UMA
EXPLICAÇÃO
A escalada do
terror em Moçambique teve a conivência da Imprensa desde aprimeira hora, ainda
antes da independência do país. Familiarizei-me com essacerteza e o primeiro
título dado a esta reportagem foi «OS PRAVDAS DEMOÇAMBIQUE» — devido ao facto
dos jornais moçambicanos, dominadospelo Governo de Transição, e depois pelo
definitivo, se assemelharem, no espíritoe tendências, ao «PRAVDA» moscovita —
optando, a seguir, por «AESCALADA DO TERROR». Mesmo assim, tornava-se
necessário descrever,pois era o factor dominante de grande parte das situações,
o ambiente dasRedacções moçambicanas, retratando, com a maior nitidez, o estado
psicológicodos jornalistas portugueses que preenchiam os quadros redactoriais.
Coloqueiem foco o «Notícias da Beira» por me encontrar mais intimamente ligado
a este jornal, mas todas as minhas afirmações podem ser alargadas pelo leitor
aosrestantes órgãos da comunicação social moçambicana, por todos eles se
regerempela mesma batuta.Descrevendo o estado psicológico de cada um
destesprofissionais de Imprensanão tento, nem desejaria tentar, dar uma
possibilidade de busca de atenuantesao seu comportamento, mas sim,
desmistificá-lo. Os crimes por eles cometidos — e por cada um individualmente —
continuam crimes, por mais justificações quetentemos encontrar na ideologia
marxista-leninista em que basearamtropegamente os seus actos. Essa é a razão
por que dedico todas as páginas daPrimeira Parte deste volume ao ambiente
redactorial moçambicano, comoprólogo à verdadeira Reportagem sobre alguns dos
principais acontecimentosque ensombraram Moçambique, transformando a antiga
colónia portuguesa doIndico numa verdadeira pátria de terror.Queria, porém,
salientar que toda a actividade da Imprensa moçambicana foidirigida à distância
por alguns membros da Frelimo, os mesmos que, cuidadosae trabalhosamente, foram
moldando as ideias de Samora Machel — inicialmenteapolítico — pelas matrizes
moscovitas. E a actividade foi-lhes fácil.Bastou-lhes colocar nas direcções dos
jornais homens obedientes a Moscovo epreencher os quadros redactoriais com
jornalistas imaturos, ou veteranosoportunistas, afastando tacitamente quantos
podiam, de qualquer modo, voluntária ou involuntariamente, contrariar a conjura
comunista. SamoraMachel caiu no logro e foi fácil acomodar nas Redacções
jornalistasmercenários, bastando para tanto acenar-lhes com posições de
destaque. Estavaencetado o caminho que facilitaria a estratégia conducente à
vitória doimperialismo soviético na África Austral.Os factos descritos são
reais na totalidade. Ou foram recolhidos na minhaexperiência profissional, ou
retirei-os de depoimentos de gente idónea, sempreavalisados por nunca menos de
três testemunhas dignas de crédito. Deles o leitorpode colher as ilações que
lhe aprouver, não sendo, porém, minha intenção devoltar contra o povo
moçambicano a repulsa ou a má vontade do leitor.No seu livro sobre o
anarquismo, Daniel Guerin afirma que Proudhon constata,com desolação, que as
massas têm necessidade de indivíduos que as despertem.O povo moçambicano foi
despertado para o mal, na fase da Independência, poruma Frelimo que
desconhecia, comunista, e a arma usada pelo Partido foi aImprensa. Mas esta
sabia que o regime que entrava em Moçambique paragovernar se solidarizava com
os princípios moscovitas, e conclamava anecessidade da formação de um bloco
comunista e ateu, que fizesse frente àsideias ocidentais no continente
africano. E este regime, convertido em paladinona luta contra o Ocidente,
assegurava uma nova situação no contexto africano,oferecendo a Moçambique uma
importância estratégica crescente.As injecções constantes da Imprensa, vassala
do regime, alimentava a místicada cruzada machelista contra o imperialismo
ocidental, ocultando, das massas,que a intenção deste proceder era favorecer a
tentativa de domínio, porMoscovo, de toda a África Austral, domínio
imperialista (mal) disfarçado numaideologia socialista.Assim, entendendo-se a
Frelimo, compreendendo-se a Imprensa e a posição demeia dúzia de jornalistas
portugueses, que a quiseram servir, e dela servir-se dequalquer modo, num
compungente e trágico mercenarismo, chega-se à respostaque queremos encontrar
para esta pergunta: «Como justificar as bárbarasperseguições movidas ao povo
moçambicano e à colónia portuguesa pelaFrelimo?».Creio que o leitor a encontrará
nesta reportagem.INÁCIO DE PASSOS
PRIMEIRA
PARTEOS «PRAVDAS» DE MOÇAMBIQUE (prólogo à reportagem que ides ler)
1. UMA
REDACÇÃO EM EFERVESCÊNCIA
O clima
emocional de quantos se encontravam na Redacção do «Notícias daBeira» era
caldeira prestes a estoirar.Estava-se na noite de 7 de Setembro de 1974. Eu,
que então chefiava umadelegação do jornal em Tete, próximo da guerra e de
Cabora Bassa, viera, em visita particular, à sede. Chegara na véspera, num dia
de muito sol, de calmaria absoluta.Entretivera-me, logo que pusera os pés na
cidade, num restaurante batido pela brisado Indico, na companhia de camarões
grelhados, cerveja fresca, mulher e filho.A cidade, que percorreria depois do
anoitecer, era a cidade que sempre conhecera,com os seus coloridos «néons» e os
cafés repletos, viva àquela hora. Os restaurantesmostravam o que de melhor,
mais atraente e caro, poderia satisfazer o gosto dosturistas rodesianos.
Automóveis corriam no asfalto para um destino qualquer, uns maisapressados que
outros. Nos cafés os homens falavam do Acordo de Lusaka, que seriaassinado no
dia seguinte entre a Frente de Libertação de Moçambique e Portugal.Pela Colónia
apenas um homem aporia o seu nome no documento — Samora Machel — tornando mais
fácil e menos extensiva a responsabilidade do seunão cumprimento. Por Portugal
o peso era dividido por oito homens, uns conhecidosoutros saídos do anonimato
com o 25 de Abril.
Eram
ministros com e sem pasta;conselheiros de Estado; um membro português do
Governo Provisório deMoçambique; e oficiais das Forças Armadas de Portugal. Os
seus nomes andavam de boca em boca, tanto os jornais neles haviam falado nos
últimos dias: Melo Antunes,Mário Soares, Almeida Santos, conhecido ex-causídico
de Lourenço Marques, Vítor Crespo, Antero Sobral, Nuno Lousada, Almeida e Costa
e Casanova Ferreira.Todos os que, nos cafés, falavam do Acordo denunciavam medo
e incerteza emquanto diziam. Que se podia saber então? Que o Acordo da
Independência de um país, que mais interessava a moçambicanos que a portugueses,
ia ser assinado numacidade estrangeira, sem que o povo moçambicano fosse
consultado. Ë pouco provável que alguém, nesta noite de incerteza, tivesse
podido reagir de outro modo.Sabia-se, pela História e pelos exemplos africanos,
que seria em vão que um paíseconomicamente débil e com grande parte da
população por alfabetizar, procurariagarantias duráveis de liberdade e de
independência. A que novo senhor iria servir Moçambique após dez anos de
desgastante luta com Portugal? Não setornariaMoçambique o rastilho de um
conflito internacional por ordem de Moscovo (ocapitalista da guerra de
libertação moçambicana) por forma a ser silenciada qualquer voz discordante à
penetração comunista na África Austral?
Ë necessário
que o leitor tenha em mente que não fazíamos parte deuma Redacção dependente de
uma administração organizada; que não possuíamosum director, pois o último
afastara-se voluntariamente após os saneamentos naadministração; que fora
nomeado um sub-director, de nome Evo Fernandes, quesofrera a sorte comum — o
saneamento; que o director interino era o chefe daRedacção, Henriques Coimbra,
mas encontrava-se como observador em Lusaka, nascerimónias de assinatura do
Acordo.A força que existiria no jornal era uma força clandestina, camuflada.
Ela estava nasmãos do Heleodoro Baptista, por ser comunista e da Frelimo; do
Jorge FigueiredoJorge, por ser comunista e da Frelimo; do Castro Lobo, por ser
comunista e daFrelimo.Claro que tinha havido dissidências mas elas não
partiram, embora fossem perfilhadas em silêncio por alguns elementos, do sector
da intelligentsia, mas dosoperários das oficinas. Esses queriam o pão para a
boca e para os seus, e viam elefugir-lhes com os consecutivos saneamentos na
classe que o proporcionava. E essasdissidências chegaram ao paroxismo com o
aparecimento, nas ruas da cidade, de um panfleto, impresso no «Notícias da
Beira», aconselhando as massas populares a nãocomprarem o jornal. Esse
panfleto, por mais paradoxal que pareça, era assinado pêlosoperários do
«Notícias da Beira». Esses mesmos homens ousaram ainda, e com oapoio do então
secretário de Informação, dr. Willem Pott', sair para a rua com um pasquim, em
tudo igual às edições normais do jornal, com a Redacção encerrada esem
director. Todo o trabalho partira do sector oficinal e da iniciativa dos
operários,sem auxílio dos intelectuais.Julgamos serem estes dois flagrantes
actos de resistência do proletariado do«Notícias da Beira» um interessante tema
de estudo da penetração da ideologia social-marxista na Imprensa moçambicana.
Por onde penetra o comunismo numasociedade?Melhor, por onde tem penetrado o
comunismo nos países de política ocidental?Diversos exemplos apontam-nos que
ele penetra pela classe operária e pêlos pequenos camponeses, só a seguir pêlos
funcionários, médicos,engenheiros,advogados, intelectuais, em resumo pela
intelligentsia burguesa, sequisermos usar terminologia esquerdista. No
«Notícias da Beira» ele penetrara pelaúltima e não era apoiado pela primeira.À
juventude intelectualizada, especialmente à ligada às Redacções dos
jornais,fora permitido o acesso à Imprensa estrangeira, e a que mais lhe
interessava vas-culhar era a que então era considerada inconveniente. O
quotidiano contacto com asagências noticiosas internacionais — mesmo as
ocidentalizadas — trazia-lhes«meias verdades» desconhecidas, pequenas aberturas
por onde o pensamento seexpandia, embora desorganizado.Durante muito tempo,
como intelectual pequeno burguês, o redactor dos jornais pôde comprazer-se com
a atitude, repleta de comodidades, de simples observador privilegiado, pois o
Governo concedia à sua classe a maior liberdade de contacto como «mundo
proibido», permitindo-lhe uma imersão, cada vez mais profunda, numa vítima,
influenciado pela série, suspeita, de agressões de carácter político que
proliferava na capital. Uma noite tombou numa artéria citadina, vencido pelo
excessode álcool que ingerira. Feriu-se na queda. Era de madrugada e ninguém
assistira aoacidente. Socorrido e transportado ao Hospital, adormeceu entre
bocejos de ébrio evómitos de etilizado.Ao outro dia o seu jornal noticiava que
o redactor fulano de tal fora barbaramenteagredido por inimigos da liberdade. O
tal colega acordou com direito a ser comunistaapós a ressaca, mas o pessoal do
Hospital não colaborou na comédia. O «Notícias», porém, nunca rectificou a
local, agarrando com unhas e dentes a oportunidade de possuir nos seus quadros
um jornalista que não podia ser acusado de fascista. E, diasapós, comunista
respeitável e frelimista da primeira apanha, o «nosso» herói teve ahonra de ver
em todas as montras e paredes de Moçambique um poema seu, dedicadoa Samora
Moisés Machel, servindo de legenda a um gigantesco «póster» do presidente da
Frelimo.Meses depois, a mulher do herói discursava em Tete, do alto de um
púlpito e emnome de todas as mulheres de Moçambique. O futuro estava assegurado
ao jornalistaGuilherme da Silva Pereira e a sua mulher. E estávamos ainda sob o
domínio doGoverno de Transição.Outros aderiram ao G.U.M.O., partido político
criado após o 25 de Abril echefiado por Joana Simeão, evitando, deste fácil
modo, a denominação de fascista tãoem moda, verificando-se, a curto prazo, que
em Moçambique não existia um único jornalista das «direitas», e que fora da
Imprensa só haviam sido fascistas o GovernoGeral e os seus secretários provinciais.
