Manuel Vieira Pinto (1923-2020): Deus não precisa que o defendam, as pessoas sim
Vieira Pinto com uma criança ao colo: um gesto como este provocou o primeiro escândalo do bispo à sua chegada a Nampula, em 1967. Foto © Arquivo da revista Além-Mar.
Contestou o regime colonial e isso valeu-lhe a expulsão de Moçambique, para onde tinha ido como bispo católico de Nampula. Voltaria depois da independência, mas nunca deixou sossegado o novo poder, que também acusou de não respeitar os direitos humanos e a o qual pediu para negociar com a oposição armada. Começara por se dedicar a defender a renovação da Igreja, pugnando “por um mundo melhor”. Manuel Vieira Pinto morreu nesta quinta-feira, 30 de Abril.
A história era contada por ele uma vez por outra, a pessoas amigas ou em pequenos grupos, nas poucas vezes que vinha a Portugal: quando aterrou em Nampula, a 24 de Setembro de 1967, depois de cumprimentar autoridades, colonos e meninas (brancas) do colégio religioso da cidade, dirigiu-se aos moçambicanos, colocados do lado de fora: cumprimentou-os um a um e, escândalo dos escândalos, tomou um bebé nos braços e beijou-o.
Esta seria apenas a primeira de muitas indignações que Manuel Vieira Pinto, que chegava como bispo católico da diocese, provocava em Moçambique. O antigo bispo morreu quinta-feira, 30 de Abril, às 20h, na casa do clero do Porto, onde residia há vários anos. Foi a enterrar nesta sexta, 1 de Maio, em Aboim (Amarante), a sua terra natal. Tinha 96 anos.
Aquele 24 de Setembro era domingo, duplo dia de festa, portanto, com a cerimónia de acolhimento ao novo bispo. Vieira Pinto registaria depois a história no seu caderno de apontamentos, com pormenores dignos de sequência cinematográfica. Essas notas seriam coligidas depois, a par com os seus documentos mais importantes, na antologia D. Manuel Vieira Pinto – Cristianismo: Política e Mística, coordenada por Anselmo Borges (ed. Asa, 1992).
Quando saiu do pequeno avião turbo-hélice, o bispo era aguardado, no lado de dentro do terminal, pelas “pessoas graúdas da terra, as autoridades, os missionários”: governador do distrito, presidente da Câmara, governador da diocese, colonos conhecidos, responsáveis eclesiásticos… E ainda, em duas filas, “as meninas do Colégio de Nossa Senhora das Vitórias com suas fardas e bandeiras”. Brancas, já se vê.
A todos D. Manuel saudou: autoridades, meninas do Colégio, população branca, missionários… Voltou-se então para o lado de fora da pequena aerogare, onde a população moçambicana o aguardava. “Havia uma longa bicha de africanos, homens e mulheres, estas com os seus trajes coloridos e com os filhos às costas e envolvidos por capulanas lindamente apertadas junto ao peito”, escreveu o bispo.
Dirigiu-se a todos eles e a todas elas, cumprimentando cada pessoa, uma por uma. “Este meu gesto causou na população branca uma certa admiração e comentários que não entendi. O escândalo surgiu quando tomei nos braços um bebé africano e o beijei, entregando-o à mãe que me olhava admirada e reconhecida. Nessa altura ouvi a reacção do governador do bispado e notei que havia chocado a população branca”, recorda. “Dei-me conta da trágica distância entre brancos e negros, senti a marginalização dos africanos e a hipocrisia racial dos brancos, descobri que um longo caminho de escândalo me esperava”, acrescenta, na obra citada. Não se enganaria.
O bispo ia “para ficar”, dizia, num tempo que era ainda de poder colonial. A Frelimo iniciara, três anos antes, a sua luta de guerrilha contra o governo português. Vieira Pinto chegara a terreno minado e as minas rebentariam sucessivamente, à sua frente, atrás e dos lados. Antes do 25 de Abril contra o Estado Novo e o colonialismo, depois da independência contra o poder totalitário que novamente levaria dissidentes à prisão e à tortura. Sempre na convicção de que o importante era defender as pessoas, porque Deus não precisa.
