Para colocar o legado de Chávez no seu lugar é necessário combater algumas teses que não se sustentam. A primeira é propalada por alguns grandes meios de comunicação que teimam em chamá-lo de ditador
Chávez foi um homem de muita coragem. Raríssimo nos nossos dias. Ganhou as eleições com um partido nanico e obteve a maior votação da história do país. Amparou-se na esquerda institucional e enfrentou diversos interesses na Venezuela e no mundo. Sempre de peito aberto, encarou quem quer que fosse. Até o temido George W. Bush, em meio a Assembleia da ONU, foi chamado de evil por Chávez. Criticou também Obama por continuar a política externa de seu antecessor. Encarou o rei da Espanha, cuja família real apoiou o fascismo de Franco. Ao criticar o neoliberalismo, as guerras, o colonialismo, criou tantos inimigos poderosos e os enfrentou cara a cara que morreu prematuramente, aos 58 anos. Chávez foi um homem digno, honesto e colocou a pequena Venezuela no centro do cenário internacional, ditando normas e criando modelos. Indubitavelmente entrará para a história.
Para colocar o legado de Chávez no seu lugar é necessário combater algumas teses que não se sustentam. A primeira é propalada por alguns grandes meios de comunicação que teimam em chamá-lo de ditador para baixo e induzir a entendermos que existe uma grande massa de venezuelanos contra o seu governo. Trata-se de conjecturas insustentáveis do ponto de vista factual. O governo Chávez foi o que mais respeitou a Constituição do país e a ampla maioria da população esteve ao seu lado.
A segunda tese é defendida pelos chavistas quando afirmam estar em curso na Venezuela uma revolução que seria responsável por estabelecer o “socialismo do século XXI”. Com efeito, de antemão afirmamos que o governo de Chávez não acabou com o capitalismo, nem proporcionou o autogoverno popular. Destarte, não tocou nos principais aspectos da exploração e do absurdo de ser governado por outrem. Assim, já podemos descartar as alusões ao socialismo ou ao poder popular ditas por seus defensores. A Venezuela continua capitalista e com uns governando outros.
Seu grande feito, portanto, baseou-se na sua luta bastante exitosa contra o neoliberalismo. Mas dada a existência maciça de governos neoliberais no mundo, bem como do recuo das perspectivas socialistas, sua luta apresenta-se similar a uma luta revolucionária.
Feitas essas importantes ressalvas, analisemos o governo de Chávez como fazem os analistas de plantão, bem pagos pela mídia, amarrados pela camisa de força da institucionalidade capitalista. Todavia adiantamos que nossas conclusões serão absolutamente diferentes daquelas.
Entendamos, primeiro, a vida pessoal de Chávez. Quando assume a presidência, ele é tenente-coronel paraquedista do exército. É importante decodificar o significado disso no mundo militar. Paraquedista constitui a tropa de elite de qualquer exército e, portanto, o maior status possível com indumentárias distintas etc. Para chegar a tal ostentação é necessário fazer um curso de sobrevivência que poucos conseguem terminar. Por consequência, essas informações devem nos ajudar a decifrar a proeminência que Chávez sustentou junto às forças armadas da Venezuela, possibilitando-nos compreender como um presidente que realizou tantas transformações manteve-se no poder por tanto tempo, sobrevivendo, inclusive, a um golpe militar.
Além disso, Chávez fez mestrado em ciência política e, portanto, não podemos tratá-lo como um ignorante de modelos de organização societal. Outrossim, sempre foi pessoa de ação, quando era ainda apenas um oficial de baixa patente na década de 1980, montou um grupo político clandestino, dentro do exército, com vistas à transformação do país.
Para entendermos o fenômeno Chávez é mais do que necessário recorrermos à história da Venezuela. Em linhas gerais, o país viveu sob ditaduras por décadas. Entre 1889 e 1958, somente por três anos (de 1945 a 1948) teve um governo de centro-esquerda, do partido da Ação Democrática (AD), que chegou ao poder por meio de um golpe e saiu por outro. Durante todo o restante do tempo, viveu sob governos militares nada generosos com os trabalhadores.
