Hoje é um daqueles dias de melancolia. É verão, mas faz mau tempo, o céu tem a cor do chumbo, o vento sopra forte e a cidade está calma porque é mês de férias e também porque se aproxima a festa nacional. Mas não é apenas isso. A participação de “líderes” africanos na cimeira de Putin mexe comigo duma maneira que começa a me deixar preocupado com a minha própria sanidade mental.
Lembrei-me dum texto de Thomas Mann, um grande escritor alemão do século passado, com o título “O meu irmão Hitler”. É um texto forte sobre a responsabilidade que ele sentia por ser alemão recusando-se a ver Hitler como parte duma Alemanha má. Para ele a Alemanha é má e boa como todos os países. Por essa razão, ele não via como celebrar Goethe e Kant, dum lado, e dizer que Hitler não era parte da Alemanha, doutro lado.
Acho que é o mesmo que sinto. Os “líderes” africanos assinaram um documento final com Putin que diz, entre várias coisas, duas que apenas me dilaceram o coração. No preambulo, o documento reafirma “...a necessidade de se oporem [a Rússia e a África] conjuntamente ao neocolonialismo, à imposição de condições e à duplicidade de critérios, não permitindo que estas práticas privem os Estados e os povos do direito de escolherem soberanamente as suas vias de desenvolvimento” e mostra-se comprometido “... com os princípios e objectivos fundamentais da Carta das Nações Unidas, subscrevendo a salvaguarda e a defesa do direito internacional e sublinhando a necessidade da sua adesão por todos os Estados”.
A agressão contra a Ucrânia priva os ucranianos do direito de escolherem soberanamente as suas vias de desenvolvimento e não só: viola o direito internacional. Portanto, é um documento até certo ponto hipócrita. Assinado pelos nossos “líderes”. Mas não é apenas isto que me cria problemas. É o ponto 27 que cito: “... e resistir ao descrédito de certos Estados por razões políticas, à introdução de medidas restritivas políticas ou económicas a pretexto da defesa dos direitos humanos, opor-se às tentativas de certos Estados de utilizar acusações infundadas de violações dos direitos humanos como pretexto para interferir nos assuntos internos e perturbar as actividades das organizações internacionais. Contribuir para a natureza não politizada, equitativa e mutuamente respeitosa da defesa dos direitos humanos e da promoção e proteção dos direitos humanos.”
Percebo o argumento. Houve muitas intervenções militares do Ocidente “a pretexto da defesa dos direitos humanos”. Só que para mim como africano o problema nunca pode ser a imposição de fora, mas sim aquilo que eu faço para garantir esses direitos, pois eles são importantes independentemente de quem o diga. Quando vejo vídeos de agentes policiais em Moçambique que maltratam (e, por vezes, até à morte como aconteceu recentemente) outros moçambicanos, quando vejo as forças de defesa e segurança a serem usadas para reprimir o direito à manifestação, muitas vezes de forma violenta e desmedida, não consigo olhar para os direitos humanos como uma imposição de fora.
Nos últimos meses, viajei por alguns países africanos, incluindo Moçambique. Vi pobreza extrema no meio de riqueza extrema. A linha que dividia essa pobreza não era “ocidental” versus “africano”. Vi muitos pobres africanos e alguns ricos africanos. E, curiosamente, os poucos ricos africanos são aqueles que estão próximos do poder. Numa manhã de muito frio vi, do lado quente do hotel onde estava hospedado, crianças sem sapatos e sem camisola com os dentes a chocalharem lá fora no desespero dum cliente a quem pudessem limpar os sapatos em troca de algumas moedas. Doeu-me aquilo. Não foi o sofrimento daquelas crianças que me fez mal. Foi não saber o que fazer. Nâo consiguiria deixar nenhuma daquelas crianças limpar os meus sapatos, mas ao mesmo tempo não saberia lidar com o facto de que não dar esse trabalho à criança podia também significar a diferença entre ela e a sua família dormirem com fome, ou não.
