Como aprender da crítica (1): o que quer dizer criticar?
Muita gente chama-me de crítico. Dizem-no às vezes como elogio, outras vezes como reprovação. Confesso que isso sempre me deixou desconfortável. Não é por modéstia porque eu sou tudo, menos isso. É mais por suspeita de que, quando usam a palavra, não sabem bem o que estão a dizer. E talvez eu próprio também não soubesse. Entre nós, “crítico” costuma significar alguém que só vê defeitos. Alguém difícil. Alguém que complica. Alguém que nunca está satisfeito. No limite, alguém mal-intencionado. Um desmancha-prazeres da vida pública. Cresci, intelectualmente, com essa conotação. E durante muito tempo evitei a palavra, como se ela carregasse uma espécie de falha moral.
O curioso é que a palavra não nasceu assim. Pelo contrário. A etimologia conta uma história muito diferente e muito mais exigente. “Crítica” vem do grego krínein (não falo grego, tive que consultar a etimologia). Significa separar, distinguir e julgar. É discernimento na sua forma mais básica. Não tem nada a ver, à partida, com atacar pessoas ou desqualificar intenções. Tem a ver com discernimento mesmo, isto é, com a capacidade de dizer isto sim, isto não, isto funciona, isto não funciona, enfim, isto é essencial, isto é acessório.
Da mesma raiz vem krísis. Crise. Também aqui a surpresa. Crise não é, originalmente, desgraça. É momento de decisão. O ponto em que já não é possível continuar como antes. O momento em que é preciso escolher um caminho. Avaliar. Assumir consequências. A ligação está na ideia de que criticar é o que permite atravessar uma crise sem cair no caos. Onde não há crítica, a crise não produz aprendizagem. Produz pânico. Ou autoritarismo. Às vezes os dois.
Talvez isto ajude a compreender a nossa esfera pública. Vivemos permanentemente em crise. Política. Económica. Institucional. Moral. Mas aprendemos pouco. Repetimos muito. Erramos de forma reincidente. Não porque faltem críticas, mas porque não sabemos o que fazer com elas. Entre nós, a crítica é quase sempre lida como ataque. Logo, a resposta é defensiva. Ou moral. Ou identitária. Ao invés de perguntar “o que posso aprender daqui?”, pergunta-se “quem está contra mim?”. O erro deixa de ser ocasião de melhoria e transforma-se em prova de lealdade. Defende-se a decisão, não se examinam os critérios que a produziram.
Assim, a crítica perde a sua função original. Deixa de ser um instrumento de discernimento e passa a ser algo que nos atrapalha apenas. Algo a neutralizar, a descredibilizar. Coisa para silenciar. O resultado é paradoxal, pois quanto mais se rejeita a crítica, mais frágil se torna aquilo que se quer proteger. Na filosofia e na ciência, a crítica nunca teve esse estatuto negativo. Pelo contrário. É o coração do processo de conhecimento. Criticar é testar limites. Ver até onde um argumento aguenta. Descobrir pressupostos escondidos. Evitar a confusão entre convicção e verdade. Sem crítica, não há aprendizagem. Há crença. Há autoridade. Há repetição. É por isso que até nem faz sentido falar de crítica construtiva ou destrutiva. O criticado é que tem tornar a crítica construtiva, só mais nada.
O problema começa quando importamos os símbolos da racionalidade, símbolos como discursos, relatórios, decisões solenes, mas rejeitamos a ética da crítica que lhes dá sentido. Infelizmente, fazemos isto com aquilo que há anos chamamos – um colega alemão e eu – de “produtos da modernidade”. Queremos governar, mas não queremos explicar. Queremos decidir sem termos de justificar. Queremos estabilidade, só que o discernimento não é connosco. Mesma coisa com veículo automóvel, outro produto da modernidade. Queremos chegar mais rápido, mas não respeitamos as regras de trânsito.
Daí a ironia. Chamamos “crítico” – naquele sentido negativo – a quem tenta pensar melhor, mas tratamo-lo como se fosse um inimigo. Chateamo-nos, rotulamo-lo de presunçoso, arrogante, sabichão, enjoado de tanto comer queijo suíço, beneficiário de quotas da diversidade, etc. E depois perguntamo-nos por que razão não melhoramos. Por que razão as mesmas falhas regressam. Por que razão cada crise parece sempre nova, mesmo quando é velha. Por isso, talvez seja tempo de reabilitar a palavra. Não reabitá-la como virtude moral, mas como competência cívica. Criticar não é destruir. É tornar visível. Nem é humilhar. É clarificar. Muito menos é paralisar. É preparar decisões melhores.
Se assim for, e acho mesmo que é, então ser chamado de crítico não é insulto. Passa a ser responsabilidade. E a crítica deixa de ser um problema da esfera pública para ser uma das poucas saídas que ela ainda tem.
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