descanso lá do outro lado enquanto nós, como nação, não tivermos coragem de nos reconciliarmos com a nossa história. Essa reconciliação passa por reconhecermos uma verdade ética incontornável: nada, absolutamente nada mesmo, justifica tirar a vida de seja quem for apenas porque essa pessoa teve a ousadia de pensar diferente. Precisamos desse reconhecimento para repensarmos a nossa arquitectura política, desta feita assente na protecção dos direitos dos moçambicanos, não na promoção da prerrogativa dos detentores do poder para nos fazerem felizes para todo o sempre. Eles podem não admitir isto, mas não me surpreenderia se muitos dos libertadores tivessem necessidade deste exorcismo para também se libertarem de muitos temores que populam a sua consciência. Precisam da nossa ajuda.
Não custa nada pedir desculpas. Bom, só custa perder arrogância. É um preço insignificante para o grande benefício que vai ser recuperar o verdadeiro projecto de independência.
Já não me lembro se foi no dia 21 ou 22 de Junho de 1975. Só sei que foi dias antes da proclamação da independência. A minha beleza precoce (suponho) levou as gentes da cidade de Xai-Xai a indicarem a Delfina Zaqueu (Lolota) e a mim como os “continuadores” que iriam dar a prenda da cidade aos ilustres visitantes. Eram eles Samora Machel e Marcelino dos Santos na sua viagem triunfal do “Rovuma ao Maputo”. Ambos deram-me “upa” depois de lhes presentearmos com uma saia de palha para a dança de “xingomana” (matxika) e o Marcelino ainda me ofereceu as bochechas para eu lhe dar “bá”. Tinha 10 anos. O embaraço (que até hoje ainda sinto) foi compensado, na altura, pelo estatuto de celebridade que ganhei durante alguns dias.
Voltei a ter contacto directo com Marcelino dos Santos na Cidade da Praia, em Cabo Verde, em 2005 se não estou em erro. Ambos estávamos a participar num simpósio sobre Amílcar Cabral. Passámos uma manhã inteira a conversar no restaurante do hotel onde ambos estávamos alojados. Até perdemos a sessão dessa manhã por causa disso. Eu andava ainda com a mente ocupada pela recensão crítica que havia feito ao livro de Barnabé Nkomo sobre Uria Simango. Embora tivesse criticado o livro duramente do ponto de vista metodológico ele tinha levantado questões importantes demais para serem apenas ignoradas só porque a metodologia era problemática, algo que deixei vincado no último parágrafo da minha recensão quando escrevi que mesmo se só 1 por cento do conteúdo fosse verdade, os libertadores da pátria tinham a obrigação de vir a público dizer o que realmente tinha acontecido.
Marcelino dos Santos era bom conversador. Tão bom, na verdade, que conseguiu evadir as minhas perguntas sobre Uria Simango para falar de Amílcar Cabral e sua relação com o Partido Comunista português, relação essa que ele não via com bons olhos. Sobre Simango quedou-se nas platitudes habituais, o que me deixou completamente insatisfeito. Seria imbecil negar o importantíssimo papel histórico de Marcelino dos Santos na fundação da nossa nacionalidade. Por isso, embora tenha uma opinião firme em relação à questão do estatuto de “herói” (que é igual a que tenho em relação a Samora Machel), não me parece que essa seja a discussão mais interessante a fazer por ocasião do seu desaparecimento físico. Para mim, e tenho vindo a pregar isto há anos, a questão é saber como lidar com a proclamação da independência e o que a maneira como esta proclamação foi feita tem a ver com os problemas que ainda hoje temos no País. Tenho em mim que enquanto não encontrarmos uma maneira de discutir esta fase da nossa história, dificilmente teremos os recursos intelectuais e políticos necessários à compreensão dos desafios políticos que o País enfrenta.
Há, para mim, um sentido em que a Frelimo traíu a sua própria luta. Lutou contra o colonialismo português e, no processo, uma parte importante do movimento desenvolveu um ideal de sociedade que correspondia aos seus anseios, não necessariamente aos anseios dos moçambicanos, mas que ela confundiu com os verdadeiros anseios do povo. O momento da traição consistiu em pensar que o facto de ter liderado a luta anti-colonial conferia à Frelimo a prerrogativa não só de definir o que Moçambique seria como também de se auto-proclamar intérprete infalível da vontade do povo. Ao invés de apostar na construção dum estado que protegesse os recém-nascidos moçambicanos do tipo de excessos que o regime colonial tinha cometido na sua arrogância civilizacional, a Frelimo adoptou o mesmo tipo de arrogância, desta feita “socialista”, para manter a prerrogativa de violar a dignidade humana dos novos sujeitos a coberto duma narrativa de boas intenções.