E aí vem de novo a questão da responsabilidade. É preciso muito cinismo da parte de quem nos governa para colocar a sua assinatura num documento que relativiza – e trivializa – a essência da nossa luta pela independência. Sim, foi pelos direitos humanos que se lutou. Toda a maldade do colonialismo – e não da Europa ou do “Ocidente – reside na negação da nossa dignidade como humanos. Lutar contra o colonialismo tem que ser, por conseguinte, a afirmação – e reafirmação constante – do nosso compromisso com os direitos humanos. Mesmo numa concepção marxista das coisas, não há como nos furtarmos a isso. Justamente porque conhecemos o outro lado – o lado da privação de direitos – passa a ser nossa responsabilidade fazer dos direitos humanos nossa bandeira.
Passei uma boa parte da noite de ontem e madrugada de hoje a ouvir várias versões duma música popular americana – da autoria de Pete Seegar – com o título “Where have all the flowers gone?”. Gosto mais da versão de Marlene Dietrich, uma actriz alemã que popularizou a canção. Partilho-a aqui em inglês, embora a versão em alemão seja mais forte (não sei porquê). A canção passou a ter um cunho pacifista, mas para mim é mais do que isso. Resume-se à pergunta central que ela coloca, nomeadamente “será que algum dia vão aprender?”.
E é esta a pergunta que me coloco sempre que entro nestas discussões sobre Putin. Não é o Putin que me incomoda. É o que significa a facilidade com que aceitamos narrativas que apenas nos opõem ao “Ocidente” como se ele se reduzisse apenas ao colonialismo, mas sem nunca realmente olharmos para o nosso papel, para aquilo que fazemos para que a sorte dos outros seja melhor. É como parecemos usar o papel de vítimas para nos absolvermos das nossas próprias responsabilidades, das atrocidades que nós próprios cometemos, algumas das quais não deixam os seus créditos em mãos alheias comparadas com as do colonialismo. E enquanto procuro pela resposta, vejo os olhos tristes e quase desesperados daqueles meninos que enfrentam o frio de 7 graus sem camisola, nem sapato, mas com a sua caixa ajeitada de graxinha a me suplicarem para partilhar os ganhos da independência com elas e suas famílias.
Nesses momentos, não consigo pensar na maldade do Ocidente, nem na nossa falta de compaixão pelos ucranianos que veem o seu país destruído por alguém que respeita a carta das nações unidas e o direito de cada país de escolher soberanamente o seu caminho. Ucranianos cujo defeito, aos nossos olhos, é serem apoiados pelo lado errado, diga-se de passagem.
Só consigo pensar na minha responsabilidade. E a pergunta que me coloco, frustrado, é: “Será que algum dia vamos aprender?”.
Paula Martins
É por isso que quando o meu Amigo e meu Professor diz que quer voltar a Moçambique porque é a sua terra eu desespero sozinha por si. Não é que não seja uma terra linda, com um clima fantástico e com gentes Pacíficas e hospitaleiras, não é por isso. É porque quem se habituou a ter direitos e deveres como cidadão aqui vai sofrer muito e se aí a sua sanidade mental o preocupa aqui seria muito e muito mais assolada. Há muito algo que me escapa mas o ponto a que esta sociedade chegou é algo preocupante. Habituamo-nos ao pior e resignamo-nos com isso. Felizes mesmo é sem pensar. Inteligente como é não iria ser bom para si, não agora.
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Mussá Mohamad Ibrahimo
Eu quando era criança achava que os líderes, presidentes e agentes da polícia, eram pessoas especiais e dotadas de capacidades diferenciadas dos demais. Depois crescí e percebí que qualquer desses amigos do Facebook que mal conseguem discutir um post com honestidade intelectual, pode se tornar governador ou presidente da república. Daí a andar por aí aos beijinhos com Putin ou outro tipo de pinos, é só uma questão do cargo fazer com que qualquer bobo seja importante e relevante.
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