terça-feira, 21 de abril de 2020

O ESTADO DE EMERGÊNCIA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO

Haber Kaynağı

O ESTADO DE EMERGÊNCIA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO
Paulo Comoane
(Doutor em Direito e Professor Universitário)
A revisão da Lei n.º 8/98, de 20 de Julho, que deu lugar à aprovação da Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto (Lei do Trabalho) tinha sido pensada para resolver os problemas inerentes à necessária conciliação entre o risco do exercício da actividade empresarial e a situação social do trabalhador, objectivo que se insere no fenómeno juslaboral de flexibilização do Direito do Trabalho e das suas normas, visando mitigar a dita rigidez do regime jurídico das relações de trabalho. Esta flexibilização é uma resposta localizada no Direito do Trabalho de um movimento mais generalizado da reforma do Estado social imposta pelo neoliberalismo clássico que voltou a ganhar força com a crise económica mundial, cujas primeiras ondas devastadoras resultaram do choque de petróleo de 1973, marcando o início do declínio do sonho de pleno emprego e da intervenção social do Estado, e que teve o seu auge na crise financeira global de 2008.
Nesse quadro de crise económica global, ganhou tese a ideia de menos Estado e mais negociação, o que, nos termos de referência da aludida revisão da legislação laboral de 2007, consubstanciado no sonho da conciliação entre os objectivos económicos da empresa e os direitos sociais do trabalhador, ficou marcado pela pretensão de desregulação e desintervenção do Estado nas relações de trabalho, mas com a salvaguarda dos direitos adquiridos dos trabalhadores. Num quadro jurídico como este, alicerçado na referida filosofia de flexibilização da legislação laboral, a Lei de Trabalho deixou de ser apenas um instrumento de gestão de recursos humanos e passou a ser um instrumento de gestão financeira da empresa, o que exigiu a introdução de novos institutos, dos quais pretendo destacar o regime da alteração das circunstâncias como fundamento da modificação dos contratos de trabalho.
Não passam, pois, muitos dias que o Inspector-Geral do Trabalho anunciou que, em resultado da pandemia da COVID-19, mais de duas centenas de empresas já haviam notificado ao Ministério do Trabalho e Segurança Social a suspensão dos contratos de trabalho, o que pode ser um prenúncio de massivos despedimentos que eventualmente podem acontecer daqui a três meses se as medidas do Estado de Emergência se prolongarem por mais tempo. Mas, mesmo que elas sejam relaxadas em breve, as notícias que vamos recebendo um pouco por todo o mundo prevêem uma recessão económica jamais vivida por esta geração, o que significa que o espectro de crise económica, com consequências para as relações de trabalho, vai manter-se.
Estes acontecimentos revelam, para já, dois problemas na legislação laboral em vigor. O primeiro, é o de que, passados mais de dez anos após a sua aprovação, a legislação laboral não está sendo explorada na sua plenitude, pois as implicações da declaração de um Estado de Emergência nas relações de trabalho não devem ser respondidas somente com a medida de suspensão das relações de trabalho. Em segundo lugar, para mim o problema mais preocupante é ter ficado claro que a reforma da legislação laboral de 2007 ficou muito aquém do que seria de desejar, pelo menos no que diz respeito à resposta jurídico-laboral a fenómenos extralaborais com impacto nas relações do trabalho – os casos de força maior.
Em relação ao primeiro problema, de que as empresas tenham lançado imediatamente mão do instituto da suspensão das relações de trabalho, preocupa o facto de a declaração do Estado de Emergência não ter determinado medidas de lockdown absoluto, mas antes de distanciamento social, que, logicamente, implicam a redução do número de trabalhadores ou do número de horas de trabalho. Para este feito, existem outras possibilidades que se colocam às empresas para gerirem a sua situação económica sem necessidade de lançar mão da suspensão das relações de trabalho.
A modificação negocial dos contratos de trabalho, nas suas diversas modalidades previstas na lei, sendo a que se afigura mais ajustada ao momento seja a modificação do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias em que se fundou a decisão de as partes celebrarem o contrato de trabalho. Esta modificação tanto pode ser temporária – por exemplo, durante o Estado de Emergência – ou definitiva.
Mas, também, é aqui onde reside o problema mais preocupante da Lei do Trabalho, que deve ser resolvido em futuras revisões, mas que durante o Estado de Emergência poderia ter sido excepcionalmente consagrado – refiro-me ao n.º 2 do artigo 73 da Lei do Trabalho, segundo o qual Em nenhum caso é admitida a modificação das condições de trabalho, com fundamento na alteração das circunstâncias, se essa mudança implicar diminuição da remuneração ou da posição hierárquica do trabalhador.
Durante o Estado de Emergência, fazia mais sentido que esta disposição legal fosse suspensa de modo a permitir que as empresas pudessem negociar a redução temporária das remunerações, tendo em consideração a situação em que o País se encontra. Esta solução não seria tão revolucionária quanto possa parecer, pois ela é afim da redução salarial em sede da suspensão dos contratos de trabalho.
A diferença entre a redução salarial, por via da modificação do contrato de trabalho, com fundamento na alteração das circunstâncias, e a suspensão do contrato de trabalho por motivo respeitante ao empregador tem a ver com o poder de iniciativa e as consequências que derivam de ambos os institutos. A redução salarial, temporária e negocial, constituiria uma medida visando a subsistência da relação de trabalho, enquanto a suspensão do contrato de trabalho é uma porta aberta para o despedimento dos trabalhadores, findo o terceiro mês da duração.
Deste modo, parece-me que a suspensão temporária da proibição de redução salarial seria uma medida prudente para evitar despedimentos massivos em tempos que se avizinham, na medida em que, como se disse atrás, se os efeitos económicos da pandemia se mantiverem para além de três meses, ainda que se declare o fim do Estado de Emergência, as empresas poderão ser estimuladas a fazer despedimentos colectivos à luz da suspensão dos contratos de trabalho, enquanto a redução salarial seria um estímulo à manutenção dos contratos de trabalho. Há momentos em que é preciso saber entregar os anéis para salvar os dedos!
O que talvez fosse necessário é o estabelecimento de medidas de salvaguarda, através da fixação de limites à redução salarial e dos níveis salariais não abrangidos pela redução salarial, por exemplo, por referência aos salários isentos do Imposto de Rendimento de Pessoas Singulares (IRPS).
Para a mitigação dos efeitos da redução salarial, a intervenção da segurança social obrigatória deve ser vista como uma possibilidade, não nos termos da legislação em vigor, mas, sim, no âmbito da legislação do Estado de Emergência, designadamente a alínea j) do n.º 2 do artigo 3 do Decreto Presidencial n.º 11/2020, de 30 de Março, que declara o Estado de Emergência, ratificado pela Lei n.º 1/2020, de 31 de Março, concernente à adopção de medidas fiscais e monetárias para apoiar o sector privado a responder ao impacto económico da pandemia da COVID-19. Com efeito, abrir mão da proibição da redução salarial, imposta pelo n.º 2 do artigo 72 da Lei do Trabalho, constituiria uma medida de apoio ao sector privado, como está a acontecer no Direito Comparado.
[Este texto faz parte duma iniciativa provocada pelo isolamento causado pela pandemia da COVID-19. Vários juristas, sociólogos, economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais associaram-se a esta iniciativa e escrevem sobre o significado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.]
Yorumlar
  • Nelson Sadoque Manhice É sempre bom ver escritos de vozes autorizadas do nosso meio jurídico.