Renovação, justiça, reconciliação
Vieira Pinto era um home próximo das pessoas e que desejava a renovação da Igreja e das comunidades. Foto © Arquivo da revista Além-Mar.
Quando chegou a Nampula, já Vieira Pinto levava consigo o perfil de alguém apaixonado pela renovação. Nascido a 9 de Dezembro de 1923, em Aboim (Amarante), Manuel da Silva Vieira Pinto foi ordenado padre no Porto a 7 de Agosto de 1949. Desempenhou tarefas em paróquias (Campanhã, Cedofeita), foi assistente da Acção Católica e director espiritual do Seminário Diocesano do Porto.
Em 1960, vai passar alguns meses a Roma, com o objectivo de conhecer o Movimento por um Mundo Melhor (MMM), um dos dinamismos de renovação que, nessa altura, estimulavam o catolicismo. Foi nesse movimento que, com o padre Victor Feytor Pinto que também esteve em Roma, dinamizou um conjunto de actividades pugnando pela renovação da Igreja, durante e na sequência do Concílio Vaticano II (1962-65).
“Com ele trabalhei, depois, seis anos, a anunciar o Concílio”, afirmou o padre Feytor Pinto à Ecclesia, reagindo à notícia da morte do colega. “Toda a Teologia do Concílio era para mim uma extraordinária revolução e uma verdadeira revelação de Deus e de Jesus Cristo”, acrescentou.
Nesses anos e nessa actividade, ficaram famosas várias conferências em que Vieira Pinto enchia salas, auditórios e mesmo o Pavilhão de Desportos, em Lisboa (hoje Pavilhão Carlos Lopes), e o Palácio de Cristal, no Porto. Renovação da vida cristã, justiça social e reconciliação entre povos e nações eram as mensagens centrais do MMM, surgido em Itália, no pós-guerra, fundado pelo jesuíta Riccardo Lombardi.
Pecados que saltavam à vista
Em 27 de Abril de 1967, Vieira Pinto foi nomeado para bispo da nova diocese de Nampula e ordenado a 29 de Junho seguinte. Ficaria no lugar até Novembro de 2000, depois de o Papa João Paulo II ter aceite a sua resignação, apresentada em 1998, nomeando o bispo Tomé Makhweliha para o suceder.
Depois do episódio do escândalo no aeroporto, e ainda em 1967, os oficiais do Exército e o Movimento Nacional Feminino convidaram o bispo para que celebrasse uma missa em memória dos militares portugueses mortos em combate. Vieira Pinto aceita, acrescentando que lembraria também os mortos dos movimentos de guerrilha, “visto que para a Igreja não havia inimigos”.
“Esta minha observação causou uma certa surpresa. E a surpresa tornou-se escândalo quando, na homilia, afirmei, entre outras coisas, que a guerra era um mal e uma fonte de males e que a paz jamais viria das armas”.
Racismo e guerra seriam os dois temas em que centraria a sua atenção na missão em Nampula, depois de ter dado conta, nos contactos com as populações locais, de que os moçambicanos viviam oprimidos “por violências de vária ordem”.
Nessas visitas, o racismo latente saltava à vista: “Era evidente que nas relações do bispo e dos brancos com os negros havia uma forte mentalidade racista”, notava D. Manuel. “A discriminação racial, a falta de respeito pelo homem negro, a ausência total de convivência entre brancos e negros, a falta de diálogo do bispo com os seus cristãos em maioria negros, eram pecados que saltavam imediatamente à vista”.
D. Manuel a celebrar uma eucaristia: “A discriminação racial, a falta de respeito pelo homem negro, a ausência total de convivência entre brancos e negros eram pecados que saltavam imediatamente à vista.” Foto © Arquivo da revista Além-Mar.
Solução é acção política
As tensões foram crescendo e, em Janeiro de 1974, verteu-se a última gota de paciência das autoridades coloniais e do governo ditatorial de Marcello Caetano.
