Estou a ver algumas pessoas a esfregarem as mãos à espera de me verem aqui a me contradizer. Vejo outros consternados com o receio de que esteja prestes a proporcionar lenha para o fogo dos outros. Nem uma, nem outra coisa. Na verdade, esta postura “preto/branco” incomoda-me muito. Mais do que qualquer outra coisa, ela é provavelmente responsável por uma boa parte dos nossos problemas políticos. Diálogo entre gente intransigente apostada apenas em proteger as suas crenças é impossível. De cada vez que abro o “Facebook” e vejo alguns textos ou discussões sobre qualquer assunto pérola indiano fico decepcionado não só com a qualidade do debate neles patentes, como também com a banalização do conhecimento e do estudo profundo dos assuntos.
Recentemente, vi dois “posts” que me incomodaram muito, ambos compartilhados por “face-amigos”. Um foi sobre uma entrevista que Sérgio Vieira concedeu à STV. Vinha do director do semanário “Canal de Moçambique”, Fernando Veloso, e acompanhava-o, se bem me lembro, uma frase com os seguintes dizeres: “a entrevista do assassino confesso Sérgio Vieira”. O outro era de Nini Satar e era sobre o comentário do jurista João Carlos Trindade acerca do caso da espanhola que foi expulsa do país. O texto começava por referir que durante o monopartidarismo ele teria condenado gente à morte (fuzilamento) e a castigos corporais (chambocada). Prosseguia depois para “dar aulas de direito” a uma autoridade nessas matérias, aulas dadas, note-se, por um leigo na matéria. Não me interessa discutir o passado destas pessoas embora seja minha convicção que a consolidação da democracia passe por uma reconciliação com a nossa história e com os crimes que cometemos, fomos obrigados a cometer ou foram cometidos em nosso nome. Nenhum de nós, pelo menos a minha geração, é inocente.
O que me interessa destacar é esta cultura problemática de debate que cada vez mais toma conta da nossa esfera pública. A extrema polarização da esfera pública criou uma situação em que o conhecimento profundo, disciplinado e sistemático das coisas passou a contar menos do que a coragem de dizer aquilo que certas pessoas (da nossa malta) gostariam de ouvir e a coragem de se ser mal-criado. Mais do que uma crise política o país vive uma crise de legitimidade do pensamento disciplinado. Quem pensa e tem o hábito de tentar ir ao fundo das questões é objecto de troça e serve de espantalho para que gente sem muita coisa na cabeça (mas mal educada e sem vergonha) se sinta no direito de pôr em causa aquilo que gente bem abalizada (em virtude de anos de estudo, milhares de páginas de leitura e dura reflexão) tem para dizer. Nisto, os intelectuais eles próprios não são inocentes, pois há muito charlatão que confunde o seu posicionamento ideológico com profundidade analítica, toma a repetição de lugares-comum que ele encontrou em livros como a revelação da verdade e acha que o simples facto de ter um canudo que confirma que ele fez um certo curso lhe confere o direito, e a prerrogativa, de falar verdade toda a hora. Portanto, embora seja lamentável o nivelamento por baixo que a polarização política suscita, há também uma cultura intelectual e académica que deixa muito a desejar e acaba convidando uma parte dessa imbecilização a que assistimos.
O intelectual, ao que parece, participa no debate apenas para atear o fogo com a sua autoridade, não para introduzir elementos sistemáticos que permitam abordagens mais frias das coisas. Essas abordagens frias não garantem a veracidade, claro, mas fazem uma coisa que é absolutamente necessária à sanidade da esfera pública: ajudam na construção de espaços onde podemos concordar sobre os méritos das questões mesmo que tenhamos preferências ideológicas diferentes e até antagónicas. Gostaria de exemplificar isto com uma problematização do que considero a indústria dos erros de Guerra que ganhou força na esfera pública como quadro explicativo do que corre mal. Vou ilustrar o meu argumento com dois temas quentes, a situação político-militar e os problemas da EMATUM. O discurso que ajuda muita gente a perceber estes dois assuntos é simples. Fomos governados por um indivíduo corrupto que abusou do poder para se enriquecer juntamente com os seus sequazes. A consequência disso é a crise política e a crise financeira. O país está a pagar as consequências do erro de termos colocado um bandido no poder. Tornamo-nos num estado gangsterizado, ladrão, falido e instável por conta desse erro. Este é o esquema analítico duma boa porção das pseudo-análises que vejo por aí. A sua plausibilidade depende do grau de identificação com esta narrativa de base. Quanto mais forte for essa identificação, mais contundentes nos parecem as “análises” e mais vigoroso é o nosso comentário de apoio aos autores dessas grandes “análises”.