    Muitos parabéns aos criadores deste grupo.
  • Júlio Mutisse Interessante abordagem.
  • Argentino Cumbe sempre tive a sensação de que a lei de trabalho só beneficia o empregador
  • Alter Nativo Parece-me ser um bocado injusto tomar medidas do genero que claramente poem em alta consideracao o interesse do patronato, num contexto de mudanca radical de circunstancias laborais (consequencia directa da entrada em vigor do Estado de Emergencia). O trabalhador nao pode estar tao vulneravel assim, tendo de ser o primeiro (ou mesmo o unico) sacrificado. Tudo em nome da sustentabilidade sacrossanta das empresas privadas... a decisao de lockdown (ou de isolamento social) total ou parcial foi tomada pelo Governo, entao ele eh que tem de arcar com todas as implicacoes disso, sobretudo em situacoes de crise com esta seriedade ou gravidade (eh para isso que ele existe, afinal de contas). Para onde as empresas levam os seus fabulosos (mesmo que nao generalizados) lucros anuais? Para que eh que os trabalhadores descontam impostos sobre os seus salarios (em empresas serias e nao tao serias assim)? O Estado mocambicano nao pode fugir as suas responsabilidades (algumas ate as assumiu, via medidas governamentais de suspensao de pagamentos de servicos basicos e de amortizacoes bancarias; resta saber se estao efectivamente em marcha). E eventos de forca maior nao podem sobrecair, via forca de lei, apenas sobre os salarios dos trabalhadores (mesmo que seja apenas para baixa-los). Mais ainda, ha programas de auxilio financeiro as empresas (desenhados, por desenhar ou por implementar) que tem como missao garantir a sua liquidez e sustentabilidade enquanto o Estado de Emergencia continuar. Parece-me que essa lei do trabalho vigente (claramente anti-trabalhista no sentido social do termo) pode ser facilmente usada para descartar trabalhadores (ou cortar ainda mais os seus ja sofrido direitos) sem encargos-extra para os donos dos meios e modos de producao... e a pandemia do COVID-19 eh apenas uma oportunidade flagrante para tal. Seria interessante ver o que os sindicatos laborais (largamente cooptados) teem a dizer sobre isso. Estao todos num silencio sinistro!

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