quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Como aprender da crítica (4): o que um informe do Estado da Nação pode ensinar à Presidência

 Elisio Macamo

15 h 
Como aprender da crítica (4): o que um informe do Estado da Nação pode ensinar à Presidência
Quando critiquei o último informe sobre o Estado da Nação, a reacção foi previsível. Houve quem entendesse a crítica como desvalorização do esforço. Houve quem a lesse como oposição disfarçada. Houve até quem a tomasse como má vontade. Poucos se detiveram na questão central que tentei colocar e que consistia na seguinte pergunta: que problema é que o informe identifica como sendo o problema do país? A minha crítica foi simples e, creio, factual. O informe tratou o problema do país como sendo essencialmente económico. Crescimento, indicadores, projectos, expectativas. Fê-lo num tom optimista, quase pedagógico. Mas, ao fazê-lo, repetiu um padrão antigo. Um padrão que já conhecemos demasiado bem. Os anteriores informes terminaram também com palavras de confiança. E, no entanto, a situação do país continuou a deteriorar-se.
Este é o ponto onde a crítica pode, e deve, ser usada para aprender e melhorar. O problema central do país não é económico. É político. E enquanto os informes evitarem esse diagnóstico, continuarão a ser exercícios de descrição optimista, não instrumentos de orientação política. Dizer que o problema é político não é um slogan. É constatação. Trata-se dum problema de confiança, de autoridade legítima, de funcionamento das instituições, de previsibilidade das decisões, de relação entre governantes e governados, etc. Nenhum indicador económico compensa a fragilidade política. Pelo contrário, a fragilidade política corrói qualquer ganho económico.
O que poderia a Presidência aprender desta crítica? Antes de mais, que um informe do Estado da Nação não é um relatório de desempenho sectorial (sei que vai ser difícil tirar isto da cabeça da nossa classe política e dos funcionários do Estado). É um acto político maior. O seu valor não está na enumeração do que foi feito, mas na capacidade de nomear o problema real do país, mesmo quando esse problema é incómodo. Especialmente quando é incómodo. Aprender aqui significaria reconhecer que a população não está apenas preocupada com números, mas com sentido. Não apenas com projectos, mas com direcção. Não apenas com promessas, mas com critérios claros de decisão e de responsabilização. Um informe que ignora isso pode ser tecnicamente correcto e politicamente falho.
E como melhorar concretamente? Melhorar não requer dramatizar nem confessar culpas abstractas. Requer, isso sim, maturidade política, por exemplo, assumir que há um défice político estrutural e dizer como se pretende enfrentá-lo. Não com palavras genéricas, mas com compromissos inteligíveis. Que tipo de relação o Presidente quer estabelecer com a crítica pública? Que papel atribui à oposição? Que significado dá à discordância? Como entende a responsabilidade política para além da eficiência administrativa?
Suponhamos, então, que a Presidência quisesse aprender desta crítica, mesmo discordando dela. O que poderia fazer, de forma concreta, sem dramatismo e sem abdicar da sua autoridade? O primeiro passo seria interno e silencioso. Antes de reagir publicamente, a Casa Civil e os assessores do Presidente poderiam tratar a crítica como dado de trabalho, não como ruído político. Não para saber quem criticou, mas o que foi dito. Separar intenções de argumentos. Isolar a tese central, portanto, sobre se o diagnóstico apresentado é político ou económico. E perguntar, com honestidade institucional, se essa distinção foi suficientemente clara no informe.
O segundo passo seria de tradução. Traduzir a crítica para a linguagem da decisão. O que significa, na prática, “problema político” no contexto do informe? Falta de explicitação de critérios? Ausência de assunção de conflitos reais? Confusão entre desempenho governativo e liderança política? Este exercício não exige concordância, exige discernimento, que é o que a crítica solicita.
O terceiro passo seria comparativo. Confrontar o informe com os anteriores. Não para repetir justificações, mas para identificar padrões. Que tipo de diagnóstico se repete? Que tipo de fecho optimista é recorrente? Que expectativas cria e que frustrações produz? Aqui, aprender significa construir memória institucional, algo que raramente existe quando cada discurso é tratado como evento isolado.
O quarto passo seria estratégico. Perguntar se o informe está a cumprir a sua função política maior. Não a de informar apenas, mas a de orientar. Um acto de liderança não se mede apenas pelo tom confiante, mas pela capacidade de preparar o país para escolhas difíceis. Se a crítica aponta para um défice nesse ponto, ignorá-la não protege o Presidente. Expõe-no.
O quinto passo seria comunicacional, mas num sentido exigente. Não responder à crítica com defesa genérica, mas com clarificação. Mesmo mantendo o desacordo, a Presidência poderia explicitar por que razão optou por um enquadramento económico e não político. Tornar visíveis os critérios. Mostrar que a escolha foi deliberada, não automática. Isso, por si só, já seria aprendizagem institucional.
Nada disto implica admitir erro. Implica apenas reconhecer que a crítica pode ser usada como instrumento de afinação. Uma Presidência que aprende da crítica não se fragiliza. Mostra maturidade. Mostra que governa com critérios e não apenas com reflexos. O optimismo, quando não é sustentado por um diagnóstico político sério, transforma-se rapidamente em barulho. Não mobiliza, nem convence, muito menos orienta. E, sobretudo, não melhora nada. A crítica a este tipo de informe não pede menos ambição. Pede mais verdade política.
A crítica cumpre a sua função neste quesito mesmo. Não para desautorizar o Presidente. Mas para lhe oferecer uma oportunidade rara de transformar um ritual anual num instrumento real de aprendizagem institucional. Um informe que reconhece o problema político do país não fragiliza a Presidência. Pelo contrário. Fortalece-a, porque mostra que sabe distinguir entre o essencial e o supérfluo. Aprender da crítica, neste caso, significaria aceitar que o país não precisa apenas de esperança. Precisa de orientação política clara. E melhorar significaria usar o informe como aquilo que ele deveria sempre ter sido, a saber, um acto de liderança responsável, não um exercício de tranquilização.
No próximo texto, aplicarei esta mesma lógica a uma decisão ainda mais sensível, onde a crítica costuma ser rapidamente silenciada em nome da urgência. Refiro-me à decisão sobre segurança e a presença de forças estrangeiras. A pergunta será a mesma, nomeadamente o que se poderia aprender da crítica para decidir e explicar melhor.
Por enquanto, Boas Festas!

Sem comentários: