Arranjar problemas
Ontem participei num evento organizado pelo Núcleo de Estudantes de Sociologia da UEM. Foi para falar da sociologia como profissão. Disse-lhes que para mim a sociologia não era uma profissão, mas sim uma vocação, portanto, uma maneira de estar na vida. Acrescentei que éramos chamados a contribuir para a melhoria da qualidade do debate na esfera pública. Fazíamos isso através da preocupação em saber o que estaria por detrás do que vemos. Dito doutro modo, a nossa missão era de procurar problemas onde outros procuram soluções.
Se tivesse tido mais tempo para falar, teria usado as instruções emitidas pelo Comandante Geral da Polícia há poucos dias sobre a redução do número de postos de controle nas estradas. Pelo que percebi da leitura do comunicado, trata-se duma medida que visa disciplinar os agentes da polícia de trânsito. Com efeito, o número de postos de controle é bem elevado e todos nós, incluindo o seu chefe, sabe que eles existem para a extorsão das pessoas. A área do trânsito, tal como várias outras, é uma área que podia beneficiar da assessoria da sociologia com a sua preocupação em arranjar problemas.
No caso da medida anunciada a questão que se coloca é a seguinte: para que problema ela é uma solução? Ao que tudo indica, o Comandante parece ter identificado o problema como sendo a proliferação de postos de controle. Dito doutro modo, ele parece estar a dizer que a frequência com que se controla o trânsito tem que ser diminuída para que o trânsito seja melhor regulado, ou para que flua melhor, cause menos acidentes, etc. Não é um “bom” problema e veremos isso dentro em breve quando se formarem bichas nesses poucos postos de controle e os automobilistas perderem horas lá. Porquê? Porque há uma razão para esse controlo e essa razão é que deve estar no centro daquilo que é definido como sendo o problema.
Essa razão é complexa. Ela mistura, por um lado, uma atitude que podemos descrever como sendo o abuso de autoridade da parte do agente policial e, por outro lado, a ilusão de que quem vela por alguma coisa passa, necessariamente, a ser a principal razão da existência dessa coisa. O abuso de autoridade consiste na facilidade com que um agente policial pode violar os direitos do cidadão em benefício próprio. Ele usa o seu uniforme para extorquir o cidadão. A ilusão de protagonismo, por sua vez, acontece quando o agente de trânsito se faz à rua não para garantir a circulação rodoviária, mas sim para se fazer sentir.
Esta combinação produz uma situação em que se perde completamente de vista porque existe a polícia de trânsito e qual seria a sua função se ela tivesse noção da razão da sua existência. Ora, ela não existe para punir os infractores (por acaso, este é também o raciocínio do Comandante na sua relação com o seu pessoal; a sua função é “disciplina-los”). A polícia de trânsito existe para garantir que o trânsito flua, de preferência, com poucos acidentes, em boas condições e sem prejuízo do que as pessoas querem alcançar no seu dia a dia. Assim sendo, a proliferação de postos de controle não é o problema. Ela é apenas um dos sintomas do problema. É porque há um problema de base que existe essa proliferação.
A sociologia que eu pratico definiria, portanto, o problema nestes termos: a vulnerabilidade do cidadão perante o agente policial. Isso implicaria estudar como tornar o cidadão menos vulnerável. Portanto, não é a redução de postos de controle que vai resolver o problema que leva à proliferação – notem até a circularidade do raciocínio – mas sim o reforço do cidadão. Como se pode fazer isso? Uma maneira que eu iria explorar – e sobre a qual já escrevi algumas coisas nestas redes – seria a de re-organizar o trabalho de controlo de trânsito duma maneira que não viole o princípio de presunção de inocência. Cada vez que um agente do trânsito nos manda parar e exige documentos, ele quer que provemos que somos inocentes. É essa uma das coisas que nos torna vulneráveis.
Não estou convencido de que mais controlo seja sinônimo de melhor trânsito. Se o Comandante da Polícia instruísse o seu pessoal a apenas controlar o trânsito em situações de flagrante delito ou de suspeita justificada, ele retiraria o incentivo para a proliferação de postos de controle. E não só. Corrigiria a situação do estado em que estamos agora que consiste em pensar que o agente existe para justificar a existência do trânsito para um estado em que é porque o trânsito existe que precisamos do agente.
Nada disto impediria que houvesse intervenções pontuais em zonas, por exemplo, propensas a acidentes ou em zonas de trânsito difícil. Nada pode correr bem onde o elo mais fraco é quem cuja existência justifica a existência do agente. Isto vale também para o governo dum modo geral. Enquanto os governantes pensarem que é por eles existirem que nós podemos existir, vamos continuar atolados como estamos.
Uma das perguntas mais poderosas que a sociologia coloca é esta: para que problema é que isto é uma solução? As instruções do Comandante da Polícia são uma solução para um problema irrelevante. Devia ter consultado sociólogos que gostam de arranjar problemas...
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