"A polícia barrou" o Largo Primeiro de Maio, contou um dos participantes que disse que mais de dez pessoas forma detidas e algumas ficaram feridas.
A polícia de Luanda impediu que se realizasse na tarde deste sábado uma marcha de solidariedade com os 17 activistas condenados no final de Março por crimes de “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”. A concentração estava agendada para o meio da manhã, no Largo Primeiro de Maio, mas a polícia montou cordões de segurança que travaram os movimentos dos manifestantes.
Adolfo Campos, activista do Movimento Revolucionário — o mesmo grupo a que pertencem vários condenados —, contou ao PÚBLICO que a polícia tinha já “tudo encerrado e com agentes à paisana” quando ele e outros manifestantes chegaram ao largo. “A polícia travou tudo, barraram o Largo por completo”, afirmou, dizendo que ao início da tarde as autoridades já tinham detido mais de dez pessoas e ferido um manifestante na cabeça.
“Não viemos aqui para lutar com a polícia, viemos para fazer uma manifestação pacífica”, disse, admitindo que os manifestantes estavam a avaliar o que fazer — segundo ele, agentes à paisana da polícia agrediam com ferros algumas das pessoas que se afastavam do grupo. “A situação está muito grave”, afirmou.
Não é incomum a polícia angola impedir violentamente demonstrações deste género. Aconteceu várias vezes ao longo do julgamento em tribunal dos 17 activistas, e mais recentemente no dia 4 de Abril, em Benguela, onde a polícia impediu um protesto de solidariedade com os condenados e antigovernamental. Deteve e libertou 12 activistas no mesmo dia, numa prática também repetida pelas autoridades.
Adolfo Campos disse ao PÚBLICO contar cerca de 80 manifestantes no Largo nas primeiras horas da tarde, rodeados por “vários cordões da polícia” — era evidente a comoção e o som de sirenes durante os telefonemas. Segundo o jornal online Rede Angola, o governo da província de Luanda foi alertado sobre a manifestação — que também denuncia as condenações dos activistas José Marcos Mavungo e José Julino Kalupetekano — dia 21 de Março.
Num artigo publicado este sábado no Rede Angola, um dos organizadores do protesto, Marley Ibrahim, admitia não terem conseguido “qualquer apoio, nem de partidos políticos, nem de alguma organização governamental”. Um segundo activista contactado este sábado pelo PÚBLICO, Emiliano Catumbela, explicou que um grupo de manifestantes visitou alguns activistas presos antes de se dirigir ao Largo Primeiro de Maio, tendo confirmado que alguns estão encarcerados em condições precárias, dependendo da água da chuva para ter que beber, por exemplo.
Os 17 activistas angolanos foram condenados a penas de prisão efectiva que variam entre dois a oito anos por, segundo a acusação, estarem a preparar um golpe de Estado no país. O tribunal considerou que os debates realizados entre os activistas serviram para orquestrar actos de rebelião — o Ministério Público usou até um Governo hipotético discutido no Facebook como prova disso. Treze dos condenados foram detidos a 20 de Junho durante um debate sobre o livro Da ditadura à Democracia, de Gene Sharp (Tinta-da-China).
Um Governo hipotético discutido no Facebook é prova contra activistas angolanos
No julgamento com início marcado para esta segunda-feira, a acusação usa lista de nomes discutida na rede social. Luaty seria o procurador-geral. “Uma conspiração não ocorre num debate público”, diz o advogado que lançou a discussão.
Uma discussão no Facebook sobre a composição de um hipotético governo de salvação nacional é uma das provas contra os activistas angolanos detidos desde Junho, acusados de tentativa de rebelião, que, esta segunda-feira, devem começar a ser julgados em Luanda. O executivo teria como Presidente da República interino José Kalupeteka, líder de um grupo milenarista dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Luaty Beirão, o rapper que durante 36 dias fez greve de fome, seria o Procurador-Geral da República.
A lista com nomes e cargos foi discutida abertamente no Facebook em Maio, um mês antes das detenções dos 15 activistas, que são acusados de actos preparatórios de rebelião. Já se sabia, como noticiou logo em Junho o siteangolano Club-k, que a Procuradoria a retomara para a apresentar como sendo da autoria dos “revús”, os activistas do Movimento Revolucionário, por supostamente ter sido encontrada entre os documentos apreendidos quando foram detidos. O despacho de pronúncia do Tribunal Provincial de Luanda, de 15 de Outubro, atribui-lhe credibilidade.
“Formaram complô para destituir e substituir, por pessoas da conveniência do grupo, os titulares dos órgãos de soberania do Estado angolano, mormente o Presidente da República ao qual apelidaram de ditador”, escreveu o juiz Januário Domingos no despacho.
Cargo a cargo, nome a nome, o despacho reproduz uma lista resultante de uma discussão lançada na rede social por Albano Pedro, um advogado e professor de Direito de Luanda. “Se tivéssemos que indicar nomes para liderar um Governo de Salvação Nacional em caso de crise política superveniente, quem reuniria consenso entre os angolanos?”, escreveu no primeiro post.