E os jornalistas provavam que nunca o haviamsido pois todos sabiam recitar
Lenine ou Mao-Tsé-Tung, para parecerem progressistas,como definiria mais tarde
Fernando Barradas esta estranha fauna «como cordeirosamestrados atrás do
prémio, da segurança, de serem desde pequeninos, comunistas».Os mais directos
colaboradores da Imprensa moçambicana do tempo deMarcello Caetano apareceram
como agressivos defensores da Frelimo, sujeitando-seàs mais escabrosas traições
ao povo português para agradarem ao Partido.Outros,ainda, não tendo a sorte de
serem agredidos numa rua da capital, nem meioseconómicos para irem a
Dar-es-Salam abraçar Samora Machel e pregoar a suamilitância à Frelimo,
publicando-a em letras gordas nos seus jornais, tentaram ser os primeiros a contactar
os guerrilheiros em pleno mato — mas sem arriscarem a pele — para em seguida,
com os seus escritos, reclamarem o preço merecido pelo seugesto tradutor de
militância — um tacho.Um pequeno exemplo:Algum tempo depois do 25 de Abril, e
quando a população não sabia, ainda, se aguerra havia terminado, fui informado,
por um meu contacto habitual, de que umgrupo de guerrilheiros da Frelimo se
encontrava nas proximidades de Tete. Para oencontrar teria de seguir em viatura
cerca de sete quilómetros, na estrada Tete-Beira,e depois caminhar mais cerca
de quatro quilómetros por picadas de difícil acesso, ..chamando a população que
já se está a concentrar. Um grupo de nossos irmãostentou sabotar as antenas do
Emissor Regional, não sabemos se com sucesso.Aquela Emissora ainda não aderiu
ao nosso Movimento...»
E logo a
seguir, em tom convincente:
«Fala-vos
Rádio Moçambique Livre. Saiam para as ruas. Venham para junto de nós.
Apoiem-nos com a vossa presença física. Tragam cigarros e caféque a noite está
fria. Tragam cobertores. Há mulheres e crianças junto de nós,em toda a rua.
Seremos mais. Temos de ser todos. Venham para junto de nós...»
Os meus
camaradas na Redacção fitam-se lívidos. Era isto a descolonização? Seo era não
condizia com as declarações de Vítor Crespo, um dos homens que assinarao
Acordo:
«Descolonizar
significa entregar os poderes de soberania sem que hajaconvulsão social, em paz
e harmonia entre os diversos sectores da população,para que se possa criar o
clima de reconstrução nacional, essencial ao progressodo povo até agora
colonizado...».
Aceito o
risco de me censurarem por afirmações que não são admitidas por alguma gente: A
nação moçambicana encontra-se preparada para receber a Inde- pendência; a
Frelimo, não. Não sendo, portanto, contra a Independência, penso, e pensarei
até me provarem o contrário, que a maioria dos observadores sabiam
queMoçambique com a Frelimo não sobreviveria. O Partido estava preparado para
umaluta demorada de guerrilha e não para dirigir um país.Em todos os sectores
da actividade económica e administrativa não existiam quadros,nem em quantidade
nem em qualidade. Os quadros teriam de ser, forçosamente, por tempo ilimitado,
de nacionalidade portuguesa, os compostos por moçambicanos nãomilitantes do
Partido, mas isso não interessava aos comunistas — o pequeno grupo querodeava e
amestrava Samora Machel. Para eles a Frelimo teria de sobreviver por si própria
e apenas com o auxílio do eixo comunista, seu importante credor das despesasde
guerra. Moçambique estava preparada para a Independência e a Frelimo não. O 25
de Abril e as resoluções apressadamente tomadas prejudicaram aFrelimo
nacionalista — beneficiando o sector extremista — e precipitaram
osacontecimentos. Samora Machel, num dos seus poucos momentos de verdade,
quandoa vigilância dos «cérebros» que o rodeiam afrouxou, confessaria no Niassa
— declarações transcritas na revista moçambicana «Tempo» — que «foi pena que
aguerra contra o colonialismo português não se tivesse prolongado por mais
cinco anos».
Mesmo assim,
as negociações decorreram apenas com a Frelimo, tal a aceleração pretendida por
Melo Antunes para a descolonização. Melo Antunes soube aproveitar-seda situação
política e social de carácter anarco-populista que adoentavaas
estruturasgovernativas portuguesas, e da intensa campanha movida contra o
Ultramar pelas forças progressistas a nível popular, aliciamento a cargo da
Internacional Comunista. Ele foi,apenas, um intérprete, tipo «roberto de feira»
do«entreguísmo» das colónias portuguesasao imperialismo soviético.Portugal e a
Frelimo não permitiram a presença de observadores moçambicanos, nãoafectos ao
Partido mas simpatizantes da libertação nacional, de homens que, no contacto
directo com as realidades moçambicanas, tivessem conhecimentos e forçamoral
para aconselhar, para orientar Portugal e a própria Frelimo, mesmo
sabendo-seque as autoridades portuguesas, representadas em Lusaka, desconheciam
as gentes e asterras moçambicanas, as reivindicações honestas e humanas do
povo,as suasnecessidades reais, os seus anseios, a forma de liberdade pela qual
lutavam. Mas sabia-se, também, que a Frelimo, com uma dezena de anos de luta,
período de tempo emque apenas contactou as zonas do interior, que pouco ou nada
representavam nocontexto económico, político e humano de Moçambique, vivendo
com sede noestrangeiro e visitando clandestinamente a parte mais desértica e menos
civilizada dacolónia, desconhecia, do mesmo modo, a realidade
moçambicana.Pode-se, assim, afirmar que o Acordo de Lusaka foi negociado entre
duas entidadesestranhas a Moçambique: o Governo de Portugal com sede em Lisboa,
e a Frelimocom sede em Dar-es-Salam.Mas era com a Frelimo que Portugal teria
forçosamente de negociar a des-colonização segundo a pusilanimidade dos então
governantes de Portugal,aberrativamente exposta por Vítor Crespo:
«Descolonizar
é transferir os poderes que o Estado Português detém para aFrente de Libertação
de Moçambique. E porquê a Frelimo? Porque foi oPartido, a Frente, que manteve a
luta armada pela independência nacionaldurante dez anos e tem o apoio
generalizado. Por isso a única força política emMoçambique.»
A opinião de
Vítor Crespo era a da maioria dos dirigentes portugueses. As suas palavras eram
as do Governo de Portugal, dominado, na sombra, pelo general CostaGomes, que se
acobertara sob o prestígio do general António de Spínola. Eram a própria
opinião do mal informado povo português, logrado pelo chavão da solução
política que o Acordo de Lusaka parecia representar.O povo moçambicano e os
habitantes portugueses de Moçambique, subjugados pelas armas dos dois
negociantes, iam ser entregues, sem remissão, à vontade mos-covita representada
pela Frelimo, mesmo circulando de boca em boca, medrosamente,a afirmação de que
um ano antes, no dia 12 de Setembro de 1973, o PresidenteKaunda da Zâmbia havia-se
debruçado sobre o problema moçambicano, apresentandoum programa intitulado
«Plano de Lusaka», onde era prevista a participação daFrelimo no futuro Governo
de Moçambique, mas não em regime exclusivista.A solução, programada então, da
qual o Governo Português tivera conhecimento pelo então cônsul do Malawi em
Portugal, eng.° Jorge Jardim, antes de 7 de Setembrode 1974, definia que os
movimentos nacionalistas, tais como a Frelimo, deveriam ser reconhecidos como
importante factor político, cuja participação no formular da futuraestrutura
política não podia ser ignorado.Saliente-se importante; não exclusivo.De notar,
porém, que este «Programa», cujo cumprimento honraria Portugal e assuas Forcas
Armadas, aquelas que o 25 de Abril afirmou representar, estava emvésperas de
ser integralmente aceite. Já o fora por Nyerere, Presidente da Tanzânia, pelo
dr. Hasting Banda, Presidente do Malawi e o mais inteligente e lúcido dirigente
da África Austral, e assinalava-se, com optimismo, a adesão incondicional de
SamoraMachel, ainda não manobrado completamente pelo seu grupo
intelectual--comunista.Ao contrário do Acordo de Lusaka, apenas um ano depois
assinado, Moçambique nãoera entregue a Moscovo mas ao povo moçambicano.
Recorde-se, ainda, que o professor Marcello Caetano afirmara, também, pela
mesma altura, ao definir a sua política de «Autonomia Progressiva e
Participada» que «não recusava aIndependência, se esta traduzisse a vontade
local, autenticamente expressa». Não era, pois, a Independência que estava em
jogo. Jogava-se o «processo», evenceu o engendrado pelos extremistas. Havia
apenas necessidade de lhecriar ambiente propício, e os oficiais comunistas
portugueses, e os pseudo-democratasmoçambicanos, que hoje, após terem atirado
Moçambique às feras, passeiam por Lisboa, criaram esse ambiente acelerando o
Acordo, para que este nãofosse ultrapassado pelo Programa.A Frelimo comunista
vencera a Frelimo nacionalista. As ideias de Mondlaneforam espezinhadas pelo
grupo que domina Samora Machel. E é dentro desta pers- pectiva, onde existe
apenas um substracto comum — a Independência — queSamoraMachel exerce o seu
papel de ditador, dirigido pelo seu grupo de intelectuaisextremistas, e
organiza o seu novo Estado segundo as concepções comunistas.Dois elementos
fundamentais simbolizam o poder moçambicano: O Partido e oChefe. O terceiro
elemento fundamental foi esquecido: O povo.
4 UM ESTRANHO
FREMILISTA
O Machado,
chefe geral das oficinas, entra na Redacção. Vem calmo. Junta-se anós, que nos
acocorávamos nas vigias deixadas pêlos aparelhos de ar condicionado.O silêncio
voltara à rua. Não era um silêncio pesado, mas apenas a ausência dosgritos que
os nossos ouvidos captavam havia mais de duas horas, um murmúriocomposto por
conversas a baixa-voz, como se toda aquela plateia revolucionária
seinterrogasse. Fazia lembrar — e essa imagem me veio ao pensamento, ali e
naquelahora — os décimos de segundo que antecedem o sinal de partida dos
atletasnuma prova pedestre de velocidade.Desceu à portaria e eu acompanho-o.
