A Academia de Pesquisa e Desenvolvimento Sustentável convidou-me a participar num bate-papo subordinado ao tema: Guerra, Paz e Construção do Estado democrático em Moçambique. Teve a moderação de Alcides André de Amaral e contou com a participação de Ercílio Langa, Hélder Pires Amâncio e Eduardo Buanaissa. O que se segue é o que eu disse:
Se a resposta é Nyusi
O País precisa mais do que nunca de gente que reflecte sobre o que acontece e interpela criticamente o que se faz em nosso nome. Moçambique é uma república, logo, o que define o nosso País é a nossa condição de cidadãos. O País só existe se nós exercermos a cidadania, portanto, se nós formos nós. É importante que mais gente assuma esta responsabilidade, não é apenas um direito.
Vou abordar dois assuntos. Um é um reparo geral sobre como abordar um País como o nosso. O outro é um início de reflexão sobre o que eu acho ser o verdadeiro problema que nos devia preocupar. O reparo chega a ser trivial, mas é importante fazê-lo. O que acontece em Cabo Delgado, o que tem vindo a acontecer em Manica, sobretudo a longa relação conflituosa entre o Estado e a Renamo, as dívidas ocultas, os raptos em Maputo, etc., tudo isto é normal. Anormal é pensar que um País que se tornou independente há meio século e da forma como o fez, isto é com uma guerra anti-colonial inspirada em ideias revolucionárias, um País vizinho do colosso da África do Sul com o grande problema do Apartheid, um País dotado de recursos naturais sem meios próprios para os explorar, um País dependente do auxílio ao desenvolvimento, etc., portanto, que um País assim fosse ter uma história calma e harmoniosa directamente extraída dum conto qualquer de fadas que termina: “e depois da independência, viveram felizes para todo o sempre”.
Infelizmente, as coisas não assim. Podem ser diferentes, claro, mas o que nós como académicos devemos esperar, aquilo com o qual devemos contar é justamente isto que está a acontecer. Com isto quero essencialmente dizer duas coisas. A primeira é que nem sempre o que corre mal é resultado do que os nossos governantes fazem mal. Pode ser, claro, mas nem sempre é isso. Na maior parte das vezes, o que corre mal ia correr mal de qualquer maneira e o único que podemos fazer, se quisermos responsabilizar os nossos governantes, é culpá-los por omissão. O facto de haver guerra em Cabo Delgado não significa necessariamente que tenhamos maus governantes. Significa essencialmente que somos um País vulnerável e essa vulnerabilidade é típica de condições estruturais que deviam estar sempre presentes na análise.
Incomoda-me a forma como nos servimos acriticamente de conceitos das ciências sociais como armas normativas. Ao invés de usar os conceitos para procurar entender o que se passa, usamo-los para julgar. Por exemplo, eu já não posso mais ler – mas tenho que o fazer – trabalhos académicos que procuram explicar a violência em Cabo Delgado com recurso à ideia de que se trata de jovens marginalizados pelo Estado. Claro que há elementos disso, só que a marginalização é uma manifestação da fragilidade do nosso Estado e, portanto, recorrer a essa explicação é completamente circular. Infelizmente, as ciências sociais têm sempre este hábito de explicar algo que não está bem com recurso às propriedades desse mal-estar. É o que torna uma boa parte da ciência do desenvolvimento inútil. É como explicar a pobreza com recurso às propriedades dos pobres (são desempregados, não têm habitação, comem mal). Conflitos como o de Cabo Delgado não são as causas da nossa pobreza. São a sua manifestação.
A segunda coisa que quero dizer é que a nossa abordagem do País não pode se basear nos resultados. Os resultados enganam. Se forem bons, levam-nos a pensar que fizemos tudo bem. Se forem maus, levam-nos a pensar que fizemos tudo mal. Não é assim que devia ser. Muitos resultados são obra do acaso, infelizmente, isto é daquilo que é contingente. E isso tem a ver com a natureza da vida social e política. São tantos os factores que não existe, realmente, ciência que possa dar conta de tudo. O que me parece fundamental é prestar atenção, e avaliar, o que se faz para que as coisas que queremos que aconteçam, realmente aconteçam dentro dos limites do contingente. Temos sempre que olhar para a qualidade dos meios, isto é das condições que se criam. Isto porque no fundo a vida é isso. Ela é a criação constante de condições para tentarmos chegar onde queremos chegar. Nisso sofreremos revezes, mas saberemos onde consertar.
Isto leva-me à segunda coisa. O título deste post corresponde a um truque filosófico chamado “reductio ad absurdum”. Perguntei-me a mim próprio para que problema é que Nyusi foi a resposta. Quando digo Nyusi, não me refiro à pessoa em si, mas sim à máquina política que o colocou no poder. Se Nyusi foi a melhor resposta para seja qual for o problema que foi colocado, então é urgente que a gente entenda melhor esse problema, pois ele é que é o nosso principal problema, não a aparente incompetência do governo na abordagem de Cabo Delgado. Como sei que andam “screen-shoteiros” por aqui – que já ganharam o dia com o título – apresso-me a dizer que não me interessa discutir a pessoa de Nyusi em si. Sei de pessoas que privaram com ele e que dizem que é uma excelente pessoa. Apoei-o nas duas vezes que se fez eleger e se houvesse terceiro mandato apoia-lo-ia. E isso é parte do problema.
