Em uma fábrica de processamento de carne de porco em Dakota do Sul, o surto do coronavírus se espalhou na velocidade de um incêndio florestal, levantando dúvidas sobre o que a empresa fez para proteger os trabalhadores.
Mas como um foco de covid-19, em um dos Estados menos densamente povoados dos EUA, se tornou o maior da primeira economia do mundo?Na tarde de 25 de março, Julia abriu seu laptop e acessou um perfil falso no Facebook.
Ela criou essa conta quando ainda estava na escola, com o objetivo de seguir secretamente os passos dos garotos por quem estava apaixonada.
Mas desta vez, depois de muitos anos, ela estava entrando na conta novamente para cumprir um propósito muito mais sério.
"Eles têm um caso positivo (de covid-19) e planejam permanecer abertos".
Por "Smithfield", ela quis dizer a fábrica de processamento de carne de porco Smithfield, localizada na cidade de Sioux Falls, no Estado de Dakota do Sul. Ela pertence ao grupo Smithfield Foods, com sede em Smithfield, na Virgínia, tido como o maior produtor de carne de porco do mundo. Em 2013, a empresa foi comprada pelo grupo chinês WH Group, no que foi considerada - e ainda é - a maior aquisição de uma empresa americana por um grupo chinês.
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Um dos maiores empregadores da cidade
Ao operar com capacidade total, a estrutura é capaz de processar até 19,5 mil porcos recém-abatidos por dia, cortando, moendo e transformando-os em milhões de quilos de bacon, salsichas de cachorro-quente e presuntos fatiados.Com 3,7 mil trabalhadores, é também a quarta maiora empregadora da cidade, de 182 mil habitantes.
"Obrigado pela denúncia", respondeu a conta Argus911, "qual era o emprego do funcionário que teve diagnóstico positivo?"
"Não temos muita certeza", respondeu Julia.
"Tudo bem, obrigado", disse Argus911. "Entraremos em contato".
Às 7h35 da manhã seguinte, o Argus Leader publicou um artigo em seu site intitulado "Um funcionário da Smithfield Foods testa positivo para o coronavírus".
O repórter confirmou com um porta-voz da empresa que um funcionário havia contraído o vírus e estava cumprindo uma quarentena de 14 dias em casa.
Sua área de trabalho e outros espaços comuns foram "completamente desinfetados".
Mas a fábrica, considerada pelo governo Trump como parte da "indústria crítica" americana, continuaria totalmente operacional.
"A comida é uma parte essencial de nossas vidas, e nossos mais de 40 mil trabalhadores americanos, bem como milhares de pequenos agricultores e nossos muitos outros parceiros da cadeia de suprimentos são uma parte crucial da resposta de nossa nação a covid-19", disse Kenneth Sullivan, diretor da Smithfield, em um vídeo postado em 19 de março justificando a decisão de manter a fábrica aberta.
"Estamos tomando as precauções máximas para garantir a saúde e o bem-estar de nossos funcionários e consumidores", acrescentou.
No entanto, Julia ficou alarmada.
'Meus pais não sabem inglês. Eles não podem se defender'
"Há rumores de que houve casos antes mesmo disso", disse ela. "Ouvi falar de pessoas da Smithfield, especificamente, que foram hospitalizadas. Mas isso só é sabido pelo boca a boca."Julia não trabalha na fábrica. Ela é uma estudante na casa dos 20 anos, isolada em casa depois que sua universidade foi fechada devido à pandemia de covid-19.
Foram seus pais, funcionários da Smithfield, que lhe disseram o que estava acontecendo na fábrica naquele dia.
Julia faz parte do grupo chamado "Filhos de Smithfield", descendentes de imigrantes de primeira geração e cujos pais são funcionários da fábrica, que denunciaram o surto.
"Meus pais não sabem inglês. Eles não podem se defender", disse Julia. "Alguém tem que falar por eles."
