AS ‘RESISTÊNCIAS’ LISBOETAS, A FUMO, O MIRN DE KAÚLZA DE ARRIAGA, A MALTA DO ‘7 DE SETEMBRO’ E A PONTE PARA UM ENIGMÁTICO ‘ROBERTO CHIPANGA’
Descartar-me da situação... Era importante. Não sabia o que iria acontecer quando os ‘serviços’ coligissem informações e verificassem que o novo colaborador que recrutaram era, afinal, o mesmo indivíduo que outra repartição já vigiava por críticas ao regime, tanto no Aeroclube como na Faculdade de Engenharia Electrotécnica. A situação parece séria.
Em Lisboa, começo a pensar profundamente no assunto. Estabeleço um primeiro contacto com o Dr. Domingos Arouca, então líder de um movimento, a FUMO, Frente Unida e Democrática de Moçambique, que era de certa forma notada em alguma imprensa de direita. Arouca era já entrado em idade, é casado com uma senhora portuguesa, professora, e salienta-se por ter sido o primeiro advogado negro moçambicano, tendo estado preso pela PIDE.
Agora, Arouca aconselha-me a não regressar a Maputo. E fala entretanto das divergências dele com a Resistência, a R.N.M. - Resistência Nacional Moçambicana ou Movimento Nacional de Resistência - ‘excessivamente controlada pelos rodesianos’, afirma. Mas, à entrada para um dos encontros posteriores que com ele tive, vejo a sair da moradia dele no Restelo um português que, mais tarde, iria reconhecer como sendo Orlando Cristina, secretário-geral da Resistência Nacional Moçambicana.
Domingos Arouca acrescenta ir formar as suas próprias guerrilhas e que acaba de conseguir três mil uniformes de combate.
Os anos seguintes desmentiriam a vontade, ou possibilidades, de organização militar da FUMO. Ao mesmo tempo eram expostas proezas de elementos que lhe são próximos, como teria sido a explosão do seu próprio carro, atribuída a um tal Carlos Lacerda, ex-colono em Moçambique, membro da conhecida família Lacerda, e um dos envolvidos no movimento do 7 de Setembro que se tentou opor aos Acordos de Lusaca que abriram caminho à descolonização. Era essa pois a maneira de Lacerda propagandear a FUMO. Uma das reuniões do movimento no Hotel Roma, em Lisboa, esteve para ser contemplada com publicidade idêntica mas Domingos Arouca opusera-se firmemente à ideia.
Arouca anuncia-me, por outro lado, que irão rebentar bombas em Maputo, o que efectivamente acontece semanas depois, quando eu já estou de volta à capital moçambicana: três carros armadilhados explodem no centro da cidade.
Agosto de 1979. Cá estou de novo em Maputo, regressado de breves férias e para uma estada, afinal, também breve. Resolvo últimos assuntos que tenho a tratar, informo a família da situação, a ‘situação’, e trato da ida, rápida, para Lisboa. Contorno os encontros tentados por Fernando Chombe e parto por fim a 14 de Setembro.
Em Lisboa, sigo atentamente pela Imprensa a questão moçambicana, as conversações sobre o futuro da ex-Rodésia, os acordos de Lancaster House e a independência do Zimbabwe, já em Abril de 1980. Claro, claro, tudo isto ia influenciar decisivamente a questão moçambicana, o futuro próximo do regime e da oposição.
Até ao regresso de toda a família a Portugal, em Fevereiro de 1981, não efectuo nem tento qualquer contacto com a Resistência, que sobrevive afinal e relativamente bem à queda da Rodésia de Ian Smith. Pudera, com a mais possante mão sul-africana logo a sustê-la após ser largada dos periclitantes braços rodesianos.
Os encontros que tenho com Arouca são cada vez mais espaçados. Compreendo a falta de apoio que a FUMO sofre, preterida tanto por rodesianos como, posteriormente, pelos sul-africanos, em favor da Resistência.
A FUMO esvaziava-se progressivamente como um balão largado, flácido. Mesmo já em 1979, soube muito depois por um antigo elemento, uma boa parte dos militantes em Portugal havia-se passado para o lado da R.N.M. Contactos com o Maláwi, a pedido de Domingos Arouca, e feitos nesse ano por um mulatão idoso morador em Camarate, antigo quadro prestigiado dos Caminhos de Ferro de Moçambique, bem como por mais gente, para uma alternativa militar à Resistência, haviam ficado sem resposta.