Na carta pastoral Repensar a guerra, publicada nesse mês, diz que o conflito em Moçambique é “uma guerra que não queremos”, perguntando pelas suas causas e falando de mentiras e violência e do direito à autodeterminação.
A guerra colonial, dizia, surgira da “tomada de consciência dos povos ontem dominados por sistemas coloniais e hoje em busca progressiva de uma justa e efectiva emancipação”. E, ainda, do “reconhecimento da dignidade do homem e do povo de Moçambique e das iniciativas que dêem conteúdo e expressão real aos direitos inerentes a uma justa e progressiva autodeterminação”. O que obrigava a “colocar a solução do conflito mais na acção política do que na força das armas”.
Pouco mais de um mês depois, a 12 de Fevereiro, o bispo, juntamente com os Missionários Combonianos que trabalhavam na diocese – publica o Imperativo de Consciência, uma carta em que defende a autonomização da Igreja e das estruturas missionárias em Moçambique.
As consequências não se fariam esperar: a 10 de Abril, D. Manuel é expulso da diocese e, quatro dias mais tarde, o governo força-o a sair de Moçambique, regressando a Lisboa.
“Porque nunca me fala de Deus, mas do povo?”
Onze dias depois do início do exílio forçado, o Movimento das Forças Armadas depõe o governo de Caetano e começa o processo de descolonização das colónias portuguesas. Em Janeiro de 1975, D. Manuel regressa a Moçambique. Mas não acabariam as razões para o bispo se calar.
Respeitado por Samora Machel, precisamente pelo papel que assumira na denúncia do racismo e da guerra colonial, Vieira Pinto encontra-se com o já Presidente de Moçambique em Janeiro de 1976, meio ano depois da independência do país. Dois meses mais tarde, em carta, retoma um dos temas da conversa: os campos de reeducação criados pela Frelimo não estariam a cumprir os objectivos para os quais tinham sido criados.
Em sucessivos encontros e cartas enviadas a Samora Machel, D. Manuel volta à denúncia do que considera serem os novos atentados à dignidade humana: falta de liberdade individual e religiosa, prisões arbitrárias, erros e violência do sistema. A partir de 1980 – explica Anselmo Borges na antologia citada – as entrevistas de D. Manuel com Samora passam a focar essencialmente o tema da guerra civil, que entretanto estalara no país.
Em Janeiro de 1984, dez anos depois do documento que lhe valera a expulsão de Moçambique, Vieira Pinto assina A Coragem da Paz, onde pede que Governo e Renamo “se empenhem com coragem e decisão, com espírito de serviço ao bem integral do povo e da nação, na construção da paz, hoje e aqui”.
“Já no final da sua vida, era o próprio Presidente Machel que lhe falava da violência e da desumanidade do sistema”, sintetiza Anselmo Borges na apresentação da antologia citada. Numa entrevista em Maio de 1984, o bispo pede, em nome do povo, ao seu Presidente o gesto de negociações com a Renamo. “Não, não, não me peça uma coisa dessas”, responderia Samora. Insistindo na ideia, Vieira Pinto conta: “O Presidente olhou-me, deixando transparecer a luta que lhe ia no espírito e perguntou-me: ‘com quem vou falar’?. Respondi: ‘Eu não sei, Presidente. Não sou político nem tenho meios políticos que me permitam saber quem são os responsáveis’”.
D. Manuel ajudaria, de novo, ao caminho pela paz e pela reconciliação e apoiaria discretamente as negociações que culminariam com o Acordo Geral de Paz, de 1992. Nesse mesmo ano, o Presidente Mário Soares decide condecorá-lo com a Ordem da Liberdade.
Um dia, Samora Machel voltar-se-ia para ele a perguntar: “Porque é que você, que é bispo, quando vem falar comigo, nunca me fala de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?”. Manuel Vieira Pinto respondeu: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que o defendam. O homem sim”.
(O texto recolhe excertos de um artigo publicado no Público em 1992; nos dias 2/3 de Maio, o 7MARGENS publicará vários testemunhos sobre a figura de Manuel Vieira Pinto e comentários à sua morte)
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