Sua família, como muitas em Sioux Falls, fez todo o possível para evitar o contágio. Os pais de Julia usaram todas as suas férias restantes para ficar em casa.
Depois do trabalho, deixavam os sapatos do lado de fora e tomavam banho imediatamente. Julia comprou bandanas de tecido para eles, para que eles cobrissem a boca e o nariz enquanto trabalhavam.
Para Julia, alertar a mídia era apenas um passo lógico na tentativa de mantê-los em boa saúde, criando pressão pública para fechar a fábrica e fazer com que seus pais ficassem em casa.
O primeiro foco nos Estados Unidos
Mas isso foi apenas o começo de quase três semanas de ansiedade, durante as quais seus pais continuaram a frequentar uma fábrica que sabiam que poderia estar contaminada pois não podiam perder seus empregos.Não havia distanciamento social. Eles trabalhavam a menos de 30 centímetros de distância um do outro e de seus colegas. Entravam e saíam de vestiários lotados, corredores e cafés.
Durante esse período, o número de casos confirmados entre funcionários da Smithfield aumentou lentamente, de 80 para 190 e depois para 238.
Em 15 de abril, quando a Smithfield finalmente fechou sob pressão do governo de Dakota do Sul, a fábrica havia se tornado o foco número um nos Estados Unidos, com 644 casos confirmados entre funcionários e pessoas infectadas por eles.
Descobriu-se depois que as infecções oriundas da Smithfield foram responsáveis por 55% dos casos confirmados no Estado, que ultrapassou em muito os vizinhos mais populosos, se consideramos os números per capita.
De acordo com o jornal The New York Times, o número de casos originários da Smithfield Foods até excedeu os relatados no USS Theodore Roosevelt, o porta-aviões que teve mais de 600 membros da tripulação infectados, e na cadeia do condado de Cook, em Chicago, onde houve mais de 300 casos.
Esses números foram divulgados um dia após a morte do primeiro funcionário da Smithfield, em um hospital local.
"Ele pegou o vírus ali. Antes, era muito saudável", disse sua mulher Angelita à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol.
"Meu marido não será o único a morrer", acrescentou.
Microcosmo de disparidades
A fábrica de processamento de carne de porco Smithfield, localizada em um Estado liderado por um republicano e um dos cinco que não implementou nenhuma medida obrigatória de quarentena, tornou-se um microcosmo que ilustra as disparidades socioeconômicas que a pandemia global descortinou.Enquanto muitos profissionais em todo o país estão trabalhando de casa, os funcionários da indústria de alimentos, como os da Smithfield, são considerados "essenciais" e devem permanecer na linha de frente.
"Empregos de trabalhadores essenciais têm salários abaixo da média nos Estados Unidos, em alguns casos com margens significativas. É o caso, por exemplo, de assistentes de saúde e caixas de supermercados, duas posições absolutamente essenciais na linha de frente, que requerem presença física dos trabalhadores", explica Adie Tomer, do Brookings Institute, um think tank americano.
Tomer destaca que nesses setores a maior parte dos trabalhadores é majoritariamente afro-americana ou hispânica.
A força de trabalho da Smithfield é composta principalmente por imigrantes e refugiados de países como Mianmar, Etiópia, Nepal, Congo e El Salvador.
Existem 80 idiomas diferentes falados no chão da fábrica. As estimativas do salário variam, em média, de US$ 14 a US$ 16 por hora.
E o turno é longo: trata-se de um trabalho exaustivo, que exige que o funcionário permaneça em uma linha de produção geralmente a menos de 30 centímetros dos seus colegas.
A BBC conversou com seis funcionários da Smithfield, antigos e atuais, que disseram que, apesar de terem medo de continuar trabalhando, não conseguiram escolher entre proteger seus empregos ou sua saúde.
"Tenho muitas contas para pagar. Meu bebê está chegando, tenho que trabalhar", disse um funcionário de 25 anos cuja esposa está grávida de oito meses.
"Se (o teste) for positivo, fico preocupado por não poder ajudar minha esposa."