Duas figuras avultam contudo aqui neste naipe: Ivete Corte-Real Fernandes, a esposa de Evo Fernandes, um dos fundadores da R.N.M., e o pai dela, Álvaro Corte- Real. Entre outros, são apontados como exemplos de ex-FUMOs que, instigados pelo empresário Jorge Jardim, então baseado no Gabão, e pelo Evo, se passaram para a Resistência. E o próprio Evo, relatam-me, conhecera a Ivete numa das reuniões com a FUMO, em que se tentara persuadir Arouca a aderir ao projecto ‘R.N.M.’
Se bem que na Imprensa e nos meios de retornados, os ex-colonos, o nome de Domingos Arouca ficasse vincado, por obra de toda a carreira do período anterior à Independência, do velho e bojudo advogado, doravante os apoios de antigos colonos iriam inclinar-se mais para Cascais, onde se baseia Fernandes.
Da FUMO, em Lisboa, resta apenas a publicação de três números de um boletim. Em 1982 Arouca entregaria a presidência do movimento ‘por motivos de saúde’ a um jovem advogado moçambicano, quase desconhecido.
Evo Fernandes, como delegado da Resistência em Portugal, mantém-se com um perfil relativamente apagado até 1982, utilizando até o pseudónimo de Roberto Chipanga. Os jornais ‘Tempo’, ‘O Dia’ e ‘O Diabo’, são alguns dos órgãos de Imprensa da direita que privilegiam a informação da Resistência mas que não focam, a seu pedido, a figura do delegado. Regularmente, Fernandes assegura uns textos para ‘O Diabo’ que assina sob o nome de Hermenegildo Vasques, ‘correspondente em Mbabane, Swazilândia’.
E quanto ao muito falado Jorge Jardim, a figura grada de Moçambique, capitalista, agente secreto, etc., etc., das últimas décadas coloniais? A viver em Libreville, no Gabão, onde residirá até à data da sua morte em 1982, e que acaba por ser ultrapassado pelos rodesianos e pelo próprio Evo Fernandes. Dele, ficaria essencialmente uma simbólica primordial.[Note-se por exemplo a simbólica das setas (mais tarde adoptada nas bandeiras da FUMO e da RENAMO) e retratada já a páginas 150 do ‘Moçambique – Terra Queimada’: “... a moda das capulanas fora lançada, na memorável apresentação no Ritz, em que até as flores vinham do Chimoio. Exibindo as setas moçambicanas (símbolo da tradição lusíada, da unidade das gentes, do progresso e da paz) as nossas moças tinham sido inexcedíveis. Lembro a resposta de uma delas a categorizada dama que elogiava a harmonia e bom gosto da nossa insígnia: ‘É lindo, minha senhora, e mais belo ficará na bandeira, quando formos independentes’. Por infelicidade de todos, a bandeira veio a ser diferente. Mas a culpa não foi nossa”.]
Após 1976, ano em que convencera os rodesianos a fazer de Orlando Cristina, um seu antigo homem de mão e pisteiro, o secretário-geral da Resistência, a influência de Jardim vinha a decrescer dentro do movimento. A sua participação é tida por Fernandes como um mero ‘show off ’ de quem pretendia controlar a R.N.M. sem ter já meios concretos, militares, para o fazer.
A condução da guerra seria efectuada, predominantemente, a partir do eixo Salisbúria-Pretória, como o futuro se encarregaria de demonstrar.[Veja-se o livro ‘Moçambique Terra Queimada’, Jorge Jardim – Lisboa 1976, Ed. Intervenção – a páginas 415, já no final da obra, marcada pela perspectiva imediata, o ‘sonho’ que tinha para o futuro de Moçambique. Muito da retórica e da simbólica ‘renamista’ encontra-se já aqui presente: a ‘resistência’, o azul da bandeira (da FUMO e da RENAMO) e mesmo a frase – irónica! – ‘a luta continua’. “Os tanques russos não podem passar nas nossas picadas; as armas modernas de nada servem contra as armas que não temos; e as nossas aldeias são tantas que não há mercenários comunistas suficientes para as ocuparem. Mas eles, que são poucos, podem ser alvo fácil para a resistência do povo, quando se desencadeie a sua revolta. (...) Regressarão muitos, para todos nos ajudarmos (...) Sobretudo para termos, finalmente, liberdade. Surgem já raios de sol a romper o fumo da queimada. Em breve veremos o céu que é azul. E essa será a cor da nossa bandeira. A bandeira de Moçambique erguida pelo governo da maioria. Sob essa bandeira espero ainda viver em Moçambique. (...) Tal como eu, haverá milhares que regressarão. Porque não sabem viver noutra terra. Porque querem viver nessa a que pertencem. Neste livro contei uma história triste. Espero poder escrever outro a contar coisas diferentes. Haverei de o fazer nessa terra em que quero viver e onde espero poder, um dia, vir a morrer. Entretanto, a luta continua... E construiremos o Moçambique Novo.”]