A partir de 1958, a política foi pautada pelo Pacto de Punto Fijo, caracterizada pela alternância no poder dos dois principais partidos do país, AD e COPEI (Democrata Cristão, de direita). Esses governavam em comum acordo; quando um ganhava, chamava os principais líderes do outro grupo para ocupar pastas no Estado. Os partidos mais críticos do sistema não tinham quaisquer chances de participar do pleito e ganhar. Esse processo funcionou sem grades problemas até 1989, quando assume Carlos Andrés Pérez.
Logo no primeiro mês em que assumiu a presidência da República, Pérez aplicou políticas neoliberais de “austeridade”. Privatizações, corte de gastos públicos, aumento do preço da gasolina, das passagens de ônibus, dos alimentos etc. Tudo isso somado ao arrocho salarial foram as principais políticas do governo. Resultado: milhares de pessoas vão às ruas e iniciam um quebra-quebra, seguido de saques e passeatas. Essas manifestações ficaram conhecidas como o Caracazo. Desde então, a população venezuelana não saiu mais das ruas. O governo Chávez se autoproclama como resultado desse movimento.
Em 1992, Chávez, então tenente-coronel do exército, tenta um golpe militar contra o governo de Andrés Pérez, marcado pelo neoliberalismo e pela corrupção. Chávez é capturado e negocia sua rendição com alguns minutos na televisão. Ao falar contra o governo e o neoliberalismo ganhou adeptos importantes no meio popular. Estava aberto o caminho para sua trajetória política.
Em 1998, concorre nas eleições e ganha com o maior percentual de votos da história da Venezuela. Lá o voto não é obrigatório. Com efeito, logo após a assunção do Poder Executivo por Chávez, alguns movimentos populares fizeram ocupações de prédios abandonados no centro de Caracas. Era o grande teste com o governo. Chávez atendeu as reivindicações e desapropriou os prédios para os manifestantes. Indubitavelmente, foi um governo diferente de todos os demais da Venezuela.
Entretanto, o que distinguiu o governo Chávez? É preciso saber interpretar o contexto para responder a essa questão. Chávez assume o governo em 1999, auge do neoliberalismo. Naquele momento, as chamadas liberalizações estavam sendo colocadas em prática em todo o mundo e estão até hoje. Seu governo é o primeiro a romper com o consenso de Washington em toda a América Latina, quando outros afirmavam que era impossível lutar contra as forças do mercado. Assim, por não seguir as determinações dos grandes capitalistas no mundo e no seu país, sofreu o golpe de Estado de 2002.[1]
Podemos dizer que o supracitado governo foi o mais popular da Venezuela e aquele que mais investiu no social, isto é, em políticas públicas em favor dos pobres. Foi ao mesmo tempo, dentro da institucionalidade burguesa, aquele que mais deixou livre as ideias na Venezuela, portanto, foi o mais democrático e pluralista. Foi no seu governo que várias medidas de democracia direta foram impostas como referendos e plebiscitos.
Os grandes conglomerados de mídia mundial faltam com a verdade quando afirmam que não existe liberdade de imprensa no país. São vários os canais de televisão e jornais de oposição que criticam o governo dia e noite. Existe apenas um canal estatal que defende o governo, também dia e noite. Há, desta forma, uma grande guerra midiática no país, que por incrível que pareça é importante para a população ter acesso ao contraditório.
Voltemos a Chávez.
Foi sob seu governo que o analfabetismo foi extinto do país. Distribuição de terras, de casas, alimentos subsidiados com preços abaixo do mercado, incentivo para criação de cooperativas de meios de comunicação alternativos foram algumas das medidas populares do governo. Também renacionalizou e reestatizou empresas antes privatizadas sob o jugo das ideias neoclássicas. Implantou o médico de família em convênio com Cuba, de modo que nos bairros existisse um ou mais postos de saúde para atender a população. Criou uma universidade e investiu pesado em educação. Além de promulgar novos direitos trabalhistas, algo exatamente na contracorrente da tendência mundial.
A despeito das previsões dos teóricos neoliberais, as políticas socialdemocratas de Chávez reduziram o desemprego no país a menos da metade e fizeram que o crescimento do PIB fosse um dos mais altos do mundo. É claro que o aumento do preço do petróleo ajudou e muito.