O caso da Smithfield não é o único
Fábricas de processamento de alimentos em todo o país estão enfrentando surtos de coronavírus com potencial para interromper a cadeia de suprimentos.Uma fábrica de carne da brasileira JBS SA no Colorado foi fechada após cinco mortes e 103 infecções entre seus funcionários.
Dois trabalhadores de uma fábrica da Tyson Foods, em Iowa, no noroeste do país, também morreram, enquanto outros 148 ficaram doentes.
O fechamento de uma grande instalação de processamento de carne, como a de Sioux Falls, causa um distúrbio maciço e deixa um grande número de criadores sem lugar para vender seus animais.
Cerca de 550 fazendas independentes enviam seus porcos para o abate na fábrica de Sioux Falls.
Ao anunciar a paralisação, o diretor de Smithfield alertou para "repercussões graves, talvez desastrosas", no fornecimento de carne.
Mas, de acordo com funcionários da fábrica, seus representantes sindicais e advogados da comunidade de imigrantes em Sioux Falls, o surto que levou ao fechamento da fábrica teria sido evitável.
Eles alegam que os pedidos iniciais de equipamentos de proteção individual foram ignorados, que os trabalhadores doentes foram incentivados a continuar trabalhando e que as informações sobre a propagação do vírus foram abafadas, mesmo quando corriam o risco de expor suas famílias e pessoas em geral.
"Se o governo federal deseja que a empresa permaneça aberta, então de quem é a responsabilidade de garantir que essas empresas estejam fazendo o que precisam para mantê-las em segurança?" questiona Nancy Reynoza, fundadora do Qué Pasa Sioux Falls, uma fonte de notícias em espanhol que recebeu denúncias de trabalhadores angustiados com a situação na Smithfield.
Oprimidos pelo medo
A BBC fez uma série de perguntas à Smithfield com base nas acusações dos trabalhadores, mas a empresa disse, em nota, que não comentaria casos individuais."Primeiro, a saúde e a segurança de nossos funcionários e da comunidade são nossa principal prioridade todos os dias", afirmou o comunicado.
"Estabelecemos em fevereiro uma série de processos e protocolos rigorosos e detalhados (...) seguindo as orientações dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, órgão do governo americano) para lidar com qualquer caso potencial de covid-19 em nossas operações."
'Meus pais são tudo o que tenho'
O surto deixou pessoas como Julia, cuja mãe tem condições crônicas de saúde, sobrecarregadas pelo medo de que seus pais arriscassem suas vidas tentando manter seus empregos."Meus pais são tudo o que tenho. Tenho que pensar na probabilidade de não tê-los na minha vida", disse ela, com a voz embargada.
"Quero compartilhar o que está acontecendo para mostrar o que a empresa não está fazendo."
Os pais de Julia eram esperados no trabalho na última terça-feira, 14 de abril, o último dia antes do anunciado do fechamento por 14 dias.
Mas no sábado, Helen começou a tossir.
No dia seguinte, quando a neve caía sobre Sioux Falls, Julia insistiu que sua mãe fizesse um teste. Helen tentou adiar, dizendo que não era nada.
"Minha mãe realmente odeia ir ao médico", disse Julia, que finalmente venceu a discussão.
Helen acabou indo a um centro de testes no hospital local.
Realizado o exame, ela foi mandada de volta para casa.
"Se tenho covid-19, claramente peguei na fábrica", disse ela. "Nesta semana, trabalhei em três andares diferentes. Comi em duas cafeterias diferentes. Imagine todos os lugares em que estive e toquei dentro dessa fábrica. Andei por todo o lugar", acrescentou.
Na terça-feira, 14 de fevereiro, quando estavam programados para voltar ao trabalho, os pais de Julia acordaram às 4 da manhã, como normalmente fazem.
Eles chamaram seus chefes para explicar que não podiam ir ao trabalho enquanto esperavam o resultado do teste de Helen.
O telefone tocou à tarde.