A lista inicial proposta por Albano Pedro é muito semelhante à que acabaria por ser incluída no despacho de pronúncia e igual à que, horas depois, sempre às claras, foi “estruturada e actualizada” no Facebook – tal como uma segunda equipa alternativa – por Afonso Matias, conhecido como Mbanza Hamza, um dos detidos há quase cinco meses, no computador de quem terá sido encontrado um ficheiro com o “governo de salvação nacional”.
O nome de Kalupeteka, líder da Luz do Mundo, foi proposto pelo próprio advogado. “Não conheço nenhum líder de qualquer área que seja que tenha mobilizado sozinho mais de três mil angolanos e ainda por cima sem convencer com promessas de riquezas e bem-estar social”, escreveu.
Kalupeteka, que anunciava o fim do mundo ainda para este ano, foi preso em Abril, depois de confrontos nunca investigados de forma independente entre a polícia e seguidores seus, na província do Huambo, terem causado a morte a pelo menos 22 pessoas – informações não confirmadas falam em centenas.
Como alternativas ao nome do líder d’A Luz do Mundo – que teve “muitas contestações”, como diz a lista do Facebook que a procuradoria angolana veio a incluir no processo judicial – eram indicados para a chefia interina do Estado Alexandra Simeão, uma antiga vice-ministra da Educação; ou Fernando Macedo, professor universitário e ex-presidente da Associação Justiça, Paz e Democracia.
Para vice-presidentes interinos com poderes executivos foram indicados Justino Pinto de Andrade, professor de Economia da Universidade Católica de Luanda e líder do Bloco Democrático, um partido sem representação parlamentar; e Mihaela Weba, professora de Direito Constitucional e Ciência Política e militante da UNITA, a principal força política da oposição parlamentar.
Na lista de mais de meia centena de nomes para ministros, secretários de Estado, órgãos judiciais, instituições públicas e governos provinciais estão, para além de Luaty, quatro outros detidos: Nuno Dala, Mbanza Hamza, Domingos da Cruz e Álvaro Dala. Inclui também nomes que se têm destacado pelo seu activismo, caso de Rafael Marques, indicado para ministro da Justiça e Direitos Humanos; que se tornaram críticos do regime, como o ex-primeiro ministro Marcolino Moco; um conhecido advogado, David Mendes; e até um membro do MPLA, Aníbal Rocha, antigo governador de Luanda. Para a Defesa chegou a ser sugerido o nome do actual ministro, João Lourenço, mas o seu nome não consta da lista “final”.
“Coisa de Inimigo Público”
Quando chegou à discussão e se deparou com a proposta de governo, Mbanza Hanza, o único dos detidos que participou na discussão, não a levou a sério. Só depois resolveu envolver-se. “Nunca antes o Albano me fez rir como agora. Inicialmente me pareceu uma brincadeira, mas à medida que fui descendo no debate fui notando que é sério mesmo.”
Quando chegou à discussão e se deparou com a proposta de governo, Mbanza Hanza, o único dos detidos que participou na discussão, não a levou a sério. Só depois resolveu envolver-se. “Nunca antes o Albano me fez rir como agora. Inicialmente me pareceu uma brincadeira, mas à medida que fui descendo no debate fui notando que é sério mesmo.”
Albano Pedro assume que ao lançar a discussão no Facebook queria fazer um “exercício sério de cidadania e de projecção de futuro”, movido pelas suas preocupações com a “transição política” – um assunto que o motiva, a ele e a outros “jovens intelectuais”. Mas reconhece que a inclusão de Kalupeteka “não passou de brincadeira”.
O advogado – que não foi ouvido em momento algum da instrução do processo – disse ao PÚBLICO que teve uma “surpresa extraordinária” quando soube que a lista discutida no Facebook se tinha tornado elemento de acusação contra os activistas anti-governamentais. “Não posso crer que um debate público possa ser tomado como prova”, afirmou. “Uma conspiração não ocorre num debate público.”
O homem que escreveu o primeiro post da formação do suposto governo pós-José Eduardo dos Santos tinha já manifestado a sua perplexidade num artigo publicado no Club-K em Junho, pouco mais de uma semana após a detenção de Luaty e de 14 dos seus companheiros. “Em que parte do mundo um golpe de Estado se discute publicamente e só passado um mês é que as autoridades tomam conhecimento dele?”
No mesmo texto, com o título: “Afinal, quem está a conspirar contra o Presidente da República?”, Albano Pedro levantava dúvidas sobre o caso. “Mal percebi parte da ‘novela’ ficou claro que os ‘revús’ foram promovidos a meros ‘bodes expiatórios. Para uma causa obscura qualquer”, escreveu. Agora disse ao PÚBLICO que “se há quem esteja a preparar um golpe” é quem incluiu a lista do suposto governo entre as provas.
Luís Nascimento, advogado da equipa de defesa de 12 dos 15 detidos, considera que “eles não podem ser acusados de factos que não criaram”. “Temos o testemunho do autor daquela brincadeira pública. Não se pode transformar uma coisa a que não se deu importância. Não há seriedade naquilo. É uma coisa como no Inimigo Público”, disse, aludindo ao suplemento satírico do PÚBLICO.
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