Só a título de exemplo, um parêntese, quando Getúlio Vargas liderou no Brasil um novo modelo de desenvolvimento estava simplesmente seguindo a tendência mundial. Chávez resgatou o modelo de capitalismo de Estado, seguindo na contra-mão da tendência mundial, caracterizando toda sua coragem e inovação.
No plano externo, foi o principal responsável pela reorganização da Opep. Enfrentou discursivamente os EUA e seus governos autoritários. Também fez escola na América Latina, proporcionando o fortalecimento de Evo Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, e de Cristina Kirchner, na Argentina, que não seguem à risca o modelo neoliberal. Combateu com veemência a possibilidade da Alca e propôs a Alba. Ajudou a colocar na pauta do dia a ideia do socialismo e da revolução, ainda que como termos ressignificados. Enfim, Chávez liderou a resistência ao imperialismo na América Latina.
Simultaneamente, os movimentos mais moderados, ampla maioria, formaram a base social do chavismo, portanto, estiveram lado a lado com o Executivo. Seu governo foi estritamente institucional e legalista. Tudo que foi realizado esteve de acordo com as leis do país para o bem e para o mal. O movimento chavista também foi responsável por reacender as esperanças institucionais dos movimentos sociais que estavam, como em praticamente todo o mundo, muito descrentes.
Durante a década de 1960, estas opções políticas eram lidas como socialdemocratas. Hoje podemos lê-las da mesma maneira na Venezuela? Pensamos que sim. Se entendemos que as políticas socialdemocratas na Europa foram postas em prática a partir das reivindicações do movimento operário; na Venezuela, é o amplo movimento popular organizado o combustível do chavismo. O próprio Chávez é resultado desse movimento popular e não o contrário.
Não obstante as políticas sociais em prol dos mais necessitados e o combate eficaz ao neoliberalismo, algumas ações governamentais foram em contrário a interesses de determinados grupos políticos mais radicalizados. Com efeito, as propostas mais radicais no seio dos movimentos sociais foram rechaçadas e reprimidas pelo governo. No plano interno, várias ocupações de fábricas e de prédios foram vistas com maus olhos e tratadas como caso de polícia. Um dos fatos de cunho internacional que evidenciam essa premissa foi a entrega de um dos líderes das Farc-EP ao governo de ultradireita da Colômbia.
Por fim, e o mais importante, embora a maioria da população estivesse apoiando a revolução e o socialismo, seu governo não estabeleceu como meta acabar com o capitalismo. A exploração continuou, apesar de todo esforço discursivo do presidente. As poucas cooperativas estão sob o jugo do mercado e não colaboram para a autogestão socialista. O povo não conseguiu o gostinho do autogoverno. O discurso socialista e revolucionário de Chávez contrastou frontalmente com a ação da burocracia estatal e esteve muito mais para sociedade do espetáculo (nos termos de Debord) do que para prática real.
Sem embargo, o capitalismo não foi superado, mas as condições para a superação estão dadas. Os termos de socialismo e revolução estão na pauta do dia. O povo tem plena consciência de que seus interesses são absolutamente distintos dos das elites. Agora estão no grande paradoxo: ou se avança a revolução com os movimentos populares tomando as rédeas do processo, criando as comunas e fazendo as expropriações; ou corre-se sério risco de se estagnar naquilo que já foi ganho e começar a perder aos poucos os direitos com a reorganização da direita, no obstáculo do burocratismo e nas lutas internas e cisões criadas no próprio movimento na luta incessante por cargos no Estado. A grande pessoa agregadora não existe mais. Ninguém tem o mesmo carisma de Chávez para manter unida a diversidade do movimento.
