Na sua lição de jubilação, o professor da Universidade Nova de Lisboa apontou o dedo aos revisionismos e ao culto da desmemória, dizendo que o seus objectivo é abrir caminho para uma nova ordem, neoconservadora e neoliberal.
A História não acabou. Nem sequer a sua como professor. Fernando Rosas deu nesta quinta-feira a sua última aula, ou melhor, a sua aula de jubilaçãoperante um auditório cheio da Universidade Nova de Lisboa, mas logo ali anunciou ter aceitado o convite para continuar a leccionar a cadeira de História dos Fascismos e continuar como investigador do Instituto de História Contemporânea de que foi fundador.
Na presença de figuras tão díspares da Revolução de 1974 como Arnaldo Matos, Mário Tomé ou Pezarat Correia, historiadores como Manuel Loff ou Fernanda Rolo (actual secretária de Estado do Ensino Superior), ex-ministros como Marçal Grilo ou Severiano Teixeira, e muitos compagnon de route do Bloco de Esquerda – Francisco Louçã, João Semedo, José Manuel Pureza, José Soeiro – Fernando Rosas falou da história como palco de combates entre a ciência, de um lado, e do outro o revisionismo e a desmemória, cujo objectivo é “legitimar a implantação de um novo curso capitalista neoconservador e neoliberal”. Uma lição com a sua marca, em que não hesitou a apontar o dedo a Rui Ramos, seu grande adversário na leitura da história contemporânea portuguesa .
Rosas recusou, mais uma vez, que essa “nova ordem conservadora e liberal, com formas brutais de acumulação de capital” tenha representado o fim da História, no sentido do fim dos processos históricos como processos de mudança. “No mundo ocidental, a capacidade de resiliência cultural e memorial dos paradigmas emancipatórios não só sobrevive às rendições do centrismo e da social-democracia, como tende a renovar-se”, afirmou.
Para o demonstrar, Rosas falou da Revolução de 1974/75, na qual “a fundação constitucional da democracia assentou num consenso, seguido por todos os partidos da direita com assento parlamentar, de condenação inequívoca do passado ditatorial”. E afirmou mesmo que o salazarismo não deixou “herdeiros ideológicos ou políticos assumidos no sistema democrático, mesmo no campo da direita reorganizada”.
No entanto, identificou os processos pelos quais, na actual sociedade portuguesa, se desenvolvem as “tentativas de reinterpretação” do passado recente. A primeira que apontou foi a “desmemória” criada pelos media, pela escola e as novas tecnologias, que criam um ambiente de “presente contínuo”, que significa “uma forma de manipulação da memória” pelo “apagamento de acontecimentos, de processos históricos e de valores que transportem do passado um potencial subversor da nova ordem que se pretende estabelecer”. “Uma espécie de amoralismo paralisante” que inculca “a aceitação acrítica da lei do mais forte, da injustiça social, da destruição das forças produtivas”, disse.
O objectivo deste “apagão selectivo da memória” será impor novas regras de trabalho, por exemplo, como se tratasse de uma fatalidade. “É mais fácil impor as 10 ou 12 horas de trabalho aos operários da indústria automóvel se se lhes apagar a memória dos rios de sangue que correram para que a classe operária europeia ou americana conquistassem a jornada de oito horas de trabalho”, ilustrou.
O segundo processo que apontou nesta “revisão das representações do passado” é a utilização da “memória como farsa, como objecto de consumo, espectáculo lúdico, inocente e banalizador”. São os seus veículos alguma “literatura de cordel e até algum trash televisivo” que tende a apresentar Salazar como um “homem comum”, “um macho latino secretamente insaciável” ou mesmo como o vencedor do concurso Grandes Portuguesesque a RTP organizou em 2006/07.
Dedo contra Rui Ramos
O “revisionismo de registo historiográfico” é apontado como o terceiro processo, aquele que “pretende refugiar-se no estatuto da escrita da história para poder ser evocada como argumento nos debates acerca do passado”. E aqui foi directo aos seus destinatários: “Quando autores como Vasco Pulido Valente ou Rui Ramos, a propósito do centenário da I República (e bem antes) a caricaturam como um regime terrorista e caótico, num discurso primário decalcado da propaganda estadonovista, o que pretendem não é tanto tratar da I República, mas sim legitimar a ditadura militar e o salazarismo que lhe teriam sucedido como aurora redentora”.
A ideia do revisionismo sobre o Estado Novo, continua Rosas, é reduzir o antigo regime à “normalidade conservadora” que o permite apresentar, na sua “fase marcelista, como um processo de desenvolvimento de onde sairia uma qualquer espécie de transição pacífica para uma democracia musculada e de solução federativa para a guerra colonial”. Um processo que foi interrompido pelo “caos inopinado da revolução”.
Rosas contesta fortemente esta visão. “A revolução de 74/75 constitui a marca genética da democracia portuguesa, o principal factor que a viabiliza e define o seu perfil inicial”, afirma. “Cortar-lhe essa amarra é o propósito teórico essencial do revisionismo historiográfico, prenhe de evidentes efeitos de toda a ordem para os dias de hoje”, defende. Para concluir que “as tarefas da história e os usos da memória são indissociáveis do tipo de sociedade que queremos como presente e como futuro”.
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