quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Como aprender da crítica (3): aprender antes de defender para melhorar

 Elisio Macamo

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Como aprender da crítica (3): aprender antes de defender para melhorar
Antes de avançar para exemplos concretos, quero recuperar uma memória de longa data. No período imediatamente a seguir à independência, quem é desse tempo sabe, falava-se muito de crítica e auto-crítica. A expressão era recorrente. Fazia parte do vocabulário político. Soava, pelo menos em teoria, a exercício de responsabilidade colectiva. Essa linguagem vinha da tradição marxista. Para Marx, a crítica não era insulto nem negação sistemática. Era um acto filosófico. Criticar significava revelar contradições (termo caro aos marxistas), expor pressupostos, mostrar onde uma prática traía os seus próprios fins. A crítica era, antes de mais, um instrumento de aprendizagem histórica.
Nesse sentido, Marx herda directamente a tradição filosófica que já referi antes, sobretudo Kant. A crítica como exame das condições de possibilidade. Como recusa do dogmatismo. Como trabalho paciente de clarificação. Nada disso tinha a ver com gritaria, lealdade cega ou obediência ritual dos nossos dias. O problema é que entre nós a crítica e a auto-crítica nunca se tornaram prática efectiva. Tornaram-se fórmula. Palavra de ordem, assim tipo ritual discursivo. E isso não foi um acidente. Teve uma causa política muito concreta que foi a veia autoritária que rapidamente se impôs e que transformou a unidade em seguidismo. E que continua entre nós.
Onde há seguidismo, a crítica é perigosa. Onde a obediência é virtude, o discernimento é suspeito. A crítica passa a ser tolerada apenas como encenação controlada. A auto-crítica transforma-se em confissão pública, não em revisão de critérios. Aprende-se a falar de crítica sem jamais aprender com ela. Essa herança pesa até hoje. Talvez mais do que gostamos de admitir. Quando hoje se critica uma decisão, um discurso ou uma política, o reflexo não é perguntar o que pode ser melhorado. É defender. Defender a intenção. Defender o líder. Defender o lado. Defender a história. Defender-se.
Aqui está o ponto central do que tento reflectir nesta série. Defender antes de aprender é bloquear a melhoria. A defesa pode ser legítima. Mas só depois da crítica ter cumprido a sua função. Só depois de se ter examinado seriamente o que está a ser posto em causa. Só depois de se ter distinguido o que falhou do que deve ser preservado. Aprender da crítica não significa dar razão a quem critica. Significa usar a crítica como espelho. Um espelho incómodo, por vezes distorcido, mas ainda assim revelador. Perguntar o que é que esta crítica torna visível que eu não vi. Que pressuposto estava errado? Que explicação faltou? Que consequência não foi antecipada?
Por exemplo, há duas respostas possíveis à crítica feita pela funcionária alfandegâria, todas elas típicas. Aquela senhora pode ser enfernizada no cumprimento de ordens superiores. Ou o governo pode decidir acabar com os privilégios de portadores de passaporte diplomático. Isso não é saber reagir à crítica. Significa que não houve nenhum exame. Responder à crítica seria re-avaliar todo o propósito das cobranças aduaneiras, se, como a funcionária deixou transparecer – e de forma que me parece equivocada – consiste em arrecadar renda para o Estado. A renda devia ser um efeito apenas, mas o propósito tem que ser político. É como transformar o propósito dos tribunais na arrecadação da renda pelos casos julgados. Portanto, a crítica é um espelho.
E melhorar é exactamente isso. Não é mudar de posição a cada vento. É reduzir a distância entre aquilo que se quis fazer e aquilo que efectivamente aconteceu. É afinar critérios. É ajustar decisões futuras. É tornar a acção pública mais inteligível, mais responsável e mais robusta. Sem esse movimento, a política entra num ciclo estéril. Crítica suscita defesa. Defesa suscita endurecimento. Endurecimento suscita nova crítica. Nada se transforma. Tudo se repete. A crise deixa de ser ocasião de aprendizagem e torna-se estado permanente. Por isso, insistir em aprender antes de defender não é ingenuidade. É realismo político. Governos que aprendem da crítica governam melhor. Oposições que aprendem da crítica tornam-se alternativas credíveis. Instituições que aprendem da crítica constroem memória, não apenas poder. A crítica e a auto-crítica da Frelimo gloriosa não funcionou, apesar das boas intenções e do seu sustento filosófico forte, porque foi pervertida.
Nos próximos textos, quero mostrar como isto funciona na prática. Não em abstracto, nem em teoria, mas a partir de casos concretos, de críticas reais, decisões reais e erros reais. E a pergunta que quase nunca fazemos é sobre o que podemos aprender daqui para fazer melhor da próxima vez. É essa pergunta, e não a escolha de lados, que decide se uma crise nos faz crescer ou apenas nos cansa.

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