Centenas de pessoas acotovelavam-se emtodo o comprimento exterior do edifício.
A nossa defesa era assegurada por meiadúzia de agentes da Polícia de Segurança
Pública, pois, embora a situação fossedramaticamente comunicada às Forças
Armadas, ainda nenhum militar comparecera.Destacam-se quatro homens da primeira
fila e dirigem-se-nos. Dois são brancos, um é goês e outro é negro.A presença
do último leva-me a olhar a plateia de manifestantes: Mais negros,muitos
negros, em toda a parte. Por que se afirmava, então, que a Frelimo tinha oapoio
total do povo negro?... Mas quem o afirmava? Não eram apenas o Governo deLisboa
e nós os jornalistas? ...É um dos brancos que fala pelo grupo:
— Queremos
dialogar com os jornalistas, mas com todos. O jornal tem queser encerrado, a
bem ou a mal. Ë melhor compreenderem a nossa posição emuito especialmente a
vossa...
O Machado
pede-lhes que subam à Redacção. Eles falam com algunsdas primeiras filas. Há
observações de apoio e de descontentamento. Existe quem prefira quebrar as
montrarias, destruir as oficinas, arrasar tudo, silenciando, de umavez para
sempre, o único jornal beirense.Os agentes da P.S.P. estudam a situação de
armas aperradas. Parecem em menor número: Alguns haviam-se espalhado por pontos
estratégicos, por forma a melhor dominarem a situação. O que está mais perto de
mim sussurra-me que, em caso deemergência, tínhamos assegurada a saída pelas
traseiras.Acompanho o Machado e os quatro manifestantes. Penetrámos na
Redacçãosilenciosa. Os restantes colegas rodeiam-nos e é o mesmo branco que fala.
Calçachinelas de quarto e veste camisa vermelha de quadros, que lhe cai
comsofisticadodesleixo sobre os calções: —
O que
queremos é que vocês fechem imediatamente o jornal. Não permi-tiremos que
amanhã as vossas mentiras venham prejudicar o Movimento...Estamos dispostos a
conseguir o que queremos pela força e sem olharmos aconsequências.
O Machado
responde-lhe, mas dirigindo-se a nós: —
Vamos
rapaziada. Desliguem o quadro geral!...
O jornal é
encerrado por uns dias, e os jornalistas comunistas hibernaram por mais um mês,
não metendo as cabeças fora das tocas onde se encolheram, ruminandovinganças,
nos intervalos das leituras dos clássicos do marxismo e dos seus
discípulosmodernos.A multidão não dispersara ainda e comentários, e olhares de
ódio e de desprezo, sãodirigidos na nossa direcção. Quando abandono o jornal
levo nos ouvidos, ressonandocomo matracas, as últimas palavras que ouvira ao
locutor:«Um grupo de nossos irmãos tentou sabotar as antenas do Emissor
Regional de Tete, não sabemos se com sucesso. Aquela Emissora não aderiu ao
nossoMovimento...»O meu pensamento volta-se para a cidade que apenas no dia
anterior deixara. Erecordo: Nos princípios de Abril de 1974, a poucos dias da
queda do Governo de MarcelloCaetano, encontrei sobre a minha secretária de
trabalho uma carta muito malredigida. Fora seu autor um comandante da Frelimo.
Levei a missiva para casa e aSão, minha mulher, falou dela, no intervalo de uma
emissão, a alguns dos seuscolegas de estúdio onde então trabalhava — o E.R.T.
do Rádio Clube. O jornalistaSantos Martins informou a D.G.S., chefiada pelo
inspector Sabino, e eu e minhamulher fomos incomodados. Afirmava-se, à boca
cheia que ele era, de velha data,informador da P.I.D.E. Eu, porém, via-o apenas
como homem pouco culto que queriatirar partido de meios oportunistas para
ocupar posições para que não lhe chegava omérito. Mas foi ele próprio que na
minha ausência, e por ordem do inspector da D.G.S., tentou convencer a minha
mulher para que ela lhe entregasse a carta,afirmando-lhe que cumpria instruções
minhas. Ela escondera a carta no corpete masnegou possuí-la.Meses após, depois
de curta passagem por um grupo fantoche de Democratas — criado após a revolução
dos cravos — para onde entrou pelas mãos de um comer-ciante com pretensões a
literato e ex-lider do G.U.M.O., de nome Isaías Marrão,traidor português
responsável por inúmeras prisões de colonos na província de Tete, o jornalista
Santos Martins entrava nas estruturas da Frelimo, e conseguia deitar mão
aalgumas alavancas do comando político de Tete, esquecendo a sua recenteadesão
à política colonialista.O seu sucesso foi rápido e brilhante. Candidato ao
cargo de professor de Políticada Frelimo, na escola secundária local, passou a
leccionar História. Comohabilitações literárias lia-se no seu curriculum vitae,
na proposta ao professorado:Estudioso do socialismo e das teorias
marxistas-leninistas. Cativou aFrelimo e transformou-se no mais entusiástico e
perigoso militante, presidindo areuniões a nível distrital do Partido.Construiu
duas residências.Dirigiu um Emissor.Representou o mais importante jornal de
Moçambique.Foi proprietário de uma discoteca.Foi professor num curso médio,
muito acima da sua cultura.E, finalmente, regressou a Portugal, após ser
vítima, como todos os portugueses,das nacionalizações, residindo actualmente na
cidadeuniversitária namorada do Mondego. Mas nas prisões em Moçambique
ficaramalgumas das suas vítimas.
5. O ÓDIO DE
JORNALISTAAOS PORTUGUESES
Regresso a
casa. Toda a minha família estava nas proximidades do receptor,atenta às
notícias, que, em torrente, nos eram trazidas pelo éter:
«Temos a
alegria de comunicar que foi retirado o mandato de capturaao senhor engenheiro
Jorge Pereira Jardim...»«Julgamos que o senhor general Spínola está a compreender
a nossasituação, o motivo do nosso Movimento, e o vai apoiar ...»
«A cidade de
Inhambane adere ao Movimento. Há alegria nas ruas...»«Milhares de portugueses
da África do Sul dirigem-se para LourençoMarques em longos comboios de viaturas
automóveis. As autoridades sul-africanas estão a facilitar a sua passagem na
fronteira com Moçambique...»«O jornal «Diário» prepara-se para sair com uma
edição. Levem cigarros ecafé aos valorosos jornalistas. Já está garantida a
chegada de papel para asfuturas edições daquele jornal...»
E muitas
coisas mais. A voz do locutor é persuasiva, mole por vezes, agressiva por
outras, convincentesempre. Continuam a ouvir-se sirenes pela cidade, por onde
centenas de viaturascirculam em cortejo.É gente que não pensa em dormir e eu
adivinho no interior das carrinhas, dascamionetas e dos automóveis — de que
apenas vejo os faróis à distância — pessoasatentas à voz do locutor, querendo
acompanhar, como nós, toda a sequência doimbróglio para que já não se vislumbra
uma solução pacífica.Como reagirá a Frelimo?Interrogo-me, e como eu milhares de
pessoas por Moçambique afora. Não farão idêntica pergunta a si próprios, todos
aqueles que fazem guarda •— homens, mulheres e crianças — junto ao Rádio Clube
de Moçambique, em LourençoMarques, ou se encontram na Praça do Município da
cidade da Beira, ou, ainda,essoutros que se acumulam nas vilas e aldeias do
interior, ou isolados nas choupanashumildes, ouvem, estupefactos, o que o
locutor agora afirma, tão diferente do queontem foi propagado pelo mesmo
Emissor, ou pespegado em caracteres de Imprensanos jornais moçambicanos,
verdadeiras guardas avançadas do Kremlin, incitando, antea passividade
criminosa dos dirigentes, com a ilegitimidade das suas doutrinas ossaneamentos
indiscriminados, as prisões arbitrárias, os espancamentos, as torturas,
asexpulsões, a negação da cultura portuguesa, a usurpação criminosa e selvagem
deterras e de habitações, tudo ordenado pela moral dos serventuários do
imperialismosoviético?A História um dia falará da influência da Informação
moçambicana na escaladado terror que destruiu Moçambique. Testemunhos não
faltarão:Como chefe da Delegação do «Notícias da Beira» na província de Tete
recebi,com surpresa, uma comunicação de que uma equipa de reportagem visitaria
aquelazona moçambicana, a fim de colher elementos para uma edição especial. A
minhasurpresa justificava-se, sobretudo por, durante os cinco anos de guerra
naquela pro-víncia, nenhum dos meus colegas se oferecer, ou aceitar quando
imposto, qualquer serviço na região, facto que contra a minha vontade me
obrigava à acumulação deférias.A equipa seria composta pelo repórter Mário
Ferro — secretário de Informaçãodo Grupo Dinamizador da Frelimo — pelo
repórter-fotográfico Carlos Rodrigues, e por um publicista encarregado de
adquirir fundos para a feitura da referida edição.Os nossos homens seguiram
para a Angónia depois de pedirem apoio ao Partido emTete, e ali, acompanhados
por elementos fardados da Frelimo, percorreram todas ascasas comerciais e as
machambas agrícolas portuguesas, arrecadando cerca de cemmil escudos de
«publicidade».Os amedrontados portugueses entregavam-lhes quanto lhes fosse
sugerido, receo-sos de caírem no desagrado da bélica comitiva.Aquela região era
a mais rica de Moçambique, considerada o celeiro do país. Alieram produzidas as
batatas que Moçambique consumia, parte do milho que ali-mentava a população, e
diversas experiências no campo frutícola foram coroadas deextraordinário
sucesso. Era, ainda, fértil produtora de carnes, sendo por este e outros motivos
uma região onde o povo nunca conheceu a fome e a revolução armada daFrelimo não
vingou, nem obteve êxitos militares e políticos.O angone não ignorava que toda
a riqueza da região partiu daexperiência portuguesa, da sua agricultura
evoluída, da sua técnica, presente nasmáquinas que substituíram definitivamente
os processos tradicionais de cultivo. Destemodo, não desconhecia que a riqueza
que usufruía era a parte que lhe cabia dainiciativa portuguesa.Mário Ferro viu
tudo isso e encolarizou-se.O choque que sentiu ao deparar com abundância de
víveres e de cereais numa província de um país onde se formam bichas para
adquirir arroz, para comprar um pão, fez ultrapassar a dose de paciência que o
seu extremismo, mais quecomprovadamente militante, permitia e virou ódio. Ódio
que dirigiu no sentido maisfácil e tolerado pelo Partido: Aos portugueses.O
desafogo económico colectivo era, para ele, uma ofensa ao povo doSul, miserável
e faminto. Não se preocupou em estudar os motivos daabundância, porque não lhe
interessou observar a vida, o trabalho e o combate daclasse agricultora. Não
olhou as mãos calejadas dos trabalhadores negros e brancos. Não fitou, de
frente, os rostos curtidos pêlos frios das madrugadas serranas e pelos calores
das várzeas tropicais, naquele pedaço de mundo onde todas as temperaturassão
permitidas.Excitado, destilou veneno num artigo sobre os agricultores
portuguesesda Angónia, alcunhando-os de elitistas, de sabotadores económicos, e
de outras defi-nições usuais no dicionário político da Frelimo. A sua injusta
opiniãodemagógica fazia-lhe ver na fartura uma caótica subversão a roer as
estruturascomunistas, que necessário se tornava implantar em toda a Angónia. E
a Angóniamostrava-se alérgica ao comunismo ... porque era rica.Lavrar, semear,
colher mecanicamente, era desmentir a capacidade de trabalho do povo
moçambicano, que deveria ser orientado para as machambas colectivas. Ofuturo de
Moçambique estaria assegurado pela mobilização maciça de agricultoresem regime
de «kolkhoz», essas tão faladas cooperativas agrícolas de inspiraçãocomunista,
amoçambicadas pela definição de «machambas colectivas».Alardeando fartos
conhecimentos dos conceitos esquerdistas, Mário Ferro faloudas disparidades de
riqueza e miséria e, para cabalmente cumprir a sua missão deextremista, entrou
na campanha demagógica em curso pelo Partido, preconizando odimensionamento das
explorações.Ao bom entendedor — e o Partido que lhe encomendara o sermão era-o,
de certeza — estava posta a funcionar a engrenagem que levaria à depradação dos
bens e à perseguição dos portugueses residentes na Angónia.A resposta ao apelo
de Mário Ferro não se fez esperar, e, por ordens da Frelimo, édetido poucos
dias depois um agricultor de nome António Ferreira Abreu.Transportado sob
prisão para Lourenço Marques foi ali enclausurado em regimeincomunicável. Sua
mulher e filha — uma criança doente — sofreram igual sorte. A solução chegou
para todos com a expulsão de Moçambique, após haverem sofrido asmais desumanas
humilhações e maus tratos.A acusação baseou-se em «crime de sabotagem económica»,
mas o acusado nãofoi julgado em nenhum tribunal.Entretanto nas terras do detido
apodreceram, sem que alguém as retirasse do solo,centenas de toneladas de
batata, enquanto o povo moçambicano do Sul morria de fome. Nos seus armazéns
ficaram mais de um milhão de escudos de mercadoria, entregue àdestruição do
tempo, enquanto nos lares do Sul os pais gemiam ao ouvir os filhoschorar com
fome.Repito: António Ferreira Abreu não foi julgado. Nenhum tribunal se
debruçousobre o seu caso. A justiça comunista fora praticada por um jornalista
português e por um guerrilheiro de nome Eusébio Nenhum Fica, comissário
político na província deTete, figura representativa do mais cruel sadismo e das
mais descaradas prepotências,de que nos ocuparemos ainda.Prosseguindo o programa
de Mário Ferro, algum tempo decorrido é encar-cerada a totalidade dos
agricultores portugueses e a maioria dos comerciantes, nestes seincluindo cinco
moçambicanos. A justificação para a captura era serempossuidoresde armas —
embora estas se encontrassem em seu poder por determinação dasautoridades.