Julia conversou com o médico pelo celular de sua mãe, enquanto seus pais observavam seu rosto tentando interpretar suas reações. Quando Julia ouviu as palavras "positivo para o covid-19", deu um sinal de positivo com o polegar.
Inicialmente, o casal interpretou o gesto como se Helen não estivesse com o vírus. Julia tratou de desfazer o malentendido.
Seu pai foi imediatamente para a cozinha, onde Julia o viu tentando conter as lágrimas.
Uma questão politizada
No mesmo dia em que Helen recebeu seus resultados, a polêmica em torno da fábrica ganhou cores políticas.O prefeito de Sioux Falls, Paul TenHaken, pediu formalmente à governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem, que emitisse uma ordem para ficar em casa para os municípios vizinhos, bem como para criar um centro de isolamento.
Ela negou os dois pedidos.
Apesar do aumento no número de casos, Noem também continuou a se recusar a emitir uma ordem de quarentena obrigatória em Dakota do Sul, dizendo especificamente que essa ordem não teria impedido o que aconteceu em Smithfield.
Em vez disso, aprovou o primeiro teste estadual para a hidroxicloroquina, um medicamento que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cita frequentemente como um possível tratamento para o coronavírus.
Sem saída
Dois dias após o diagnóstico positivo de coronavírus da mãe, Julia acordou no sofá com dor de cabeça , tosse e garganta seca.Pela primeira vez desde que a pandemia tomou conta de sua vida, ela dormiu a noite toda, mas acordou mais exausta do que nunca.
Depois de ligar para o número de emergência e informar que era filha de um trabalhador de Smithfield, Julia entrou no carro de sua mãe e dirigiu até o local do teste.
Ela estava de bom humor, apesar de quase tudo o que tentara evitar ao enviar a denúncia ao jornal local havia um mês.
A fábrica permaneceu aberta. Sua mãe estava com o vírus e seu pai foi exposto à doença. Sua cidade havia se tornado o epicentro da pandemia no Estado de Dakota do Sul. E muitos haviam morrido.
E agora, ela também poderia estar doente.
"Só quero chorar", disse ela, enquanto se dirigia para o hospital.
Muitos imigrantes nos EUA estão na mesma situação que os pais de Julia. "Eles não sabem inglês. Eles não podem se defender", diz a jovem.
'Vá para casa, fique em casa, não vá a lugar nenhum'
Embora tenha chegado apenas 20 minutos após a abertura do centro de testes, Julia encontrou uma fila de 15 carros na frente dela. "Odeio filas", desabafou, tomando um gole de sua garrafa de água e tossindo.Depois de meia hora, estacionou no que parecia uma enorme garagem e viu uma placa que dizia: "Tenha seu cartão de identificação e seguro de saúde em mãos".
"Ok, fiquei ansiosa", disse ela. "Não quero fazer isso."
Quando chegou a sua vez, um funcionário do centro vestindo um traje de proteção completo, máscara e luvas enfiou um longo cotonete na narina direita de Julia e depois na esquerda.
Ela fez uma careta e estremeceu.
"Você precisa de um lenço?", perguntou o profissional de saúde. "Sim, por favor", respondeu Julia.
Com instruções para "ir para casa, ficar em casa, não vá a lugar nenhum", Julia conseguiu sair do centro. Foi um momento tão apavorante que ela começou a chorar e teve que parar o carro por um momento para se acalmar.
Julia estava sentada ao volante, observando os carros entrando e saindo do estacionamento. E lamentou que sua casa agora tivesse se tornado um possível novo foco da infecção.
Depois de alguns minutos, chegou a hora de voltar para casa que seus pais, Helen e Juan, haviam trabalhado tantas horas na fábrica para pagar. Um lugar onde todos ficariam em quarentena por pelo menos 14 dias.
"Agora é só esperar", disse Julia. "Acho que não consigo pensar muito sobre isso. Mas vai passar."
Julia receberia seus resultados em cinco dias.
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