Pessoalmente, tenho muitos problemas com isto, dois dos quais podem ser rapidamente expostos. Primeiro, há um erro crasso que se comete nestas “análises”. Consiste em dar por adquirido aquilo que precisa ainda de ser demonstrado. Por exemplo, no caso da EMATUM a suposição é de que o negócio foi feito para benefício próprio (o mesmo para Cabora Bassa). Pode ter sido. Mas não está provado. As suspeitas podem ser fortes. Mas ainda não foram confirmadas. Logo, construir toda uma análise que dependa disso é tudo menos académico. É nivelamento por baixo. Segundo, existe a tendência de reduzir os problemas que constatamos ao indivíduo em detrimento dos factores estruturais e contextuais que propiciam a emergência de certos comportamentos e fenómenos. Nenhuma pessoa, nem mesmo Guebuza, é maior do que um país, logo, reduzir os problemas do país aos apetites individuais duma pessoa é obra, mas obra fútil que serve apenas para dar conforto aos que têm preguiça de pensar.
Existe uma narrativa diferente da do Guebuza ladrão e bandido. É uma narrativa que presta atenção ao contexto dentro do qual certos comportamentos se tornam possíveis e certos fenómenos se tornam visíveis. Essa narrativa parte da natureza do seu mandato e sua articulação com o tipo de país (sistema e cultura políticas) que Moçambique é. Uma característica particular do primeiro mandato de Guebuza foi o de ter conferido legitimidade a uma maneira de fazer política que vincava o papel forte do Estado e premiava a mentalidade de fazer contra a deliberação pelo simples prazer de deliberar. Algumas pessoas esquecem, mas muitos dos que criticam Guebuza hoje aplaudiram esse estilo de governação. Pessoalmente, sempre critiquei essa postura, sobretudo na manifestação que ela teve por via do então ministro da saúde que foi celebrado por alguns dos críticos de hoje como a re-incarnação de Samora. O problema desta postura é que no contexto daquilo que chamo de “poder da Frelimo” (escrevi esta série de textos nessa altura e inspirado pelos problemas que já via surgirem) criou necessariamente espaços de arbitrariedade que podiam ser aproveitados por indivíduos espertos para seguirem agendas que não eram necessariamente a agenda pensada por Guebuza. O reforço do partido, que era necessário para que a postura do Estado no comando fosse credível, também contribuiu para que aquela cultura da Frelimo gloriosa (uma cultura que é partilhada por quase todos nós independentemente das nossas preferências políticas) de confundir os interesses do partido com os interesses nacionais e de recorrer ao patriotismo para retirar legitimidade à opinião diferente se instalasse com mais força ainda e oferecesse argumentos fáceis aos que não tinham nenhum escrúpulo em abusar do poder do Estado.
O que no primeiro mandato era apenas uma postura virou ambiente político no segundo mandato com algumas consequências dramáticas. No caso da Renamo, e ao contrário do que muitos pseudo-analistas pensam, não foi a postura autoritária e intolerante de Guebuza que nos levou à crise. O seu sucesso político privou a Renamo, sobretudo o seu líder, duma ficção que tinha sido instrumental para a assinatura do acordo de paz em Roma, nomeadamente a ficção segundo a qual haveria no país duas forças políticas com mais ou menos a mesma força e de cuja concertação dependeria a paz no país. A verdade é que o curso errático do próprio líder da Renamo tinha enfraquecido o seu partido e tinha tornado claro que o “consenso de Roma” dificilmente seria um bom guia para a paz em Moçambique, pois ele implicaria sempre tornar o país refém dessas duas forças. Não quero escrever um tratado sobre estas coisas, mas apenas indicar que é muito complicado reduzir a crise política à arrogância de Guebuza (e no mesmo fôlego enaltecer o papel de Chissano – que pode ser enaltecido por outras razões – mas decididamente não porque ele preservou melhor a paz, pois mesmo no seu mandato enfrentou crises graves criadas pela própria inépcia da Renamo). No caso da EMATUM o ambiente político que se consolidou no segundo mandato também ajuda a entender melhor o que se passou. É possível que se tenha tornado difícil internamente questionar decisões problemáticas num ambiente discursivo e político que enfatizava o dirigismo (decisão tomada, decisão cumprida), patriotismo e empreendedorismo. E é bom não esquecer que, apesar de tudo, a decisão de conceder os empréstimos a quem quer que seja que teve a ideia de fazer esses investimentos foi apreciada e tomada por especialistas dessas entidades estrangeiras (bancos) que não tinham necessariamente esquemas de corrupção com a malta de Guebuza. Aqui também não quero escrever nenhum tratado. Só quero sugerir que facilitamos muito a nossa vida (e por essa via nos iludimos) partindo de esquemas analíticos simplistas e normativos que só nos permitem ver aquilo que queremos ver assim como concluir aquilo que nos vai confortar.
Para os menos atentos: este esquema alternativo de leitura do que aconteceu não nega que Guebuza possa ter sido ladrão e apenas motivado pelos seus próprios interesses. Simplesmente não impõe isso como a única grelha de leitura, pois ao fazer isso inviabiliza todas as outras leituras possíveis. Eu fico arrepiado quando leio “análises” que depois são aplaudidas no Facebook como a revelação da erudição e profundidade, mas análises que são no fundo apenas a repetição com grande alarido dos nossos próprios palpites. O problema destas análises é que distorcem a situação do país, não nos permitem entender o que de facto está em questão e, pior ainda, são incapazes de ver que os nossos problemas são na realidade a manifestação local de padrões políticos gerais que são acessíveis à análise séria e objectiva. O que resta depois de feitas estas pseudo-análises é apenas o grito de desespero, tipo “estamos entregues à bicharada”, gritos esses que de tanto serem ecoados vão contribuir para cimentar uma representação falsa do país e vão encorajar pseudo-soluções sem nenhum sustento.