Foram transportados, como animais, em camiões decarga, permanecendo numa cela
colectiva durante uma semana. Após o seu regressoàliberdade tem início o êxodo
dos portugueses da Angónia e grande parte deles fixaresidência no Malawi, onde
a sua experiência agrícola é acolhida de braços abertos pelo Governo do dr.
Hasting Banda.O povo da Angónia pede para os portugueses não se afastarem das
terras queenriqueceram. Manifestações de negros imploram ao Governo a protecção
para os portugueses. Agricultores angones botam sentidos discursos louvando o
trabalho dos portugueses quando alguém graúdo visita a Angónia. Porém o
programa do Partidoestava traçado: O comunismo só penetraria naquela
estratégica região nortenha quandoa miséria substituisse a abundância. A
experiência portuguesa estava a mais naAngónia e em seu lugar ficou a fome. As
desigualdades económicas deixaram deexistir.Antes de regressar à Beira, o
secretário do Grupo Dinamizador da Frelimo daSecção de Informação, e repórter
do «Notícias da Beira», Mário Ferro, publica novotrabalho, e nele afirma
existir assinalável incremento da prostituição em Tete,referindo alguns bares
que empregam mulheres portuguesas.Foi incisivo e directo: A prostituição era
prática das mulheres empregadas emdeterminados estabelecimentos, por estas
serem, na maioria, portuguesas.Este seu trabalho motivou uma vigorosa acção do
Comissariado Político de Tete,acção que levou dezenas de mulheres a serem
isoladas em terríveis e criminosos«campos de reabilitação», junto à fronteira
da Tanzânia, de onde poucasregressaramcom vida.As que sobreviveram foram
consideradas inocentes pela Frelimo. Tenho em meu poder um desses certificados
de inocência, passada a uma jovem de aspecto frágil, sobrevivente do campo de
«reabilitação» de Luatize. Essa jovem, Maria Fernanda— inocente como a própria
Frelimo reconhece num documento oficial — foi uma dasvítimas de Mário
Ferro.Tinha consigo documentos que a Frelimo destruiu— entre eles um passaporte
português. O único motivo do seu infortúnio foi a publicação de um trabalho de
um jornalista português, que nem sequer a conhecia.Esta pode acusá-la e
acusa-o, de certeza.Mas e as outras? As que ficaram pelo caminho?...
6. UM PEQUENO
DRAMA NA BEIRA
Passámos a
noite na sala — eu e a minha família — ouvindo o «Rádio Moçam- bique Livre».O
locutor ia acrescentando novas adesões ao Movimento. Informava repetidasvezes
que o «Diário», o mais antigo jornal de Moçambique, seria publicado no
diaseguinte, voltando a pedir que levassem cigarros e cafés quentes e
refrigerantes aos«abnegados trabalhadores» daquele órgão de Informação, ao
tempo que apelava aoslinotipistas, paginadores, tituleiros e outros técnicos,
para se dirigirem às oficinasdo velho «Guardian».O «Notícias da Beira» e o
«Notícias» estavam fora de combate por vontade dasmassas portuguesas, como o
estariam, ainda, durante bastantes dias. Do primeiro jornal não se veria
ninguém nas ruas beirenses. Os esconderijos eram os maisdiversos, e nern os
colegas saberiam onde encontrar o Heleodoro Baptista, oJorge Figueiredo Jorge,
ou o Castro Lobo.Eu percorreria, nos dias seguintes, as ruas da cidade, onde o
comércio não abriraas portas. Caminhando devagar, espreitava com os ouvidos as
residências e em todasouvia as vozes dos locutores da «Rádio Moçambique
Livre».As notícias eram as mesmas:Mais adesões; a esperança de que os enviados
do general Spínola resolvessemalgo a contento dos cabecilhas do Movimento;
conclusões favoráveis noencontro entre os representantes de todos os movimentos
e partidos políticos que proliferavam na colónia; mundos de devaneios, de
ilusões, de certezas amontoadassem os alicerces da lógica política; esperança
de que o dr. Domingos Arouca compa-recesse a reuniões a que se mostrava alheio
e estranho ...Caminhando devagar, eu ouvia conversas contrárias ao Movimento
nos poucos bares abertos à gente sedenta, conversas de pessoas que o
consideravam tardio eirremediavelmente condenado ao fracasso. Ouvia afirmações
que prediziam que o queestava a acontecer iria conduzir a um inevitável
derramamento de sangue, queopinavam que depois de Portugal se comprometer em
Lusaka não mais retrocederia.Ouvia pessoas — quase todas desejavam a
independência moçambicana — que viam o problema pelos olhos dos partidos a que
entregavam a sua simpatia: Unsopinavam por Lenine que não se vence apenas com
uma vanguarda, que lançar umavanguarda numa batalha decisiva, enquanto a classe
no seu conjunto, a massa, nãoadoptou uma atitude de franco apoio, pelo menos de
neutralidade benevolente que atorne incapaz de deter o adversário, seria mais
que uma estupidez, seria um crime.Outros «iam» pela Convergência Democrática,
esperando que Portugal conse-guisse construir, entre os seus territórios
coloniais e as parcelas atlânticas, uma espéciequalquer de confederação.Muitos
eram de opinião de que todos os partidos deveriam ser ouvidos, e falavam
noG.U.M.O., no F.I.C.O., todos porém distribuindo opiniões mas ninguém
definindoclaramente ideias.Do mesmo modo procediam os oradores que se
apresentavam aos microfones do«Rádio Moçambique Livre», ou subiam ao púlpito
formado por uma camionetaengalanada com estandartes portugueses, encostada a um
canto de um extremodaPraça do Município da Beira, onde, durante três dias e
três noites, frias e de cacimbo,centenas de pessoas, velhas e novas, negras,
mestiças e brancas, marcaram presença.Eu não me podia admirar ao encontrar
estas centenas derevolucionários, incorrigivelmeníe esperançados numa viragem
radical ao Acordo deLusaka já assinado, mas podia criticar o suporte das suas
opiniões. E olhando essagente — e vejo uma mulher paralítica no seu carrinho,
uma velha junto ao fogareiroe frigideira, uma mãe enregelada retirando o frio a
uma criança de meses, um velhoreformado asmático — eu sabia que eles sairiam
dali mais vencidos.Caminhando devagar, eu ia ao encontro do entusiasmo popular,
do optimismoque eu não entendia, vendo, na cidade inteira, um gigantesco teatro
onde se repre-sentavam, simultaneamente e sem centrastes, milhares de dramas e
de comédias. E osintérpretes do espectáculo de que me sentia espectador não
entendiam as minhasrecusas, quando me abordavam para que eu convencesse os meus
colegas maismoderados a abrir o jornal, e a sair para a rua uma edição
«fantasma» de apoio aoMovimento, a exemplo do que o «Diário» estava a fazer em
Lourenço Marques. Não entendiam as minhas fugidias negativas cheias de
coerência. Não com- preendiam que eu sabia que o gesto que me ditavam estava a
virar contra eles, contranós todos, as armas da Frelimo e das Forças Armadas Portuguesas
leais ao M.F.A.;estavam a virar contra eles a força de quantos entregaram
Moçambique à Frelimo.Caminhando devagar, cruzei-me com grupos de soldados de
Portugal quehaviam enfeitado as suas armas com cravos rubros, numa grosseira
imitação das foto-grafias publicadas nos jornais reportando o 25 de Abril
português, e que levantavam amão direita em gesto grotesco, colocando dois
dedos em símbolo de vitória.Para estes sorri. E acenei com ambas as mãos. E
quase gritei: Eles eram asmaiores vítimas em Lusaka. O sangue dos seus
camaradas, que pintaram de honra osertão e levantaram monumentos de bravura nas
picadas mais remotas, havia sidotraído pêlos seus chefes numa cidade estranha
de um país mais estranho.Desço rnais uma vez à baixa no dia seguinte.Paro junto
ao aglomerado humano que se comprime perto de um orador na Praçado Município.
Conheço quem gesticula e fala: É o dr. Lúcio Sigalho, advogado do foro
beirense.
