Covid-19 e demagogia
Antes que todo o mundo comece a concordar comigo apresso-me a levanter um ponto de mesa também para realçar que tudo o que escrevo ou digo é fruto da reflexão que faço sobre os méritos das questões e não porque tenho um posicionamento ideológico a defender. Tenho visto várias pessoas no facebook e no whatsapp a “convidarem” os Mozes ricos a doar parte da sua riqueza para ajudar a combater a pandemia. Isto é demagogia e em tempos de crise pode ser problemático. Embora por enquanto improvável, mas não impossível, pode ser que um dia a mesma lógica leve pessoas a violarem a propriedade dos que estão melhor simplesmente porque estamos em crise e todos têm direito à vida. Há assomos de raciocínio que precisam de ser pensados antes de serem exprimidos.
A vida em comunidade implica o compromisso de cada um de nós com a sorte dos outros. O ideal de justiça coloca naquele que tem mais do que os outros uma espécie de peso na consciência. Do ponto de vista ético, contudo, esse peso devia ser sentido por todos aqueles que têm mais do que necessitam para garantir a sua própria existência. Peter Singer, um filósofo australiano, colocou este problema moral da forma mais radical possível quando nos colocou na obrigação moral de darmos tudo o que temos em excesso para que os outros possam garantir a sua existência também. Ele girou a faca na ferida ao comparar a nossa indiferença ao sofrimento dos outros ao caso duma criança que se afoga num lago e nós não acudimos porque não queremos estragar a nossa roupa.
Este argumento mostra que o dever de ajudar recai sobre todos nós, não só sobre os ricos ou mais ricos ou ainda os que se tornaram ricos por via ilegal. Antes de fazer essa exigência cada um de nós devia perguntar a si próprio se precisa de tudo quanto tem neste momento e se não faria sentido vender tudo o que não é essencial para a sua existência (DSTV, vestuário, bebidas alcóolicas, etc.) e doar o dinheiro ao governo para comprar máscaras e kits de testagem.
A posição de Singer mistura várias abordagens éticas, desde a virtude (um acto é bom quando mostra o tipo de pessoa que somos – boa pessoa ou pessoa com virtudes humanas), passando pelo utilitarismo (o que é bom é o que dá a maior felicidade ao maior número de pessoas) até ao consequencialismo (o que é bom é o que é bom nas suas consequências). Na prática política as coisas não são assim tão simples como podem parecer. Normalmente, o compromisso ético é garantido pela constituição a partir da definição dos direitos e liberdades das pessoas, mas acima de tudo, da definição do dever que o estado tem em relação a cada um de nós. E aqui a porca torce o rabo, pois esse dever estatal esbarra em algumas liberdades fundamentais como, por exemplo, o direito à autonomia, à propriedade, e à protecção contra a arbitrariedade do estado.
Por exemplo, com que direito podemos, a partir da constituição, exigir que os ricos nos acudam neste momento de crise? Como conciliamos isso com o direito que eles têm ao que é seu, não importa como o adquiriram? E há também o problema da eficácia: não faz mais sentido que eles retenham o que têm para continuarem a garantir, através de empregos, a sobrevivência dos demais? Não faz mais sentido exigir que eles tenham um peso fiscal maior para que o estado crie reservas e em momentos de crise recorra a essas reservas para salvar vidas?
Nao estou a querer ser desmancha-prazeres, nem defensor dos ricos. Estou a dizer que certos assuntos são importantes demais para serem tratados em forma de slógans indignados. Eu disponho de muito mais do que preciso para sobreviver, mas ainda não fiz nenhuma doação. Sou má pessoa? A reflexão que faço para ajudar a pensar o problema não conta como contribuição? Tenho algum direito de exigir de outros em melhores condições do que eu que façam o que faço (ou não faço)? E quem não fizer o que eu faço é má pessoa em virtude disso? Que tipo de Moz tenho em mente quando desenvolvo esse tipo de expectativa ética? Que tipo de estruturas políticas precisam de ser pensadas em Moz para que aquilo que esperamos hoje dos ricos faça parte do compromisso da nossa sociedade com a justiça social?
No fundo, quando digo que crise é uma oportunidade refiro-me a este tipo de coisas.
No fundo, quando digo que crise é uma oportunidade refiro-me a este tipo de coisas.
Temos aqui uma oportunidade para reflectir seriamente sobre o tipo de País que gostaríamos de ser. Sem demagogia que um dia ainda nos pode engolir...
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