Sobre a imaginação política (6)
Grandes projectos e a cidadania perdida
De novo, o corte da ajuda sueca coloca-nos perante uma realidade que andamos a evitar durante décadas. Os países que nos financiavam (já) não acreditam na nossa capacidade institucional. A decisão sueca pode não ser apenas um ajuste orçamental ou um realinhamento estratégico, mas um voto de desconfiança nas nossas instituições, na qualidade da nossa governação e na capacidade do nosso Estado de proteger o interesse público. Mas o que alguns leram como abandono pode ser visto como oportunidade, apenas se tivermos coragem intelectual para reconhecer que a nossa maior fragilidade não está nos recursos naturais, na geopolítica ou nas pressões externas, mas sim na forma como pensamos e organizamos o poder.
Os grandes investimentos estrangeiros são o espelho mais cru das nossas fragilidades políticas porque expõem a incapacidade do Estado de funcionar como intermediário legítimo entre interesses comunitários, interesses privados e interesses nacionais. Um estudo que realizei com Cremildo Coutinho, da antiga UP de Tete, publicado há alguns anos numa revista brasileira de sociologia, sobre a presença da Vale do Rio Doce em Moatize, retrata a erosão da cidadania em Moçambique. O que vimos no terreno foi chocante. Vimos comunidades privadas de representação, negociações conduzidas sem consulta séria, deslocações justificadas com desdém (“vocês estão a fazer cocó por cima de riqueza”, estas palavras foram atribuídas a um governador num comício para exigir que as populações fossem a Cateme), e um ambiente em que a cidadania foi reduzida ao exercício desesperado de fazer exigências através de tumultos porque não existem canais institucionais de mediação.
A presença da Vale não destruiu a cidadania. Ela apenas revelou que ela já estava fragilizada. Mostrou que o sistema político moçambicano, ao invés de representar, contorna e que no lugar de estruturar conflitos, reprime tensões até estas explodirem. A relação entre o Estado e as comunidades tornou-se tão assimétrica que a única linguagem efectiva passou a ser a da ruptura consistindo em bloqueios de estrada, queima de pneus, confrontos com a polícia. A política deixou de ser um instrumento de reconciliação de interesses e passou a ser um teatro de imposição. A cidadania, nesta realidade, não é direito, é mera sobrevivência.
É impossível entender Cabo Delgado, as fragilidades da nossa democracia, a incapacidade de formular estratégia nacional ou o fim da ajuda sueca sem compreender esta erosão sistémica da cidadania. Onde o Estado perde a sua capacidade de ouvir, representar e mediar, ele perde também a sua legitimidade. E a perda de legitimidade não afecta apenas a forma como o país funciona internamente. Afecta a forma como o país é percebido externamente. Países ajudam países em que confiam, e a confiança nasce da previsibilidade institucional. Ninguém confia num Estado que negocia com empresas estrangeiras ignorando as comunidades, que trata cidadãos como obstáculos e que confunde desenvolvimento com expropriação simbólica e material.
A forma como gerimos os grandes projectos revela, assim, o núcleo do problema que percorre toda esta série: a ausência de imaginação política. Temos recursos que poderiam financiar um futuro diferente, mas não temos instituições que consigam transformar esses recursos em bem-estar. Temos uma economia que poderia sustentar uma verdadeira política industrial, mas não temos um Estado capaz de construir os instrumentos necessários para tal. Temos comunidades que deveriam ser tratadas como parceiras do desenvolvimento, mas são vistas como estorvos. Temos elites que falam de independência económica, mas que não querem reformar o Estado para torná-la possível. E temos um governo que proclama “fazer diferente para ter resultados diferentes”, mas que insiste em gerir grandes projectos com a mesma mentalidade extractiva que destruiu o potencial de Moatize e de Afungi.
A licção que deveria ser extraída do corte da ajuda sueca é a de que ninguém leva a sério um Estado que não leva a sério o seu próprio povo. A forma como tratamos as nossas comunidades é a medida da forma como tratamos o país. As comunidades de Moatize perceberam que não valiam nada para o Estado senão como massa a ser deslocada. As de Palma perceberam que não existiam senão como obstáculo. Esta violência institucional silenciosa, que raramente chega aos relatórios oficiais, é o que mina qualquer noção séria de desenvolvimento.
Reagir ao corte da ajuda sueca, e ao recuo britânico, e ao desconforto europeu mais geral, exige, portanto, não só indignação ou patriotismo performativo, mas também uma reconfiguração profunda da forma como o Estado gere o poder e a economia, em especial nos sectores extractivos. Significa reconhecer que grandes projectos não são motores automáticos de desenvolvimento, mas instrumentos que só funcionam quando inseridos num projecto político claro, num Estado competente e numa cidadania respeitada. Significa abandonar a visão infantil de que o país tem direito ao desenvolvimento pelo simples facto de possuir recursos naturais, e aceitar a maturidade intelectual de que o desenvolvimento implica método, instituições e um Estado regulador que serve o povo e não investidores ou elites partidárias.
As propostas que fiz ao longo desta série (reforma institucional, profissionalização do Estado, clareza estratégica, criação de capacidade regulatória, transparência, cidadania activa, ligação entre desenvolvimento e segurança) encontram neste último texto a sua tradução prática mais urgente. Não haverá imaginação política possível enquanto o país insistir em tratar grandes projectos como milagres que dispensam trabalho e responsabilidade. A imaginação política nasce quando se aceita que nenhum recurso natural substitui instituições. E nenhuma instituição funciona onde a cidadania é reduzida ao silêncio, ao tumulto ou à humilhação pública. Sintomático em relação a tudo isto é que esta semana noticiou-se que o Presidente ia apresentar a primeira parte das suas reformas. O relatório ou documento estratégico que explica tudo isso está no segredo dos deuses. Não é um documento distribuído publicamente para discussão.
“Vamos trabalhar!” devia ser algo assim, portanto, uma teoria robusta de mudança, não apenas um slogan. Só que duvido que seja realmente formulada. Pode ser que o desafio não seja “fazer diferente”, mas a impossibilidade de as mesmas pessoas realmente “fazerem diferente”...
FIM
Sem comentários:
Enviar um comentário