Fico-o
ouvindo sem interesse, mau grado entusiásticos aplausos cortem amiudadasvezes a
sua voz. A meu lado a São, que estreara uma maxi-saia que lhe prendia
osmovimentos, pede-me que abandonemos o lugar. Mas eu sinto-me atraído
pêlosrostos de quantos escutam o orador, pelas expressões daquele pequeno
exército pacífico composto por homens sem história, por mulheres e por
crianças.Revelar-me-iam o motivo individual por que estavam ali?Apenas porque
julgavam que cumpriam o seu dever ou por obrigação política?Ou ainda por uma
tomada de consciência colectiva repentina?Havia ali gente de toda a espécie; estava
ali o povo, essa massa que constrói partidos, que apoia governos, mas que
raramente os sabe derrubar.Estavam ali, também, os «progressistas», homens e
mulheres que se queriamapresentar como demolidores da velha sociedade, e que se
juntavam aos oportunistas,demonstrando que o oportunismo e o aventureirismo
político podem acasalar-se semquestiúnculas.Alguém gritou que se aproximava a
polícia e uma onda de inquietação varreu adesassossegada mole humana.Olho à
retaguarda e distingo um grupo de homens armados — vinte ou trinta — vestidos
de negro. São também negros mas comandados por policiais portugueses, etrazem
nas mãos pesadas matracas de madeira.Um dos organizadores do comício usa o
megafone para pedir ao povo que sesente no solo. A maioria obedece à voz de
comando e aguarda.Uma jovem fala do seu medo no meio de um grupo de raparigas,
perto de mim.Tento acalmá-la usando lugares comuns: «Não nos farão mal. Estamos
desarmados ehá aqui muitas mulheres e crianças», mesmo sabendo que em cenas
como a queestávamos a viver o diálogo cede lugar à matraca.O veredicto estava
traçado: A força caiu sobre a multidão.Gritos de mulheres unem-se a choros de
crianças. As pessoas comprimem-se,apertam-se, sufocando-se umas às outras, e
deslocam-se no mesmo sentido, querendo passar por entre duas colunas numa saída
da praça.Sinto a São soltar-se-me dos braços levada pela multidão em pânico e
ergo-a dosolo quando tropeça na própria saia, sentindo então sob os meus pés os
corpos de pessoas desfalecidas.Incólumes passámos entre gente agredida,
protegidos por voz forte de um jovemoficial pára-quedista português, especado
com um grupo de soldados de guarda aosestúdios do Aero Clube da Beira, na saída
do Largo. Por nós passaram rostosdeformados cobertos de sangue, homens
gritando, mulheres transportadas aos ombros,despojos de uma inútil batalha a
que involuntariamente assistira.Tento aproximar-me de uma mulher grávida
amparada por populares que gritavahistericamente «Bateram-me! ... Bateram-me!
...», quando o deflagrar de umagranada, seguido imediatamente por segundo
estrondo, fez tremer as paredes dosedifícios e estilhaçou os vidros das
montrarias dos estabelecimentos mais próximos.
Corremos pela
rua fugindo ao Inferno e penetrámos com alvoroço por uma portaque se abriu à
nossa passagem. Quanto tempo decorrera desde o início do tumultoque colocou em
aberta hostilidade as forças da ordem e o povo?Minutos apenas?Sirenes de
ambulâncias, e apitos aflitivos de outras viaturas, vindas da Praça doMunicípio
na direcção do Hospital indicam-nos que houve feridos. Venho para juntoda porta
e espreito o comprimento da artéria deserta, até que avisto, vindos emcorrida
na direcção do teatro do tumulto, dois homens transportando pesadose
complicados engenhos fotográficos.Eram da Imprensa estrangeira; os jornalistas
de Moçambique escondiam-se em buracos escudando-se do povo, germinando ódios e
recitando a sua lábiacomunista mal ingerida.O resultado da acção policial
soube-se ainda nesse dia: Um morto e diversos feridosgraves. «Uma coisa sem
importância, um pequeno drama», dirão alguns; «Umacatástrofe», afirmarão
outros. A verdade, porém era só uma: Quem não concordassecom a forma como
decorreram as conversações em Lusaka teria de enfrentrar askalasnicov da
Frelimo, as G-3 do Exército de Portugal, e as matracas da Polícia deSegurança
Pública, dirigida e comandada por graduados portugueses. O povo estava
policiado e o medo armava cerco aos discordantes.Entretanto, em Lourenço
Marques, um grupo honesto de portugueses continuava asua missão pacífica aos
microfones da «Rádio Moçambique Livre». Eram eles das maisvariadas cores
políticas. Eram apenas portugueses revoltados contra a desonra daBandeira
Nacional portuguesa, passeada pelas ruas lourenço-marquinas por umgrupo de
jovens brancos e mestiços, estudantes universitários comunistas.Mas a atitude
honesta desse grupo de portugueses, locutores de ocasião, havia
propositadamente sido espicaçadas pêlos verdadeiros criminosos, pêlos
jovensextremistas que, obedecendo às ordens do seu Partido, levaram o caos
àcapitalmoçambicana, e a acção os portugueses honestos, que, após o mostrarem
ser, nãoteriam outro recurso além da fuga de Moçambique, deixando mais livre a
actividade dogrupo comunista que rodeava Samora Machel, e do Partido Comunista
Português nasmãos de Álvaro Cunhal.O 7 de Setembro foi, deste modo, uma forma
de peneirar, seleccionando, os quenão prejudicariam o avanço comunista em
Moçambique. E a peneira colocou «forada carroça» inúmera gente, política e
apolítica, boa e má, sincera e oportunista.
7. O TRÁGICO
EPÍLOGO DO 7 DE SETEMBRO
Regresso a
Tete apenas no dia 13, por todas as carreiras aéreas terem estado paralisadas
em Moçambique. No avião sou informado, por testemunhas oculares, dodecorrer dos
distúrbios em Lourenço Marques, e da forma como o Exército Português,que se
encontrava dividido, actuara para a reconquista do «Rádio Clube deMoçambique».
Eu ouvira,
ainda na Beira, com crescente nervosismo, a última emissãodo «Rádio Moçambique
Livre», adivinhando, de momento a momento, o seu canto decisne.Ouvira a voz do
comandante provincial da O.P.V., pedindo ao cordão humanoque, enquadrado por
soldados comandos dissidentes, cercava o edifício doemissor, que se afastasse e
deixasse passar alguém importante que iria falar àsmassas, no sentido de que
fosse posto termo aos combates de rua. Estes, quetiveram início nos subúrbios,
haviam-se espalhado por toda a cidade.O ódio fervilhava nos gatilhos das armas
automáticas e as cenas damais desumana bestialidade iam-se registando nos
bairros limítrofes da capital eem todas as artérias do seu acesso.Mas estas
mortes não se podiam justificar politicamente pois os instigadores puseram-se a
recato, deixando nas mãos populares o motorista ferido que transportaraquantos
ofenderam, dilacerando-a no solo, a Bandeira de Portugal. Esse confessariaque
recebera pelo seu trabalho vinte mil escudos. A revolução de folhetim, que os
jovens comunistas fabricaram, transformara-se numa razão para os assassinatos,
ondetodas as torpezas, roubos, vilipêndios, nos quais se agitavam
fatalmenteresquícios deódio recalcado, foram proclamados como virtudes
revolucionárias.Os algozes fugiram ao julgamento. Deles quantos foram
capturados?Quantos expiaram os crimes que cometeram? Nenhum.A Frelimo
superlotaria mais tarde as prisões, mas os que lá entraram eramhomens e
mulheres de boa fé, que apenas haviam obedecido aos apelos da«Rádio Moçambique
Livre».E era o povo, eram os amigos, eram os parentes, os conhecidos dos
aprisionados,que os levaram à prisão, ao os indicarem em fotografias,
intencionalmente colhidasno aglomerado humano inocente que rodeou o Rádio Clube
de Moçambique.Os assassinos que incendiaram viaturas não permitindo a saída dos
ocupantes,que não se comoveram com os gritos das vítimas inocentes que
transformaram emtochas vivas, os açougueiros que degolaram mulheres e crianças
depois de as violen-tarem numa infernal orgia de ódio, que percorreram as ruas
entrando em todas ascasas, subindo aos mais altos edifícios onde humilde gente
se barricava, para prati-carem os mais horripilantes crimes, para matar, para
destruir, para fazer sofrer, para saquear, numa incompreensível e injustificada
sede de sangue, esses ficaramem liberdade.A revolução, segundo a concepção
bakunista, não é mais do que um desencadear de más paixões com um controlador
no cume. Apenas essa concepção anárquica pode justificar as consequências do 7
de Setembro moçambicano. Quantos ocuparam, nocume, os comandos do controlador
da revolução, conheciam de certeza as teorias deBakunine. E eles eram
figurantes contratados e encenados pelo governo marxista oumarxizante
português, que fingia governar e se vergava à vontade e ao capricho deMoscovo.
A Imprensa
moçambicana e portuguesa, dirigidas então pela mesma ideologia,não denunciaram,
antes cobriram de louvores, quantos devolveram os produtosdos saques,
esquecendo-se que cada objecto devolvido, móveis, cobertores, lençóiselouças,
representava o corpo selvaticamente assassinado do seu proprietário.
Antescobriram de louvores quem devolvia um pequeno berço às autoridades,
olvidandoque ele representava a cama de uma criança portuguesa degolada ou
desventrada.O tempo era de louvar, e a Imprensa moçambicana, ao reencetar o seu
contactocom as massas, aplaudia quem, respondendo ao apelo da Frelimo,
entregava quantoroubara depois de assassinar. Adulavam-se os assassinos, e a
verdade nunca foicontada na Imprensa moçambicana. Nunca se disse, também, que
os distúrbios foram propositadamente engendrados.Falou-se do início do
imbróglio. Disse-se que um grupo de rapazes passeou na baixade Lourenço Marques
uma bandeira portuguesa, mas não se disse que esses mesmosrapazes eram
estudantes universitários comunistas, para que a explosão de violênciaassumisse
uma aparência menos estritamente política do que na verdade possuía.Recordo com
raiva o relato de um homem:Sua mulher, licenciada em Farmácia, exercia a sua
profissão naMatola, regressando a casa, em Lourenço Marques, todos os dias ao
fim datarde. Temerosa pêlos relatos de atrocidades, que ouvira de gente
assustada, decidiuregressar mais cedo, telefonando primeiramente ao marido a
dar conta da suaresolução.O marido, também temeroso, foi ao seu encontro, a
tempo de ouvir os gritoslancinantes da mulher dentro do automóvel em chamas,
cercado por centenasde assassinos que gozavam o espectáculo em diabólica orgia.
Ele fugiu levandonosouvidos como música do mais trágico drama os últimos gritos
de desespero e morteda mulher incinerada viva.Ela fora apenas uma portuguesa
entre centenas, entre milhares de vítimas — onúmero nunca foi divulgado pela
Imprensa moçambicana — sacrificadas como ela.Ela fora uma das colonizadoras,
umas das fascistas, um dos monstros a destruir, quea Imprensa comunista
fabricava diariamente nas suas edições dirigidas por portugueses traidores, por
virtuosos intelectuais ultra-revolucionários.Lembro, também, a descrição de um
homem que perdeu toda a família:Estava em Lourenço Marques e, mal tomou
conhecimento das trágicas ocorrên-cias, dirigiu-se para a sua casa nos
subúrbios, pedindo protecção a uma força militar portuguesa, que o escoltou até
à residência. Todas as portas estavam arrombadas.Junto à escada de acesso jazia
a sua filha, de catorze anos, numa poça de sangue,degolada e com os membros
decepados. Tinha sido violentada antes de morrer. Noscompartimentos interiores
espalhavam-se os corpos de seus irmãos e tios, vítimas dasmais desumanas
mutilações.Este comprido filme de terror e ódio — de que apenas projecto ao
leitor duasimagens — afastou de Moçambique milhares de portugueses em
pânico.Mas a maioria ficou.
