I. TEORIA
John J. Mearsheimer, professor de Ciência Política da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos da América, publicou em 2011, pela Oxford University Press, a obra “Why Leaders Lie” (o que, em português por mim traduzido, quer dizer “Porquê é que os Líderes Mentem”). Embora focado em problemáticas de política internacional, considero que alguns dos seus argumentos são extremamente úteis para analisar o actual debate sobre o nebuloso endividamento público contraído pelo governo do antigo Chefe de Estado moçambicano, Armando Guebuza. Na obra, Mearsheimer praticamente acende as luzes sobre o direito que os cidadãos têm de estar informados sobre as acções dos seus governantes. Fundamentalmente, e entre vários, os principais pontos por mim retidos no livro são os seguintes:
1. A mentira, apesar de perversa e ultrajante, é um “recurso estratégico” de que os líderes se socorrem para realizar decisões políticas que, de outro modo, não mereceriam aprovação e apoio popular. Contextualizando para Moçambique, o Governo nunca pediria autorização ao povo (através da Assembleia da República) para contrair empréstimos para financiar negócios públicos ou privados geridos pela elite no poder e seus associados.
2. A mentira pode ser feita pelos nossos líderes sempre que uma situação de interesse nacional assim o exija, mas também pode ser uma escolha deliberada feita pelos dirigentes mesmo diante de outras alternativas possíveis. Isto pode ser explicado assim: qualquer Governo sensato nunca colocaria em risco ou aflição o seu povo, tomando decisões irresponsáveis que deteriorassem a sua condição (e que é o que vai acontecer nos próximos tempos, com a elevação do custo de vida, o aumento de impostos e o atraso de salários, dentre outros).
3. Os líderes tendem a elaborar mentiras sobre ameaças externas para justificar acções feitas internamente. Por exemplo, um dos principais argumentos a favor do empréstimo para a compra de armamento militar (pelo menos o que foi dito oficialmente) é o da defesa da nossa costa marítima contra pescadores ilegais e o da segurança dos empreendimentos de prospecção e exploração de jazidas de gás natural (ou de petróleo). A pergunta de um milhão de dólares a ser feita aqui é a seguinte: se tais argumentos fossem esgrimidos junto de órgãos competentes como o nosso parlamento, teriam sido chumbados?
4. Os líderes por vezes acham que têm o dever moral de mentir para proteger os seus cidadãos. Geralmente, eles pensam que os seus cidadãos são incapazes de enxergar determinadas questões de interesse nacional (ou não) de forma inteligente e/ou racional, advindo daí a sua pretensa legitimidade de decidir e de agir à margem do seu conhecimento e aprovação. Aqui as perguntas mais prementes a serem respondidas pelos nossos dirigentes em Moçambique seriam as seguintes: mentiram-nos (ou nos omitiram de algumas verdades) para quê? Ou melhor dito, com que propósito? Ou, acima de todas, que factos são esses e em que medida eles justificariam até o atropelo da Constituição da República e demais leis?
5. Socialmente, a mentira (ou a omissão da verdade) é amplamente vista como algo que corrompe os indivíduos e, por conseguinte, inaceitável em qualquer sociedade. Só nesta semana, tanto o Presidente da República quanto o Primeiro-Ministro desdobraram-se em viagens simultâneas ao exterior para explicar o que internamente sonegam ou omitem. Esta dualidade de critérios só nos fragiliza institucionalmente, reforça as suspeitas do cidadão sobre a conduta duvidosa de quem lhe dirige e corrobora a convicção geral de que somos todos reféns de interesses de um punhado de indivíduos há muito desavindos, estranhos, conflituantes e lesivos aos partilhados pelo povo.
6. Implementar determinada decisão política (como, por exemplo, contrair empréstimos internacionais) sem o necessário debate e aprovação pública ou, por outro lado, ocultar da opinião pública a realização de políticas desastrosas (como o endividamento irresponsável e insustentável), pode levar à ocorrência de maiores desastres no futuro (pela possibilidade de se manter dirigentes incompetentes no poder ou de se evitar a sua devida responsabilização pelos erros cometidos). Aqui podemos situar todos os nossos governantes directamente envolvidos nos trâmites dos empréstimos, sejam eles dirigentes correntes ou cessantes.
II. FACTOS:
1. Houve manifesta e deliberada violação da Constituição da República. O artigo 179 da Constituição diz taxativamente, na sua alínea p), que compete à Assembleia da República “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado”. Ademais, a Lei Orçamental e a Conta Geral do Estado para o ano em que foram contraídas as dívidas (2013) foram impiedosa e prepotentemente violadas, em níveis muito piores aos que estão a ser agora usados como pretexto para a destituição de Dilma Rousseff da presidência do Brasil, só para se ter uma ideia.
2. Houve um colossal erro estratégico nesse imbróglio todo de empréstimos e de investimentos subsequentes, por parte do Governo anterior e das suas alianças no sector privado. O projecto da EMATUM mostra há já um tempo considerável não ter pernas para andar, as expectativas dos efeitos multiplicadores das descobertas de recursos energéticos na Bacia do Rovuma estão em queda livre e o carácter secreto destas e de outras negociatas acabou vazando para o público em tempo inoportuno. E já está a ficar unânime o descontentamento e a indignação de todas as forças vivas da sociedade (inclusive dentro do partido no poder) não associadas ao círculo restrito de arquitectos e engenheiros destes endividamentos.
