quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Sobre a imaginação política (2)

 Elisio Macamo

Sobre a imaginação política (2)
O fim da ajuda sueca e a pobreza da nossa leitura do mundo
A decisão da Suécia de encerrar a cooperação bilateral com Moçambique, tal como a recente retirada das garantias britânicas ao financiamento dos projectos de gás, parece ter apanahdo o país desprevenido. A reacção pública tem sido marcada por surpresa, indignação e interpretações moralizadas que oscilam entre a acusação de traição histórica e a suspeita de agendas ocultas contra o nosso desenvolvimento. Mas o facto de termos sido surpreendidos diz mais sobre nós do que sobre os suecos ou os britânicos. A questão central não é que a Suécia tenha saído, mas sim que Moçambique não tenha sabido prever a saída, interpretar os sinais, e enquadrar politicamente um acontecimento que faz parte do normal funcionamento de sistemas democráticos. Essa falha revela a insuficiência da nossa imaginação política.
O funcionamento dos sistemas políticos que hoje nos surpreendem é ditado por uma lógica de “accountability” que ainda não compreendemos plenamente. Nas democracias consolidadas, decisões de política externa, cooperação e financiamento não são tomadas em função de afectos históricos, discursos de solidariedade moral ou lealdades simbólicas. São decisões estruturadas por três elementos centrais, a saber, escrutínio público, competição política e responsabilidade perante contribuintes e eleitores. Quando uma democracia enfrenta uma alteração brusca no seu contexto, no caso, uma guerra na Europa, pressões orçamentais, mudanças de governo ou transformações na opinião pública, essas decisões ajustam-se. E ajustam-se rapidamente, sem necessidade de dramatização. A Suécia e o Reino Unido actuaram dentro desta lógica previsível de reavaliação de prioridades, resposta a pressões internas e tomada de decisões que, aos seus olhos, são politicamente responsáveis.
Nós, porém, sobretudo uma parte da nossa intelectualidade, interpretamos estas decisões a partir da gramática da soberania emocional, em que qualquer mudança externa é lida como julgamento moral, retaliação política ou abandono simbólico. Falhamos não por falta de inteligência, mas por falta de imaginação fundada na análise. A nossa incapacidade de distinguir entre política e moralidade leva-nos a projectar sobre os outros a lógica que usamos internamente. Já que entre nós as decisões públicas raramente respondem a constrangimentos institucionais e quase nunca são objecto de escrutínio real, presumimos que noutros lugares também não o são. Daí a surpresa e o ressentimento. Daí, também, a leitura moralista de acontecimentos que, para quem conhece sistemas democráticos, são rotineiros.
Seria menos grave se o problema fosse de interpretação. Só que não é. É também de estrutura mental. Entre nós, a política raramente é vista como sistema de relações, interdependências, incentivos e constrangimentos. É vista, sobretudo, como teatro, um espaço onde as palavras substituem as instituições e onde a vontade é tratada como capacidade. Esta forma de pensar torna-nos particularmente vulneráveis a leituras emocionais. Se a Suécia sai, é porque “nos traiu”; se o Reino Unido retira garantias, é porque “não quer o nosso desenvolvimento”; se a Europa muda de prioridades, é porque “despreza a África”. Não há aqui qualquer esforço de análise, há apenas uma moralização que conforta ao mesmo tempo que nos impede de compreender.
Esta moralização denuncia a fraqueza da nossa imaginação política. Porque imaginar politicamente não é fantasiar futuros idealistas, mas sim compreender a estrutura de relações em que estamos inseridos. É antecipar tendências, ler sinais, avaliar riscos e reconhecer que países, tal como pessoas, tomam decisões em função daquilo que os constrange. A Suécia não abandonou Moçambique. Ela reposicionou-se geopoliticamente num momento em que a Europa enfrenta uma crise de segurança sem precedentes. O Reino Unido não retirou garantias para humilhar o país. Retirou porque a sua política energética, ambiental e reputacional se transformou. Estes movimentos eram previsíveis, mas nós não os previmos. Não porque nos faltem dados, mas porque nos falta uma cultura política que valorize o método e a análise.
A pobreza da nossa leitura do mundo exprime-se, sobretudo, no facto de reagirmos apenas depois dos acontecimentos, como quem acorda com o impacto e tenta recuperar dignidade através de indignação. Reagir quando já é tarde demonstra falta de visão e demonstra também falta de imaginação. A imaginação política é aquilo que permite transformar acontecimentos externos em informação útil, e não em feridas simbólicas. É aquilo que impede que sejamos surpreendidos pelo óbvio. É aquilo que nos permite preparar o futuro em vez de lamentar o presente.
As decisões sueca e britânica podiam ter funcionado como alarmes, não da má-fé dos outros, mas da fragilidade das nossas instituições e do lugar incerto que ocupamos no mundo. Perderemos essa oportunidade se continuarmos a interpretar políticas públicas como agressões morais e relações internacionais como amizades de infância. O mundo não funciona assim. E, enquanto insistirmos em vê-lo como funciona apenas na nossa imaginação emocional, estaremos sempre desprevenidos. A imaginação política serve precisamente para traduzir o mundo real em possibilidade de acção.
Estas decisões externas obrigam-nos a confrontar a nossa própria falta de método assim como a nossa tendência para moralizar o que devia ser analisado. Se a soberania real for realmente tema entre nós, então vamos ter de abandonar o hábito da indignação e adoptar o da compreensão. Só assim seremos capazes de prever e agir. E só assim a ajuda que se retira deixaria de ser perda e passaria a ser aprendizagem.

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