Cada vez mais, somos obrigados a nos contentar com o mal menor. E esse mal menor não é Nyusi, mas sim o processo que produz como candidato uma pessoa que não se ofereceu para tão nobre posto e, por isso, não foi para lá com um projecto político. Foi para lá para cumprir o projecto político elaborado por outros dentro dum sistema, contudo, que atribui à pessoa que está à frente qualidades supernarturais empoladas ainda mais pelos poderes exagerados que a nossa Constituição atribui ao Chefe do Estado. O resultado disto é o que vemos. Quem o devia assessorar, portanto, a Comissão Política, o Comité Central e as pessoas que trabalham com ele directamente, traduzem o seu papel num acto de manifestação de apoio incondicional ao líder. Isto, por sua vez, atrofia o debate ao mesmo tempo que polariza o ambiente político, pois a validade do que se diz mede-se pelo alinhamento ou não. Não há como construir um País nestas condições.
Pior ainda, essa polarização limita o exercício da cidadania. E esse é que é, realmente, o verdadeiro desafio. Há muito que o País precisa dum projecto de promoção de cidadania, aliás, Moçambique só é Moçambique se for um projecto de cidadania. Pensar Moçambique como um projecto de cidadania significa fazer política que não está focalizada apenas em resultados materiais descritos pelo termo desenvolvimento. Significa fazer política apostada na criação de espaços de exercício de cidadania, isto é avaliar a qualidade do que se faz com base no contributo que isso dá à promoção da cidadania. Este é, para mim, o problema de Cabo Delgado, razão pela qual eu dizia que se quisermos culpar o governo pelo que lá acontece, deve ser por omissão.
Em que é que consistiu essa omissão? Ela consistiu na sua incapacidade de abordar o problema como um desafio político. Quando houve aquele primeiro ataque a um posto policial precisamente há três anos, a primeira coisa que eu disse foi que aquilo representava uma escalada, pois ninguém do nada ataca um posto policial. Sei que muita gente não gosta do Nuno Rogeiro, o autor do Cabo de Medo. Eu também não, mas ele foi uma das poucas pessoas que descreveu muito bem o contexto da insurgência. E o que se destaca na sua descrição não é exactamente a falta de oportunidades económicas, ainda que estas sejam importantes. É a total ausência de sensibilidade política que deixou a cidadania a mercê da acção arbitrária das autoridades, incluindo naturalmente da polícia, dentro do contexto duma cultura política nacional que não se funda na promoção da cidadania como bem maior. O nosso Estado é um Leviatão cínico, isto é que não tem segurança a oferecer, apenas a promessa de um dia o fazer se quem teve o infortúnio de cair sob a sua alçada tiver também a paciência de aguardar e, acima de tudo, não atrapalhar enquanto o Leviatão cria condições para cumprir a promessa, um dia.
Daí o silêncio sepulcral do Presidente em relação a Cabo Delgado, um silêncio que não reflecte necessariamente a sua consciência de que provavelmente não temos meios militares e humanos suficientes para lidar com o conflito, mas sim reflecte o desprezo que ele – e toda a classe política moçambicana (e isto sem nenhuma excepção, pois nem mesmo a oposição faz seja o que for para interpelar o governo) – portanto, o desprezo que ele tem pelos cidadãos que ele representa. Aqui, de novo, o seu silêncio não é apenas seu. É também de quem o podia aconselhar a fazer melhor, mas não o faz e prefere ser cúmplice do desrespeito. Daí também a aposta que ele faz numa solução técnica, isto é, militar, pois é sempre aquela coisa de que com um bocado de sorte vamos resolver o problema e não precisaremos de dar satisfação a ninguém. É por isso que gostam de celebrar pequenas vitórias no terreno, ficam animados a pensar que já ultrapassaram os problemas. Tenho as minhas dúvidas quanto a isto. Receio, até, que Cabo Delgado cresça ainda mais e se estenda ao resto do País perante o olhar impávido e sereno de quem jurou defender a constituição.
Uma última palavra. Há um conceito da autoria de Aristóteles, frônese, que me vem sempre à cabeça quando penso nisto. Frônese é um saber prático que consiste na capacidade de pensar bem sobre o bem comum. Aristóteles dizia que essa é a qualidade que todo o governante devia ter e cultivar. É precisamente o que nós não temos em Moçambique, ou melhor se a resposta à pergunta sobre quem, dentre todos os moçambicanos, pensa melhor sobre o bem comum é Nyusi, então já dá para ver o tamanho do problema que o País tem de resolver. E quando digo Nyusi, repito, não me refiro à pessoa, refiro-me à toda a máquina que o colocou no poder, eu incluído.
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