Como faço então para contactar esta gente de sangue na guelra, os que estão no terreno, o Roberto Chipanga e companhia? São vagos, nos vários jornais que contacto, até que indicam uma pista: o partido do ‘general’, tem lá malta de Moçambique que está ‘ligada’…
O Movimento Independente para a Reconstrução Nacional, o MIRN, é um partido, uma organização corpuscular da extrema-direita portuguesa. Tem à sua frente o Kaúlza de Arriaga. Conheço uma tarde este velho general da Operação Nó Górdio. Claro que o homem ainda se movimenta, embora quase senil, assim como um tal coronel Repas, que havia estado nos teatros de operações de Angola, sonhando ambos com o ex-Ultramar naquele quinto andar por cima da Lufthansa, num prédio da Avenida da Liberdade.
O MIRN, ou gente do agrupamento, constituía assim em 1981 um dos círculos não muito distanciados de Evo Fernandes. Eu que já antes tentara, em vão, por intermédio de alguns jornalistas, saber do paradeiro desse tal ‘Roberto Chipanga’ e andava em círculos, parece que tenho aqui uma das pontas da meada. ‘Malta de Moçambique’... A ‘malta’ mais não será porém, aqui e agora, que o rotundo Manuel Gomes dos Santos, o ‘locutor Manuel’, desse Movimento Moçambique Livre, surgido em 7 de Setembro de 1974 contra a independência de Moçambique, e agora militante do MIRN, e quem me vai dar o endereço de Evo Fernandes.
E ao estar perante este Gomes dos Santos, no seu gabinete apertado, ou é ele que é enormíssimo, gordo, balofo mesmo, parece que ouço e vejo agora momentaneamente, de volta, toda a sonância, as labaredas, desses dias terríveis e de ódio que abalaram a então bucólica Lourenço Marques, agitada por este punhado de gente que pôs a urbe a ferro e fogo, trazendo a reacção da população negra, culminando tal façanha com umas centenas de mortos, moradias e carros calcinados, e uma sensação de pânico e desconfiança que foi factor determinante para a partida de muitos. Não resisto: ‘e então, porque é que falhou tudo?’ Deve ter ouvido a mesma merda de pergunta milhares de vezes desde 1974. ‘Foda-se e porras, e mais palavras com ‘f ’s e ‘c’s, e toma lá o endereço, está aqui neste papel!’, um papelucho que acaba de rabiscar e dobrar.
Agosto de 1981. Rua Tenente Valadim 16, rés-do-chão, Cascais. Fica perto da cidadela. Acabo de subir uma rampa íngreme, calcetada, esgueirar-me sob um velho arco em pedra. Tenho no bolso e gravadas na mente as indicações do ‘locutor Manuel’. Toco à campainha. Estou pois ufano, expectante, à porta da Resistência, e no início de uma tortuosa estrada que iria percorrer durante mais de seis anos.
É a própria Ivete quem vem abrir. O Evo não se encontra em casa. Partiu numa das muitas digressões que efectua ao estrangeiro em prol do movimento. ‘Nos princípios de Setembro estará de regresso’. E a princípio fico na dúvida se esta Ivete Fernandes que se me apresenta ao abrir a porta será mulher ou filha do Evo Fernandes. É quase uma moça ainda, mestiça, franzina, frágil mesmo, e graciosa, de longos cabelos lisos, e que mais parece uma mulata saída de uma qualquer telenovela do Rio. Uns olhos castanhos, amendoados e vivos, brilham no topo daquele rosto esguio. ‘Não, o Evo agora não está!’, repete ela ainda com o olhar a interrogar-me e como se eu não tivesse compreendido bem à primeira.
Setembro. O escritório. Fica num amplo quarto andar a meio da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, entre a Praça de Espanha e Sete Rios, em Lisboa. Evo Fernandes, finalmente. Comigo, levo mais três ou quatro jovens, todos à volta dos vinte anos, curiosos em conhecer e talvez apoiar a ‘Resistência’, e regressar depois, se possível, a um ‘Moçambique libertado’. Nunca tinha visto sequer alguma foto ou descrição dele. Quem me abre a porta é um tipo de altura média, bem proporcionado, onde se destaca um sorriso simpático neste rosto bonacheirão perlado por um sinal proeminente no lábio superior. Fernandes, devia ter visto logo pelo nome, é pois de ascendência goesa. Os primeiros minutos permitem logo saber que estou perante alguém culto e bem preparado como aliás viria a confirmar. Afável, brincalhão, que até ostenta um certo estilo de ‘playboy’ refinado. E em resumo, o Evo torna-se por algum tempo o verdadeiro ‘public relations’ do movimento.