As execuções sumárias de “traidores” duma pátria que não existia cabem aqui. Simango, Simeão, Gwendjere e outros não foram executados – em circunstâncias que, oficialmente, continuam desconhecidas no País – porque “traíram” a pátria. Foram executados porque o seu pensamento diferente – não importa se bom ou não – punha em causa a prerrogativa da Frelimo de definir quem era “verdadeiramente” moçambicano e, por via disso, de interpretar a sua vontade. Não foi a crença no “marxismo” que levou os “libertadores da pátria” a cometerem este e outros excessos como, por exemplo, as execuções públicas, a “Operação Produção”, a re-introdução de castigos corporais no sistema penal (o famoso “xamboco”). Foi o exercício dum poder absoluto cuja moderação dependia apenas dos detentores do poder. Foi a ideia de que quando alguém tem boas intenções não é necessário nenhum controlo sobre o seu poder. Vem dessa convicção o poder excessivo que o Presidente da República em Moçambique tem e que tem sido um grande obstáculo à democratização do País. Devo referir aqui que já antes de Gilles Cistac o fazer, eu criticava estes poderes excessivos e, num texto, cheguei a exortar Guebuza a perguntar a si próprio se gostaria que o seu pior inimigo tivesse os mesmos poderes que ele tinha como Presidente.
Os problemas da traição da própria luta não se reduzem aos poderes excessivos do Presidente. Reduzem-se a uma cultura política profundamente enraizada na Frelimo – e, curiosamente, mesmo nos partidos de oposição e na sociedade civil – segundo a qual fazer política é trabalhar para o bem do povo – o que até não é mentira. O problema disto é que se cai facilmente na lógica dos fins que justificam os meios, razão pela qual a Frelimo cometeu os excessos do seu período glorioso, a Renamo se entregou (e continua) à orgia da violência contra inocentes na sua luta pela democracia e, ainda hoje, grande parte da chamada sociedade civil não vê nenhum limite ético ao que faz por estar convencida de que é pelo bem. O artigo 146 da nossa constituição contém uma frase simples, mas profunda, na sua alínea 2, nomeadamente a seguinte: “O Chefe do Estado é o garante da Constituição”. O artigo 150, sobre o juramento, reitera esta alínea: “Juro, por minha honra, respeitar e fazer respeitar a Constituição, desempenhar com fidelidade o cargo de Presidente da República de Moçambique, dedicar todas as minhas energias à defesa, promoção e consolidação da unidade nacional, dos direitos humanos, da democracia e ao bem-estar do povo moçambicano e fazer justiça a todos os cidadãos.”
Nunca nenhum Presidente de Moçambique viu nestas alíneas o verdadeiro objectivo e conteúdo da política. O silêncio ensurdecedor do actual chefe do estado quando pessoas da sua confiança proferem ameaças contra órgãos de informação é, infelizmente, prova disso. A trapalhice que foi o acordo de paz definitiva com a criação dum órgão que efectivamente mandou às urtigas o direito que o povo tem de escolher os seus representantes e por eles ser governado constitui mais uma confirmação disso. A traição da luta da Frelimo pela própria Frelimo levou-nos até aqui. Acho piada sem graça quando estes “revolucionários” são celebrados como a virtude em pessoa, os íntegros e infalíveis quando, na verdade, devemos a eles o adiamento da construção de Moçambique como nação erguida sobre os escombros da dominação colonial graças, curiosamente, à sua valentia.
O que quero dizer é que o tempo urge. Eles vão morrendo porque o relógio biológico é implacável. Duvido que encontrem descanso lá do outro lado enquanto nós, como nação, não tivermos coragem de nos reconciliarmos com a nossa história. Essa reconciliação passa por reconhecermos uma verdade ética incontornável: nada, absolutamente nada mesmo, justifica tirar a vida de seja quem for apenas porque essa pessoa teve a ousadia de pensar diferente. Precisamos desse reconhecimento para repensarmos a nossa arquitectura política, desta feita assente na protecção dos direitos dos moçambicanos, não na promoção da prerrogativa dos detentores do poder para nos fazerem felizes para todo o sempre. Eles podem não admitir isto, mas não me surpreenderia se muitos dos libertadores tivessem necessidade deste exorcismo para também se libertarem de muitos temores que populam a sua consciência. Precisam da nossa ajuda.
Não custa nada pedir desculpas. Bom, só custa perder arrogância. É um preço insignificante para o grande benefício que vai ser recuperar o verdadeiro projecto de independência.
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