Uma coisa é desabafar, outra é procurar tirar proveito político de alguma situação, outra ainda é analisar objectivamente. Em momentos cruciais da evolução política dum país é importante que a apetência pelas duas primeiras coisas seja vista como uma ameaça ao bom senso e que a terceira, a análise objectiva, encontre mais espaço. Uma condição para que isso aconteça devia ser a contenção, isto é que todo aquele que pensa que entendeu o problema submetesse esse seu entendimento ao teste duro não da plausibilidade, mas da solidez analítica. E a pergunta aí é: se eu não tivesse a postura política que tenho será que esta explicação continuaria ainda a fazer sentido para mim? Só que isso é difícil, pois exige honestidade intelectual, algo que rareia em ambientes políticos polarizados.
Quero pedir uma coisa. Quem quiser comentar aqui discordando comigo é bem-vindo. Mas, por favor, antes de discordar escreva o que pensa que eu quis dizer no texto. Infelizmente, tenho reparado que algumas discussões que tenho por aqui resultam de as pessoas terem entendido algo diferente do que eu próprio pensei ter comunicado. Toca daí a disparatar, qual munícipe simples de Quelimane.
O melhor momento para entender o lider de hoje eh amanha
Estou a ver, com muita frequencia, pessoas jovens, adultas, da terceira idade, com formacao academica ao nivel superior ou com formacao basica a reclamar da situacao actual da divida publica de Mocambique. A reclamacao vai ao nivel de exigir responsabilizacao do anterior governo, principalmente do Presidente Guebuza. Acho isto um bom exercicio de cidadania e uma revelacao de maturidade. Contudo, este exercicio de cidadania peca pela tamanha hipocrisia que reina na exigencia. Digo isto porque todos nos queremos desenvolvimento, mas somos os primeiros que nao pagamos impostos como deveriamos. Alias, pagar impostos eh o sinal alto do contrato social que nos da o direito de exigir o que quer que seja. Entao, como ter desenvolvimento sem dinheiro para gerar desenvolvimento? Ficar inerte ou pedir dinheiro? Pedir pouco para fazer coisas pequenas e permanecermos subdesenvolvidos? Pedir muito dinheiro para fazer coisas grandes, permanecermos subdesenvolvidos, mas com perspectivas desenvolvimentistas?! Sera estamos condenados a pensar pequeno para ter ganhos pequenos? Sera que estamos condenados a fazer coisas pequenas para contemplarmos sempre o nosso sofrimento?! Sera que estamos fatalmente condenados a ter visao imediatista? Depois de respondermos a todas estas perguntas vamos perceber que o melhor momento para entender o lider de hoje eh amanha.
Ao ver a exigencia da responsabiliacao, constato que ha uma expressao (i)legitima de frustracao, mas que peca pelo auto-flagelo e pela visao desenvolvimentista imediatista. Entendo esse problema, pois nao se pode exigir paciencia a uma pessoa que sente profundamente a insatisfacao das necessidades basicas e a dor da pobreza. Por esse motivo percebo a exigencia. Contudo, parece um erro de abordagem, pois quem exige responsabilizacao esquece de dizer que tambem eh parte do problema, pois se todos fossemos “cidadaos de verdade” (aquele que paga impostos), talvez nao teriamos necessidades de andar a pedir muito dinheiro.
Ademais, ao ver a exigencia de responsabilizacao, constato que ha muita emocao e pouca racionalidade e ponderacao. Digo isto porque nao vejo nessa exigencia uma clareza do significado de responsabilizacao. O que significa responsabilizacao? Mandar gente para cadeia?! Mandar gente devolver dinheiro?! Quem deve devolver e quanto dinheiro deve devolver? Devolver os barcos da EMATUM? Devolver o equipamento adquirido para a defesa nacional?! Seria mandar parar a construcao da circular? Seria mandar parar a construcao da ponte?! Seria mandar parar a construcao da estrada Beira - Machipanda?! Aqui eh onde esta evidente a visao imediatista e fatalista. Ninguem esta a perguntar quanto vamos ganhar com todo esse investimento, amanha?! Ninguem esta a dizer se o que vamos ganhar amanha compensa o sacrificio de hoje?! Uma coisa eh certa. Quando comecarem as inaugaracoes dos grandes empreendimentos vamos nos lembrar da palavra responsabilizacao e vamos nos lembrar da lideranca. Por isso, o melhor momento para entender o lider de hoje eh amanha.
Por ultimo, quero reiterar que o melhor momento para entender o lider de hoje eh amanha! Os mais atentos e mais pragmaticos vao se lembrar que Samora foi velipendiado, mas hoje eh "Endeusado". Chissano foi velipendiado. Mas hoje eh venerado. Que bases existem para pensar que Guebuza nao vai passar pela mesma trajectoria?!
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