No curto prazo, nada de novo acontecerá em função da comoção nacional em torno da morte de Chávez. Não existe a menor possibilidade de o candidato escolhido pelo ex-presidente sair derrotado nas próximas eleições. Então, trabalhemos com a vitória de Nicolás Maduro. Durante esse tempo, as elites econômicas trabalharão incessantemente para desestabilizar o governo recém eleito, a economia... o país, criando o clima da derrota inevitável do candidato do chavismo. Inclusive, um novo golpe militar não pode ser descartado. As greves patronais, as manifestações dos estudantes da elite, a sabotagem na economia, o “sumiço” de produtos etc. tudo que foi realizado contra Chávez será reeditado. O que sustentou Chávez no poder foi a aliança cívico-militar. Maduro é civil e dificilmente terá o respeito dos militares como ocorreu com o coronel paraquedista. A tendência, portanto, é a derrota do chavismo no médio prazo.
Assim, a única maneira de se impedir a derrota é avançar na revolução rapidamente. O poder tem que ser transferido ao povo e isso deve melhorar qualitativamente a vida de cada um. Do contrário, será difícil para o chavismo manter o poder. A previsão é de instabilidade constante, tal como foi durante todo o período da Era Chávez, mas sem a figura estrategista e carismática principal.
A morte de Chávez deixou os movimentos sociais diante de um grande dilema: unidade no socialismo autogestionário, com criação de comunas federadas para acabar com o Estado, sua corrupção, seus burocratas; ou perda do que foi conquistado durante o chavismo e resistência individual diante da repressão que virá para desarticular e desarmar o movimento social.
Enfim, Chávez tinha todas as características para levar os venezuelanos ao socialismo, pois era destemido, perseverante e valente. O povo mais pobre da Venezuela apresenta-se como claramente socialista. Então, por que não avançou? Podemos observar, a partir destes fatos, que por meio da institucionalidade burguesa não há condições de alterações substantivas que proporcionem ao trabalhador e ao seu coletivo a posse dos produtos do seu trabalho, o fim da propriedade privada dos meios de produção e a ausência de um governo que determine o que os outros devem fazer. Em resumo, a institucionalidade burguesa constitui-se em uma camisa de força que prendeu os trabalhadores ao capitalismo, obliterando a plena liberdade e o autogoverno.
Por conseguinte, sua morte deixou alguns ensinamentos. 1) a burocracia estatal emperra o avanço da revolução.[2] A corrupção inerente a todo Estado continua em pleno vigor. 2) um movimento revolucionário não pode ficar à mercê apenas de uma pessoa. Quando ela morre, o movimento fica órfão e praticamente sem rumo. É o estado da Venezuela atualmente.
Nessas condições, o máximo que se pode conseguir é a criação de direitos, ampliação da participação popular por meio de voto, uma melhor circulação de ideias e a reversão de uma das faces do capitalismo, o neoliberalismo. Indubitavelmente, esses fatores em seu conjunto apresentam-se como extraordinários para os nossos tempos de recuo das ideias socialistas. Todavia, a análise sobre o governo Chávez demonstra que não é possível a conquista da emancipação pelo meio institucional. Podemos até entender, no máximo, que foram dados os primeiros passos, mas inegavelmente foram insuficientes. Os passos para a emancipação – isto é, a liberdade, a igualdade, o autogoverno e a apropriação coletiva daquilo que for produzido na sociedade – só serão possíveis pela ação dos próprios trabalhadores.
Conclui-se que a partir de uma perspectiva socialdemocrata, ou de capitalismo de Estado (nos termos de Chomsky), o governo Chávez é um excelente exemplo. Realizou distribuição de renda e de terras, criou direitos sociais, institucionalizou a participação popular, interveio fortemente na economia, através de estatais, da regulação de preços etc. Pari passu, manteve os principais princípios do capitalismo, como a propriedade privada dos meios de produção, a divisão social do trabalho, e uns governando outros (nos termos de Mészáros). Destarte, ainda está muito longe para poder ser chamado de socialista, mesmo que o termo seja ressignificado, ele não pode conter os princípios basilares do capitalismo, o regime opositor. Chávez lutou, mas não conseguiu. Indubitavelmente, o socialismo será obra dos próprios trabalhadores.
Wallace dos Santos de Moraes
Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Ciência Política (Iuperj). É autor de Brasil e Venezuela – histórico das relações trabalhistas de 1889 até Lula e Chávez (Rio de Janeiro: Achiamé, 2011). Áreas de interesse: Relações trabalhistas, América Latina, Venezuela, Variedades de capitalismo.
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