Essa maioria
ficou na Frelimo, no guia do povo, no braço armado do povomoçambicano. Mesmo
aqueles que percorreram as morgues, procurando inutilmentenos corpos calcinados
e desmembrados os despojos dos seus entes queridos, ficaram.Havia um Moçambique
a construir, e não afirmava a Imprensa que foram as ForçasPopulares de
Libertação, o braço armado da Frelimo, que defenderam o povo e puseram fim à
contenda que ceifou vidas e haveres, que destruiu quase totalmente o parque
industrial de Lourenço Marques? Não diziam que foi a Frelimo o símbolo da Paz,
a abençoada pomba branca dosconturbados dias de Setembro de 1974?Que importavam
as afirmações de testemunhas oculares, de sobreviventes, que viramhomens,
armados e fardados com os camuflados da Frelimo, assassinando pessoasindefesas
e saqueando residências, embriagados no mesmo álcool sanguinário? Queimportava
— ou continua a importar tudo isso — se os comunicados oficiais e osartigos de
Fernando Couto e de seu filho Fernando Amado Couto, dois jornalistas
portugueses apregoadores das virtudes frelimistas e dos dons de líder de
SamoraMoisés Machel, afirmaram não ser verdade, nas páginas do «Notícias»? Não
se passara nada de anormal em Moçambique?Mas nada, absolutamente nada. Apenas o
poder efectivo popular estava na rua eos crimes tinham a denominação de acção
revolucionária. Havia um país a construir ea ocorrência era de rotina. Almeida
Santos diria, exactamente um ano depois, jáaboletado no Governo de Portugal a
que se grudaria:
«Que não
tenha sido possível evitar incidentes ao nível de populações carre-gadas de
ressentimentos, é algo que só não compreenderá quem se situe fora domundo real
e persista em elaborar os seus juízos a partir de um momentohipotético e
fantasista. Isto para não ter de recordar que alguns dos que maisnos criticam
foram directamente responsáveis por
esses
incidentes.
Estou alembrar-me da desastrada insurreição do Rádio Clube de Moçambique
quecausou à descolonização danos de incalculável dimensão...»
A fantasia ou
a desinformação estavam, como o futuro viria a provar, comAlmeida Santos. Pois
embora o seu Governo aconselhe e exija que é necessáriodesdramatizar a
descolonização, a escalada do terror apenas em Setembro de 1974teve início.
Essa data foi a partida para o desastre. O estertor prolongou-se.A história de
Moçambique, como país, só então nascia. Mas era escrita com letrasde sangue.
8 ÊXODO:
RESCALDO DO MEDO
Construir um
forte país era a intenção generalizada em quantos, brancos e negros,ficaram em
Moçambique após o 7 de Setembro. Pouco tempo volvido, porém, quandoa população
portuguesa se resume a uma minoria sofredora que martela pregos nosseus
contentores e procura passagens nas agências de viagens, todos receosos de mais
um Decreto, de mais um discurso de Samora Machel, de mais uma onda de
prisões,merece a pena recordar o que foram os últimos meses de terror. Nas
cidades, e poucos meses volvidos após a Independência, assiste-sea espectáculos
que jamais se imaginariam:Longas bichas de gente, de todas as cores,
estendem-se junto aos Consulados dePortugal, formadas desde as madrugadas.
Mulheres negras e mestiças, velhas e jovens, buscam homens solteiros, jovens ou
velhos, para casarem por um dia paraque, mercêde um simples documento legal,
possam ser consideradas portuguesas, adquirindo odireito a um lugar ao sol em
terras lusitanas. Mulheres mestiças e negras, jovens evelhas, pedem, imploram
nos cafés, nos bares, nos restaurantes, nas ruas, quequalquer português idoso
as perfilhe, por piedade, para abalarem de qualquer modo,de bolsos vazios, de
roupas coçadas, de olhos fartos de chorar, a caminho dodesconhecido europeu que
para todos simboliza liberdade.O que motiva este êxodo? O que obriga e empurra
os jovens negros para os balcões do Consulado, levando como documentos de
identificação a caderneta mili-tar e as mais diversas condecorações de combate,
e, implorando primeiro, pedindodepois, exigem a nacionalidade portuguesa? Não
era na realidade a Frelimo o guia do povo? Estariam errados os governantesde
Lisboa ao prometerem que as vidas e os bens dos portugueses estavamdefendidos, quando
os próprios naturais se sentem inseguros e assustados?O que sucedeu então?Quem
destruiu e como foi destruída a esperança que fez chorar de alegria osolhos de
tantos moçambicanos na noite de 25 de Junho de 1975, na grande noite
daIndependência, para que os mesmos olhos chorem agora de desespero e de
revolta?Onde está a liberdade, a tão apregoada liberdade, quando os calabouços
são poucos para os milhares e milhares de reclusos que não sabem porque foram
con-denados; para as centenas de pessoas que em campos de trabalho pedem por
cle-mência a morte, desconhecendo em que razões se baseiam os seus algozes para
osindescritíveis tormentos que lhes infligem, dia após dia, sem que um
tribunalqualquer os absolva ou condene?Onde está a liberdade, após a Independência?Estará
na fome que mata as enfraquecidas populações do interior, nas longas bichas
formadas desde as primeiras horas do dia nas ruas das cidades e das vilas em
busca de um simples pão para a boca, nas agressões dos homens fardados do
Partido,nas arbitrariedades dos oportunistas que formam os Grupos Dinamizadores
e as Comissões Administrativas de Trabalhadores, no poder cego e maligno
concedido aosComissários Políticos, que dispõem da liberdade e da vida de
quantos lhes caem nasmãos, nas promessas de guerra com países que sempre
respeitaram os princípios básicos das leis internacionais de vizinhança, ou nos
discursos agressivos doPresidente da República Samora Machel?Então, é essa
liberdade a razão do êxodo dos portugueses, dos indianos, doschineses e, sobretudo,
do próprio povo moçambicano. E é em nome dessa liberdade,que encheu de
parangonas a Imprensa mundial, é em nome da pureza ideológica e da unidade dos
princípios revolucionários marxistas, que todos os dias, a todas as horas,em
todas as regiões de Moçambique, as forças da Frelimo, o grande exército do
proletariado, composto por operários sem indústrias, e por agricultores
semcampesinato, fardados e armados, aquartelados e alimentados pelo Governo,
vai praticando as mais mesquinhas vinganças, apoiado por denunciadores que
atiçamódios em troca de situações políticas e de emprego.Motivos para as
capturas não é necessariamente importante que existam. Maseste estado de
espírito colectivo obriga a que o filho busque o pai junto das auto-ridades do
Partido, a mulher o marido, o marido a mulher, o pai o filho, quandoqualquer
deles demora no regresso ao lar. Em cada ausência imprevista todos os
seusfamiliares pensam que o ausente está na prisão, onde se encontra fulano
(que ninguémsabe porquê), onde está beltrano (parece que sem motivo), onde
estão ou estarãotodos os nossos amigos e inimigos.Estará neste regime drástico
de pavor, de intimidação, a causa do êxodo do povomoçambicano com rumo a
Portugal, ao Malawi ou à África do Sul?Por isso e por muito mais. O terror
impossibilita a expressão do pensamento. Oque se sabe ouve-se ciciado a meia
voz por amigos de muita confiança e em lugaresonde mais ninguém se encontra.
Quando é iniciada uma conversa logo alguém afirmaatemorizado: «Se não se calam
eu vou embora. Não quero ir para a cadeia».
É neste clima
psicológico que eu iniciei a Reportagem a que me propus,desafiando, com a minha
atitude, as represálias da Frelimo, da mesma forma que aenfrentara, de máquina
fotográfica e de caneta, nas nervuras traiçoeiras dos capinzaisdo interior, em
Reportagens de guerra.E a minha afronta era continuar a falar, já que não me
era permitido escrever. Umdos indivíduos que mais vezes me mandava calar era o
dr. B., um advogado. Homemidoso, honesto. Reside em Moçambique há mais de trinta
anos e não possui fortunanem economias. Aderiu na primeira hora à Frelimo, mas
com honestidade. Aprendeua dedilhar todas as teclas do socialismo científico,
empregando as teorias de KarlMarx e de Friedrich Engels quando queria convencer
interlocutores poucoacostumados a divagações filosóficas.Aceitou com prazer a
dupla nacionalidade sem trair Portugal, comprando destemodo o mais caro bilhete
para o Inferno. Nacionalizaram-lhe o escritório.Congelaram-lhe a conta bancária
— uma ninharia que não lembrava ao Diabo.Decidiu, como recurso de subsistência,
dedicar-se ao professorado e foi admitidocomo professor de Direito Comercial e
de Noções de Comércio. O vencimento queauferia, com esta nova profissão, não
satisfazia a sua forma normal de vida masalimentava-o e vestia-o. Conhecia pela
primeira vez na prática o comunismo queaprendera em teoria.Foi saneado por
informação de uma jovem professora primária, inexperiente, masfrelimista,
presente sempre à abertura de latrinas e às machambas do povo, com a suaenxada
oportunista que a levou, de um dia para o outro, de incompetente
professorarecém-saída do Magistério a inspectora provincial dos Serviços de
Educação emembro influente do Departamento de Educação e Cultura. O seu nome
interessa para quando for feita a biografia dos traidores de Portugal — é
portuguesa, e cruzará,qualquer dia, contigo em Lisboa. Trata-se de Fernanda La
Salette Teixeira.O dr. B., porém, considerando-se comunista, e por amizade,
aconselhava-me moderação no falar, quando eu referia injustiças, quando eu
falava sobre ocorrên-cias que vinham chegando ao conhecimento da Delegação do
jornal. Respondia-lhesempre: —
Vocês falavam
e deixaram de falar. Eu escrevia e deixei de escrever...
