quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Como aprender da crítica (2): crítica como teste de lealdade

 Elisio Macamo

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Como aprender da crítica (2): crítica como teste de lealdade
Há algo que observo com uma regularidade quase pedagógica. Critico o governo. Os seus simpatizantes correm logo em defesa. Critico a oposição. Sobretudo o novo partido, Anamola. O reflexo é o mesmo. Muda o lado, mas não muda a reacção. Defender. Proteger. Cerrar fileiras. Quase nunca a reacção começa pela pergunta mais simples que seria de saber se o que está a ser dito tem mérito. Começa por outra, muito mais reveladora e que consiste em saber afinal de que lado estou. Como se essa fosse a questão decisiva. Como se a validade dum argumento dependesse da posição política de quem o formula.
Este é para mim um dos sinais mais claros da nossa dificuldade em lidar com a crítica. Transformámo-la num teste de identidade. Quem critica não é alguém que ajuda a pensar melhor. É alguém que precisa de ser localizado. Classificado. Neutralizado. Se não se deixa classificar, pior ainda. O efeito é devastador para a aprendizagem pública. As questões colocadas, às vezes incómodas, mas quase sempre relevantes, perdem-se na disputa sobre intenções. No lugar de se discutir critérios, discute-se pertença. Ao invés de se avaliar decisões, avalia-se carácter. A crítica deixa de ser um instrumento de discernimento e passa a ser um episódio de guerra simbólica.
Isto explica por que razão vivemos permanentemente em crise, mas aprendemos tão pouco com ela. Há um ponto etimológico que ajuda a perceber por que razão a crítica incomoda tanto. Na raiz grega, “krísis” não significa catástrofe, mas momento de decisão. É o ponto em que já não se pode continuar como antes e é preciso julgar, distinguir, escolher um caminho. Da mesma raiz vem “krínein” que é criticar. A ligação é directa. Não há crise sem crítica. Uma crise só se torna produtiva se houver capacidade de discernimento. Quando essa capacidade desaparece, a crise degenera. Ou em pânico, quando ninguém sabe decidir, ou em autoritarismo, quando alguém decide sem justificar.
Isso ajuda a entender por que a crítica é hoje sentida como ameaça. Quem critica introduz crise no sentido original, pois obriga a justificar, a sair da inércia e a rever critérios. E isso é profundamente desconfortável para quem prefere estabilidade sem reflexão. No fundo, a etimologia sugere algo quase normativo, nomeadamente que uma sociedade que não tolera a crítica transforma qualquer crise numa calamidade. A crise exige decisão. Tem que ser avaliada. Devia nos obrigar a rever pressupostos. Quantas vezes não criticamos o trabalho inútil da polícia de trânsito de controlar a velocidade e documentos? Os acidentes diminuíram? As infracções diminuíram? Quem anda pela circular, sobretudo nestes dias festivos, para além do trânsito intenso, tem que contar com a polícia. Só que a polícia e o ministério do interior estão se nas tintas. Devem pensar que a crítica é apenas um ataque. Mas quando toda a crítica é lida como ataque, a única resposta possível é a defesa. E quem se defende não aprende. Justifica-se.
Na prática, criámos uma esfera pública em que a crítica já não serve para melhorar decisões, mas para reforçar trincheiras. O governo defende-se como se cada crítica fosse uma tentativa de deslegitimação. A oposição reage do mesmo modo. Cada lado fala para os seus. Cada erro é relativizado. Cada falha é explicada. Nada é realmente examinado.
O mais irónico é que este mecanismo fragiliza precisamente aquilo que se quer proteger. Um governo que não aprende da crítica torna-se opaco. Uma oposição que não aceita crítica torna-se dogmática. Ambos perdem credibilidade. Não por serem criticados, mas por não saberem o que fazer com a crítica. O problema não é a defesa em si. Em política, defender decisões é legítimo. O problema é defender sem antes passar pela crítica. Defender sem examinar. Defender sem distinguir entre o que pode ser melhorado e o que deve ser mantido. Defender por reflexo, não por razão.
Quando isso acontece, a crítica deixa de introduzir crise no sentido produtivo da palavra. Não obriga a decidir melhor. Obriga apenas a alinhar. A crise, no lugar de ser um momento de aprendizagem, transforma-se em ritual de reafirmação identitária. Tudo muda para que tudo fique igual. Talvez por isso haja tanto cansaço. Tanta irritação. Tanta sensação de conversa inútil. Falamos muito, mas distinguimos pouco. Discutimos posições, mas evitamos critérios. Exigimos clareza dos outros, mas recusamos expor as nossas próprias decisões à crítica séria. Enquanto não separarmos crítica de lealdade, continuaremos presos a este círculo. Quem critica será sempre suspeito. Quem defende será sempre previsível. E a esfera pública continuará a ser um espaço de barulheira, não de aprendizagem.
Como aprender da crítica (1): o qu

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