O filósofo moçambicano Severino Elias Ngoenha defende que não existe um partido de esquerda no seu país, e alerta para a prevalência do neo-liberalismo, “desde a queda do Muro de Berlim”, em 1989.
Severino Elias Ngoenha, filósofo moçambicano, é um dos pensadores do país onde nasceu há 52 anos. Doutorado em Filosofia pela Universidade Gregoriana, em Roma, e atualmente investigador do departamento de Antropologia e Sociologia da Universidade de Lausanne, Suíça, Ngoenha tem trabalho assinlável nas áreas da deantropologia, pensamento africano, filosofia da educação e interculturalidade. Entrevistado pelo Plataforma macau, o filósofo abordou o momento pós-eleitoral em Moçambique.
PLATAFORMA MACAU: Acabamos de viver um momento histórico da democracia em Moçambique, as quintas eleições gerais de 15 de Outubro. Na sua opinião, qual é o real valor deste momento para Moçambique?
SEVERINO NGOENHA: Nós não escolhemos governantes pela beleza que têm, pela cor das bandeiras dos partidos ou pelo hino dos partido, mas, em princípio, por de trás de cada partido, há ideias e propostas do tipo de sociedade na conjuntura que estamos a trilhar. Quando damos o nosso voto a um partido significa que nós nos identificamos ou pensamos que, entre os projetos políticos que se apresentam sob forma de partido, aquele que escolhemos é o mais adequado para levar a bom fim as vontades do povo. Essencialmente a democracia deveria ser assim.
Ora, acontece uma coisa muito simples, desde a queda do muro de Berlim (1989) parece que alternativas políticas não existam. Nunca vivemos um momento de tanta unicidade em termos ideológicos. Parece que o liberalismo, sobretudo o ultraliberalismo, ganhou uma certa ascendência sobre outras formas de organizar a vida social. Isso tira-nos a possibilidade de termos movimentos alternativos. Isso não só para o plano moçambicano. Nós vimos Barack Obama ao ser escolhido por ideais da redistribuição, luta contra pobreza, trabalho para todos, luta contra as finanças nos Estados Unidos, no entanto, a política que plantou foi exatamente contrária, tanto que a primeira coisa que ele fez foi financiar os bancos no momento da decadência. Vimos, na França, o presidente François Hollande a ser escolhido através do discurso da luta contra os bancos, o desemprego, a distribuição equitativa, o combate ao desemprego – ideias socialistas de esquerda. Mas o último governo que ele nomeou tem um ministro da economia que vem da banca Rothschild. Quer dizer que alinhou-se. E esta ideia de alinhamento da esquerdas à única política que parece viável depois da caída do muro de Berlim, o liberalismo, sobretudo com Milton Fredman e a Escola de Chicago, o ultraliberalismo, tornou-se, também, a Chave-guia para entender os debates políticos no nosso caso.
A Frelimo nasceu na esquerda, mas mudou para direita – ela mesma disse que é uma “holding”. A Renamo nasceu na direita, ou pelo menos da direita, quer dizer, atualmente, encontra-se no mesmo xadrez político que a Frelimo. O Movimento Democrático de Moçambique (MDM) podemos colocá-lo no centro, mas um centro direita. Estamos todos no mesmo lugar, o que faz com que não haja projectos alternativos de governação. Lutar contra corrupção é definir a política pela negativa, lutar contra identificação Estado e partido é definir a política pela negativa, quer dizer que os partidos da oposição não têm um ideal diferente ao da Frelimo. E o da Frelimo já não é um ideal de esquerda como foi em 1975.
P. M: Qual é a consequência imediata desta condição?
S.N: Estamos num país em é que dificilmente podemos votar em projetos de sociedade porque não há projetos alternativos. Então, as eleições, no nosso caso, são simplesmente um exercício de substituição de pessoas no poder. Votamos pelos hábitos, votamos porque precisamos de uma camisa, em certos casos, votamos pelo poderio económico que um determinado grupo tem de mobilizar pessoas.