Na verdade eu
deixara de contribuir com os meus trabalhos para o preenchimento das páginas do
«Notícias da Beira». As minhas Reportagens iam pouco além dosdiscursos de gente
influente do Partido — que me eram entregues pelo Departamentode Informação e
Propaganda, e de descrições, mais ou menos curtas, claras econcisas, dos
ambientes onde os discursos eram pronunciados.Reportava as manifestações,
entrando sempre em choque com os exageros que lianos outros jornais, tanto no
que se referia ao número de manifestantes como aoentusiasmo popular.Escrevi
sobre a «Campanha de Saneamento do Meio Ambiente», iniciativa comque o Governo
tentou lutar contra a doença, mandando abrir latrinas junto a cadaresidência,
lugar de trabalho ou de concentração de massas, obrigando os brancos
portugueses, das cidades, a abandonarem os seus lares nas madrugadasdos
domingos, para voluntariamente abrirem, à força de enxada, junto aos casebres
dosnegros do interior, os buracos onde estes depositariam os excrementos.E era
feita chamada pelo secretário do Grupo Dinamizador do bairro, e registadasas
ausências, que, em falta de forte «sagwate» (gorjeta), seriam levadas
aoconhecimento das estruturas superiores do Partido.Esses brancos voluntários
ouviram, como eu ouvi, grupos de negros negarem-se acolaborar, afirmando
alguns:«Se não comermos não cagamos. Temos fome. Tragam-nos comida!»Os brancos
portugueses, porém, sujeitaram-se a todos os vexames, e isso fui euobrigado a
silenciar, quando, nessa humilhante sujeição, se encontrava verda-deiramente a
notícia que interessava a qualquer profissional de Imprensa. Mas aslatrinas
foram um fracasso, pois não haviam passado de um capricho do ministro daSaúde,
dr. Helder Martins, um dos dirigentes da Frelimo e um dos vinte médicos
queficaram em Moçambique depois da Independência, para assistirem a
umapopulaçãode nove milhões de pessoas.As latrinas foram um fracasso mas
proporcionaram, para gáudio dos dirigentes doPartido, motivos suficientes para
amesquinharem o português, para o humilharem, para o rebaixarem.Que prazer
sádico, que torrentes de gargalhadas, a substituir o tradicional rilhar de
dente raivoso, teriam despejado os generais sem estrelas do Partido
quandosouberam que, por ordem do comissário político de Tete, um grupo numeroso
deguerrilheiros, armado de Kalashnicov, invadiu a Igreja da cidade e expulsou
todos os cristãos, alegando, como motivo para a selvática vassourada na
Religião: «Hoje é Diade Latrinas, não é Dia de Deus».Esqueceram-se os fanáticos
socialistas da verdade de Claude Prévost, que tão bem se adapta à sua
marxizante atitude: «Dizer merda para Deus é prestar-lhe ahomenagem de que Ele
existe, o que deve ser a sua reivindicação estruturalmaispremente...».Desta
forma eu, não escrevendo o que queria, não escrevia o que o Partidodesejava e
ordenava. Mas aprecie-se, para necessário esclarecimento da situação daImprensa
moçambicana poucos meses após a Independência, os trabalhos apresen-tados numa
edição que passou a ser normal do «Notícias da Beira», escolhida
aoacaso:«Objectos imediatos do Partido na política interna é externa»Trata-se
de um artigo que refere um Congresso do Partido Comunista da UniãoSoviética, em
notícia da agência noticiosa comunista «T.A.S.S.».«China — Carta de oito pontos
sobre a produção agrícola»O autor é Paig Ming e o artigo foi extraído do «Chine
Features».«R.D.A. na via do socialismo — A construção socialista» Não traz
assinatura mas a origem é comunista e refere-se à Alemanha Democrática.«O
Congresso da Paz e do Bem-Estarȃ da autoria de Vladimir Lomeixo,
soviético.«Conquistas do Socialismo — O sistema educacional da R.D.A. — Informação
documental» Não assinado, o trabalho é possivelmente da autoria de um
dosredactores comunistas do jornal, salientando-se que José Quatorze havia, há
pouco,regressado da Alemanha Vermelha, onde se deslocara com o patrocínio da
Frelimo. Oconteúdoda prosa refere-se à educação na República Democrática
Alemã.«Cinco anos do Tratado de Moscovo»É seu autor Y. Zakharov e foi retirado
do «International Affairs».«Desencadear a grande ofensiva para libertar a
mulher»Artigo local, de espírito marxista, distribuído pelo Departamento de
Informação ePropaganda do Partido.O jornal tem ainda mais algumas pequenas
locais, com ideologia comunista, e,finalmente, uma notícia de Portugal com o
mesmo teor ideólogo:«Octávio Pato denuncia conluio da Direita»Falta examinarmos
as gravuras:Mao-Tsé-Tung, a três colunas, com a seguinte legenda:
«Mao-Tsé-Tung:Grande revolucionário e líder da revolução popular da China,
transformada hoje,apenas em pouco mais de trinta anos, num dos países mais
progressistas do mundo. Doterritório colonizado e pilhado pelas potências
ocidentais, através de uma linha justa, aRepública Popular da China obteve
estrondosas vitórias nos mais diversos sectores dasua vida.»Outra, de um grupo
de crianças loiras tomando uma refeição. A quatro colunas,assim legendada: «Os
jovens na República Democrática Alemã dispõem de um ensino verdadeiramente
revolucionário, que lhes permitirá prosseguir, concluídos osvárioscursos, a
consolidação das vitórias socialistas. Pondo a ciência e atécnica efectivamente
ao serviço do povo, o sistema socialista tem alcançado, ano apósano, sucessivas
e consideráveis vitórias no caminho do progresso, do bem-estar
social,daigualdade social.»O exemplar do «Notícias da Beira» a que jogo mão é o
n.° 9455. Serãoo «Pravda», ou o «Izvestia», mais comunista do que ele? Este
exemplar da Imprensamoçambicana teria maior aceitação nas ruas de Pequim, de
Moscovo ou de Berlim, doque nas artérias da Beira, de Lourenço Marques ou de
Nampula. E, por mais descabida que pareça a afirmação, os seus «fazedores» são
portugueses,mostrando todos eles, cinicamente, mercenariamente, uma adoração
cega, quase umcasamento com as directrizes do Governo e com as ordens da
Frelimo.O fim em vista desta actividade da Imprensa foi ganhar, com propagandas
integradas numa campanha organizada, mais adeptos à ideologiaimportada para
escravizar a maioria. E como numa guerra os meios não contam, nemhá lugares
para homens com escrúpulos — numa guerra política desta espécie,entenda-se—,
enganar e mentir passou a ser a Bíblia da Imprensa moçambicana, ondeeu não me
queria integrar.E essa foi, conscientemente, a razão do meu silêncio
profissional, que causouestranheza a muito boa gente e alertou as autoridades
governamentais.O Partido sabia que eliminada a oposição — mesmo que esta se manifestasse
pelo silêncio — as dificuldades que encontraria nas massas ledoras de jornais
seriamminimizadas. Deste modo estabelecia-se uma gentil troca de favores entre
a Frelimoe a Informação, desde que desse entendimento sobressaísse a sujeição
da última.O número de exemplares por edição, porém, diminuía. O povo
alfabetizado passou a desprezar os jornais e a odiar quem neles escrevia. O
Partido nãose importunou.As empresas editoras, que paradoxalmente continuaram a
ser consideradas particulares, deixaram de pagar aos credores, tendo esta
atitude o beneplácido do Governo. As contas de luz, de água, de telefones e
telex, foramtrepando nas Execuções Fiscais sem que o Governo se preocupasse,
passando aconsiderar essas dívidas aos cofres estatais como uma espécie de
disfarçado subsídio.Deixou de existir o pagamento às agências noticiosas por as
notícias por elasdifundidas não interessarem à informação moçambicana, passando
as fontes deorigem informativa ao domínio governamental, que ofereceu regime
exclusivista àA.I.M. (Agência de Informações de Moçambique) e aos serviços
noticiososdistribuídos pelas repartições de propaganda das embaixadas
comunistas. O papel, eoutras matérias-primas essenciais para a feitura dos
jornais, começaram a ser fornecidos pelo Governo, que, ao mesmo tempo,
subsidiava o aparelho bélico dedefesa das Redacções, traduzido pela presença
constante, junto dos edifícios daseditoras, de dezenas de «gorilas», armados
com armas soviéticas, para defenderemos
jornalistas
do povo
das
arremetidas das
massas
populares.
Aos
redactores e repórteres também pouco preocupou a situação de economiadecadente
das entidades editoras, pois a receita da venda de jornais, mesmo mínima,ia
sendo suficiente para os pagamentos dos vencimentos — embora liquidadoscom atrasos
— e essas importâncias eram os únicos débitos que a empresaliquidaria. Aliás, o
Governo e o Partido não se preocupavam em pedir contas aosmembros das Comissões
de Trabalhadores, desde que estes, por seu lado, não lhessolicitassem
financiamentos, permitindo este tácito acordo que os homens dos jornais se
aboletassem com os restos do banquete, a seu bel-prazer. Por mim passaram
débitos de garrafas de vinho, cervejas e pacotes de cigarros caros, em valesdo
repórter Mário Ferro para serem liquidados pela Comissão de Trabalhadores.
Eesta liquidou sem discutir, pois o crime, que se elevava a milhares de
escudos, fora praticado por um membro do Grupo Dinamizador, intocável,
portanto.
Os jornalistas
mercenários tinham, pois, pouco a perder e muito a ganhar com avenda da sua
consciência, restando-lhes, ainda, no arcaico baú das suas esperanças,
oregresso a Lisboa quando a vaca não mais pudesse ser ordenhada. E ali, junto
aos portugueses que tudo esquecem e que tudo perdoam, aguardariam, como
tantoscontinentais, assíduos mostruários de cafés sofisticados, que a política
deharaquirismo de Álvaro Cunhal tomasse de assalto, com a conivência dos
acordantesde Lusaka, ou de parte deles, os comandos estratégicos de Belém e de
S. Bento.Foi neste ambiente de traição que escrevi a Reportagem que só agora
ides ler,iniciada e quase completada em Moçambique, na relativa insegurança de
uma semi--clandestinidade jornalística, alheio totalmente a quaisquer
submissões à tutela mar-xista da Frelimo. Nela se encontrarão alguns esclarecimentos
a factos que as auto-ridades portuguesas teimam em considerar secretos, para
por eles nãoresponderem perante os portugueses.Aceito as consequências do meu
acto. Ele tinha de ser praticado.l Preso em Quelimane após a queda do Governo a
que pertencia, foi diversasvezes agredido na prisão. Velho e puro democrata,
abandonou a prisão para morrer nasua residência. Um dos seus assassinos foi
Castro Lobo, já então elemento directivodo P.I.C.
SEGUNDA PARTE
UM MOÇAMBIQUE
A DESTRUIR
9. A
GERALDINA FRANCISCAE AS CONTRADIÇÕES DE SAMORA
Corria a
manhã de 10 de Dezembro de 1975, uma manhã quente e húmida, domais tórrido
verão moçambicano.Chovera durante a noite, e as terras ressequidas retiveram a
água que, evapo-rando-se com o calor da manhã — quarenta graus marcava o
barómetro—, formavauma pegajosa humidade que me molhava o corpo. No meu
gabinete da Delegação eu dava por finda a tarefa do dia, adiando unstrabalhos
que tinha entre mãos, pois o aparelho de ar condicionado avariara uns diasantes
e o ambiente sufocava. Tete, cidade que sempre afligiu os europeus, punha
maisuma vez em experiência a sua resistência a climas do Inferno.Preparava-me
para sair quando uma mulher ainda jovem, de olhar assustado,molhado por
lágrimas recentes, me travou o passo. Contou-me uma longahistória
e,
pediu-me que
a publicasse no jornal.Chamava-se Geraldina Francisca e era parteira do
Hospital da ZAMCO, no Songo,o consórcio empreiteiro construtor da barragem de
Cabora Bassa.Meses antes, e depois de ter sido perseguida por um comandante da
Frelimo, echefe do Corpo de Polícia de Moçambique naquela localidade, que a
desejava paraamante, passou a ser vítima de diversas injustiças permitidas pelo
poder do jovemcomandante. Eram perseguições exercidas por todos os meios,
difamações e insultos,sem que ela — dizia-me — lhe retrucasse qualquer palavra,
ou gesto, que a ele desseoportunidade de a deter. —
Eu enojava-me
o homem. Era um mulherengo e eu sou uma mulher séria.Não quero dizer que já não
tivesse tido um marido, mas desse gostava. Mas ocomandante queria-me para
amante, mesmo havendo em Cabora Bassa umaporção de mulheres mais bonitas e mais
novas do que eu, que não seimportavam de pôr-se à disposição dele ...