3. O partido no poder, através da sua bancada maioritária na Assembleia da República, é cúmplice nestes negócios sombrios. Com efeito, a Frelimo chumbou o pedido de auscultação do Governo sobre os contornos da dívida mas, uma semana depois, o Governo do mesmo partido saiu de emergência para o Fundo Monetário Internacional (FMI), através do Primeiro-Ministro, para dar explicações sobre o mesmo assunto. Portanto, o Governo ignorou o órgão de soberania devidamente competente para tal e foi dar satisfações no estrangeiro… Há aqui um tiro no próprio pé de um Governo que sempre se mostrou livre de “patrões estrangeiros”. Hipocrisia? Orgulho de vidro?
3. As consequências do pagamento dessa dívida trará implicações muito sérias para a vida do cidadão contribuinte. Até agora, são cerca de 3 biliões de dólares de dívida contraída pelo Estado moçambicano com empréstimos para assuntos ainda não clarificados (o Governo só reconhece, através das declarações do Primeiro Ministro do FMI, apenas 1 bilião). Se formos a dividir os hipotéticos 3 biliões de dólares por cada um dos 24 milhões de cidadãos moçambicanos de hoje, teríamos qualquer coisa como mais de 50 mil meticais que cada um de nós deverá contribuir (estejamos a trabalhar ou não, sejamos adultos ou crianças, homens ou mulheres) para pagar a dívida.
4. O Conselho Constitucional (garante da primazia e do cumprimento da Constituição) e a Procuradoria Geral da República (entidade responsável pela defesa da legalidade) demonstram estar capturadas pelos tentáculos do regime no poder. As duas instituições (sendo a primeira também um órgão de soberania à luz da nossa Constituição) mostram estar escandalosamente atreladas à máfia do poder político vigente, se tomarmos em consideração o seu ruidoso, indisfarçável e revelador silêncio cúmplice até agora. Estas instituições devem obrigatória e urgentemente mostrar o seu devido serviço ao povo moçambicano, para que este não caia em teias sistemáticas de desinformação, contra-informação ou especulação, como está a acontecer actualmente.
III. CONCLUSÃO
1. A dívida foi contraída de modo ilegal (porque não foi autorizada pelo parlamento, acção constitucionalmente exigida) e, por sermos um Estado de Direito, os seus perpetradores deverão ser civil e criminalmente responsabilizados. A aplicação da lei deve ser imparcial e indiferenciada. Ademais, o princípio de responsabilidade em direito advoga que crimes cometidos por um indivíduo (ou grupo de indivíduos) não devem, pelo meu entendimento e em momento absolutamente algum, ser arcados colectivamente.
2. Não se sabe, ao menos publicamente, para que fins a dívida foi globalmente contraída. Ou onde é que ela foi investida, para além da aquisição de embarcações de pesca de atum (através da EMATUM), da compra de armamento militar para acções de patrulha marítima junto à costa por “empresários privados” associados à elite política (pela Proindicus) e mais nada. Portanto, o que o povo moçambicano sabe, até agora e por canais não convencionais (oposição política, meios de comunicação social alternativos e imprensa nacional) é que foram efectuados vários empréstimos para actividades comerciais de âmbito privado que foram transformadas em dívida soberana a ser paga pelo Estado (composto por todos os cidadãos contribuintes). Com o ambiente sinistro de secretismo e de silêncio institucional por parte do Governo, há sinais muito claros de que os valores dos empréstimos foram destinados ou desviados para interesses muito estranhos aos do Estado e dos seus cidadãos. Responsabilizar os cidadãos por isto, de modo indiscriminado, colectivo e coercivo, para além de ser manifestamente injusto, é inaceitável e deve ser ruidosa e terminantemente rejeitado por todos nós.
3. Todo o trabalhador ou funcionário sabe que deve prestar sempre informações reais e fidedignas, nas suas atribuições laborais correntes, do mesmo modo que sabe que mentir ou omitir sobre assuntos que têm influência directa ou indirecta no seu desempenho (ou no dos outros colegas e beneficiários de serviços) trar-lhe-á obrigações e responsabilidades. Se cidadãos nacionais são julgados e condenados por desvios de fundos de “baixa intensidade”, o mesmo princípio deverá ser aplicado aos que cometem desvios de fundos de biliões de dólares.
4. Tentar justificar o endividamento público nas proporções ilegais e insustentáveis actuais em nome do interesse nacional (por exemplo, a compra de armamento para a protecção de empreendimentos energéticos como o gás natural e o petróleo recentemente descobertos na orla marítima moçambicana), não justifica de modo absolutamente algum o seu ultra-secretismo e os contornos ilegais em que o mesmo foi efectuado. Os teóricos da primazia e salvaguarda da soberania (defesa e segurança do Estado acima da lei e do escrutínio popular, se tiver de ser necessário) são todos cúmplices ou apologistas da ilegalidade, o que num Estado de Direito democrático funcional deve ser devidamente repudiado, responsabilizado e condenado. Caso contrário, abrir-se-á um precedente de descredibilização, desonestidade e impunidade, com implicações não só a nível central. Toda a função pública (e a sociedade, por tabela) poderá ser vítima desse precedente. Com efeito, o Estado não pode, simultaneamente, processar, julgar e sentenciar delitos comuns mas se eximir dessas responsabilidades perante delitos graves como o actual. Não pode e nem deve haver meio termo.
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