Estamos com uma grande pobreza em termos de ideias, não há debate alternativo, por isso há uma autêntica fraqueza no campo político. Isto parece contraditório porque, no fundo, podíamos dizer que estamos num momento ultra-político, no sentido em que, se confiássemos na televisão e a Rádio, teríamos a impressão de que todos moçambicanos em todas províncias entravam nos debates. Teríamos a impressão de que estamos numa ágora platónica muito grande em que todos cidadãos participam, têm ideias, isso seria positivo. Mas, na verdade, se pensarmos que o debate de ideias é aquilo que norteia a política, os ideais, a diferenciação dos pontos de vista para conduzir o povo a sair da situação em que se encontra, então estamos numa em que debatemos pessoas e não ideias.
A Frelimo vai dizer que libertou o país, a Renamo vai dizer que trouxe a democracia, o MDM vai dizer que não tem armas, mas no fundo não estão a debater ideias sobre como queremos levar Moçambique em melhores situações de existência. Estamos num debate político sem ideias políticas.
PEQUENA ELITE VERSUS A MAIORIA
P.M: Costuma aludir à necessidade de se repensar o contrato social moçambicano. O que estaria a falhar exatamente?
S.N: Em Moçambique nós temos níveis de vida completamente díspares. Há uma pequena elite que tem muito, há uma pequena elite que tem o suficiente. Mas a maioria das pessoas está em situação catastrófica. O contrato social significa pegar naquilo que temos redistribuir equitativamente, pelo menos em termos de oportunidades para todos. Para que todos tenham alguma coisa para comer.
Você pode, com olho nu, olhar para cidade de Maputo e dar-se conta que existe desproporção em termos daquilo que nós temos, do que comemos, do acesso aos bens públicos e bens naturais. Nesse sentido, o contrato social está falhar.
P.M: Estima-se que 10 Milhões de moçambicanos foram votar no dia 15 de outubro. Comparado às eleições anteriores nota-se uma maior afluência. O que isto significa?
S.N: Interessam-me pouco as estatísticas. Aliás, a filosofia não vive de estatísticas. Levar mais gente a votar não significa ter um melhor debate em termos de ideias num país. No fundo, isto é engrandecido pelos meios de comunicação, você quando olha para a televisão tem uma manifestação de mil pessoas, a televisão consegue fazer um apanhado daquelas pessoas e isto perece o país inteiro. Mas foram mil pessoas num país de quase de 30 milhões, por exemplo. Então, dificilmente a gente pode pensar a sério que aqueles que foram para referida manifestação, que a gente nem sabe de onde são, fossem representativas – este é primeiro aspeto.
De um lado, a televisão joga um papel mobilizador, de formação e de informação, no bom e no mau sentido. Theodor Adorno e Max Horkheimer já falavam da capacidade dos medias como alienação. Capacidade também de aumentar o acontecido, levar os indecisos a tomarem decisões. Estes números não dirão, necessariamente, que houve uma evolução no debate de ideias.
Aquilo que é importante numa sociedade não é simplesmente o número de pessoas que vão votar, mas é votar com consciência e conhecimento de causa. Entretanto, isto depende da existência de projetos políticos alternativos e, principalmente, da nossa capacidade de entender os projetos políticos alternativos. Num país com mais de 70% de analfabetismo, com 10 ou 15 % de alfabetizados analfabetos, os que tem o diploma mais não sabem de facto ler nem escrever, como é que pode entender e interpretar um projeto político de uma sociedade?
P.M: Quando é que podemos começar a pensar num Moçambique com consciência democrática?
S.N: Isso é ligado a muitas coisas, é preciso a consciência cívica dos indivíduos, por um lado. Há um nível de formação que tem de melhorar, há um nível de uma prática política de participação que tem de evoluir, isso faz-se com o tempo. Nós mesmos, nas nossas intervenções, temos tendência a comparar-nos com outras sociedades. Nossa sociedade vai crescer, necessariamente, a um ritmo que lhe é próprio. Esta ideia de consciência democrática, quer nos atores políticos principais quer nas populações, é necessário que haja uma evolução.
Estêvão Azarias Chavisso
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