—
E depois?
— pergunto
apressando o seu relato. —
Como nunca me
conseguiu convencer —
continuou —
atirou-se a
uma colegaminha, mulher que mais tarde fez barulho e foi presa. Mandaram-me
chamarpara depor e, pelo caminho, quando seguia no jipe da Polícia, que era
conduzidopor
um guarda
embriagado, o jipe chocou com outra viatura. Fui transportada para oHospital do
Songo e dali fui evacuada, em perigo de vida, para a Rodésia, por viaaérea. O
tratamento custou-me quinze mil escudos.
—Se lhe
aparecesse na Redacção uma carta a dizer que o Comissário Polí-tico de Tete era
um ladrão, que andava a passear num bom automóvel, como umburguês, enquanto o
povo passa fome, o camarada publicava?
Percebendo a
maligna intenção da pergunta respondi: —
Não me
apareceu nenhuma carta com
esse
teor, pelo
que está forade propósito a pergunta. Não respondo.
—
Oh camarada!
— diz Nenhum
Fica para o terceiro juiz —
Escreva isso,
sim?Escreva isso! ...
O outro
procura papel, não o encontra, e vai buscá-lo a uma sala ao lado.
Quandoregressa já Nenhum Fica havia mudado de ideias: —
Não escreva,
camarada. Essa coisa do Comissário Político ser ladrão, ede andar a passear de
automóvel pode causar confusão. Ë ou não é?...
Concordam
ambos e eu fico a pensar, mais uma vez, no Presidente Samora e nosseus É ou
não é?
que Nenhum
Fica imita tão bem.Qual seria a personalidade daquele homem raquítico, inculto,
a quem ofereceram os poderes de um Comissariado Político, esses poderes
ilimitados que manejam a liberdadede qualquer cidadão nacional ou
estrangeiro?Via-se que lhe entregaram uma cartilha a soletrar e que a decorara sema
compreender. Nenhum Fica retorna a falar nos inimigos do povo, nos inimigos
directos, indirectose camuflados, e repete a parte do discurso que lhes
é
dirigida. Não
o oiço e remexo-mena cadeira, nauseado com tamanha farsa.A que conduziria
aquela comédia?O que me aconteceria após o discurso bisado daquele actor
semi-consciente, semi-lider improvisado ao serviço de uma ideologia esquerdista
trabalhada, reelaborada, quelhe fora injectada em doses maciças superiores à
sua capacidade deentendimento?Olho o relógio e penso que a São deveria estar
aflita com a minha demora. Sãoseis horas da tarde, e já haviam decorrido cerca
de três horas desde que ali entrara,todas elas preenchidas com os discursos de
Samora Machel recozinhados na boca de Nenhum Fica.Mostro o meu desejo de
telefonar para casa para
dar umas
instruções urgentessobre o jornal.
Autorizam-me
mas sou acompanhado por um elemento da Frelimo,um homem ridículo, antigo
comerciante dos arredores de Tete nos anos da guerra, eque, por ter alimentado
os guerrilheiros nessa fase crítica do Partido — o mesmo quefazia aos soldados
de Portugal — merecera o lugar de
relações
públicas doComissariado Político,
uma mistura
de carcereiro para os
criminosos,
e demesureiro
para os
patriotas.
Um
guerrilheiro armado também me acompanhou aotelefone num outro compartimento, e
sinto, mesmo sem olhar, o cano da suaKalashnicov apontado na minha
direcção.Informo a São, como disfarce, que preste atenção e grave um programa
doPartido, que iria para o ar, como todos os dias, pelas 18,30 horas na voz do
jornalistaSantos Martins, e afirmo-lhe que estou no Comissariado Político, que
não existem problemas, e que quando saísse seguiria directamente para casa ou
lhe telefonaria.
Abandonei
contente o compartimento de onde telefonara, pois tinha informado afamília do
lugar onde me encontrava.Mal penetro no gabinete volto a ser interrogado por
Nenhum Fica: — O camarada... o senhor... acha que procedeu bem ao enviar a
carta para o jornal?... Acha que prestou um bom serviço ao Partido e a Moçambique?...
Ou, pelocontrário, fez o jogo do inimigo da Revolução Socialista? — Cumpri
apenas o meu dever — respondo—. Estas cartas destinadas à Parti-cipação Popular
nem sempre passam pelas minhas mãos. Podem ser remetidas directamente pelo
Correio, bastando apenas que o seu autor se identifique.A carta da enfermeira
Geraldina passou por num, mas podia não ter passado. Era publicada na
mesma.Interrompeu-me: — Estão a ver?... Ele está a... Como se diz Está
a...Quero ajudar o meu juiz mas receio que a minha interferência sejamal
interpretada. A ajuda partiu do seu camarada Cândido: — A divagar ... — Isso
mesmo. Sempre gostei muito desse termo. Divagar... Ele está a divagar,não é
isso camaradas? Ë ou não é?...Escreve a palavra divagar num bloco que lhe é
posto sobre a secretária e usariaesse termo mais dezasseis vezes durante a
reunião, olhando sempre para o blocoantes de o pronunciar. — Camaradas — diz o
Advogado do Diabo—. O camarada Passos parece queestá nervoso. E falando para
mini: Alguma vez ouviu falar que aqui batiam, amar-ravam ou prendiam? Responda
com franqueza! — e sorriu-me piscando um olho.Atribuo um preço à minha
resposta. O que me valeria a mentira, se afirmasse quedesconhecia as
arbitrariedades de que muitos meus conhecidos foram vítimas, alimesmo, no lugar
onde eu me sentava, abandonando aquele gabinete repletodesangue?Lembro, só para
mim, a agressão bárbara de que foi vítima José Manuel, ummoço português
empregado do Bar Pic-Nic. Por uma denúncia não confirmada, deuma mulher
qualquer, que afirmara ser ele possuidor de armas, foram buscá-lo à
suaresidência. Mal abandonaram a zona mais povoada da cidade amarraram-no, por
forma a que as cordas, apertadas com rancor, lhe dilacerassem as carnes.
Colocaram-nosobre um camião, e para que ninguém se apercebesse da carga que a
viaturatransportava obrigaram-no a deitar-se sobre o chassis, ao mesmo tempo
que oshomens que cumpriam a horrível missão de captura colocavam os pés sobre o
seucorpo. No Partido — onde eu agora me encontrava — e como recepção, perguntaramaos
seus captores quem era a vítima. A resposta foi curta: — Não vêem que é um cão
de um português?Foi ouvido pelo mesmo trio e novamente agredido. Levaram-no
para o Batalhão,nas proximidades do Aero Clube — a agremiação mais sofisticada
da cidade — e todos os guerrilheiros, em número de dezenas, o pontapearam e
agrediram, deixando-o bastante ferido.Uma semana depois, e por não se provar a
acusação, o José Manuel foi posto emliberdade.Pediram-lhe desculpa.
«Fora um
erro»
—
disseram-lhe. Mas ele trazia nos ouvi-dos os enraivecidos insultos de que fora
alvo, por ser português, e as cicatrizes dosmaus tratos que recebera. —
Responda de
qualquer modo!
— diz o
Advogado do Diabo, e eu já atribuirá o preço à minha resposta: —
Já ouvi... e
vi marcas nos corpos de pessoas que caíram como eunas
vossas
mãos.
Fotografias e depoimentos gravados estão em lugar seguro,
eserão
vistos e
ouvidos se eu desaparecer ou quando algo de anormal meaconteça.
Pareceu-me
ser ódio, espanto, o que vejo no olhar de Nenhum Fica. Ele estava detal modo
seguro na pele de inquiridor que não desejava, nem a sua formação políticalhe
permitia, ver em mim mais do que uma massa informe, despersonalizada,esmagada
ao peso da culpa e do medo. —
Tem então
medo de ser preso?
Não respondi.
—
Fizeram-te
uma pergunta!
—
empertiga-se Nenhum Fica. —
Ele está
nervoso. Deixe-o lá, camarada!
— interveio o
Advogado doDiabo. Nenhum Fica rectifica-o: —
Não podemos
ser comedidos com os inimigos do povo, especialmentecom os inimigos camuflados.
Esses
estão no nosso
seio e atiram-nos balas deaçúcar, que ferem mais do que as balas dos inimigos
directos — os soldados doexército colonialista que derrotámos. Parecem ser dos
nossos e não são ...
E voltei a
ouvir, tim-tim por tim-tim, as palavras do discurso de Samora Machel,sentindo
que tudo aquilo era de mais para os meus nervos submetidos a tensão.Tornam a
ler-me a carta da Geraldina Francisca, a fazer sobre ela reparos, e ordenamque
fizesse a minha auto-crítica.Respondo que mais nada posso acrescentar. Que
cumpri o meu dever de jor-nalista. Que me era impossível proceder de outro
modo. Que em idênticas circuns-tâncias voltaria a proceder assim ...Sou
interrompido: —
É uma ordem.
A partir deste momento tudo o que escreveres teráde passar primeiro por
este
Comissariado.
Ouviste? É uma ordem minha... Ëuma ordem do Comissário Político Nenhum Fica...
E iniciou um
discurso: —
Escreva aí,
camarada! ...
Pela primeira
vez o Cândido pega na caneta e preparou-se para escrever numafolha de papel
virgem: —
O jornalista
Inácio de Passos... como é o nome todo dele, comoé? Dito-o para o papel. Ele
prosseguiu: —... é um reaccionário e um inimigo do povo. Provou-se que lhe foi
possívelevitar a publicação da carta da camarada Geraldina. Com a sua
atitude... Está bematitude, camaradas? ...Há gestos de apoio. —... com a sua
atitude beneficiou os inimigos da Revolução. É um inimigocamuflado, mais
perigoso do que os inimigos directos e indirectos. £ um dessesinimigos que
estão no nosso seio e que nos atiram balas de açúcar que ferem mais doque as
balas dos inimigos directos. Camarada, escreva isso tudo. Ë muitoimportante...
Parecem ser dos nossos e não são. Estão camuflados no nosso meio.Imitam os
nossos gestos, as nossas atitudes... Ganha a batalha e conquistada a inde-
pendência, total e completa...Interrompeu-se: — Está a escrever tudo, camarada
Cândido? Está? ... O outrorespondeu afirmativamente. — ...aparece um novo
inimigo. O inimigo que ontem nos atacava de umaforma, ataca-nos hoje de outra,
procurando destruir-nos através dos seus agentes.Quem são esses agentes?...Vejo
que a pergunta não me é dirigida e o Cândido e o Advogado do Diaboolham um para
o outro. Nenhum Fica levanta-se, querendo parecer imponente, e,dirigindo-se na
minha direcção mas olhando além do meu corpo, como se falasse para uma multidão
de ouvintes entusiasmados pela sua dialéctica, terminou, de braçoerguido e
punho fechado: — É a burguesia! ... É a burguesia! ... Ê ou não é? ...Dão-me a
liberdade depois da interminável lenga-lenga, sublinhando NenhumFica que por
ora estava livre mas que não me era permitido abandonar a cidade.Reencontro a
rua e respiro com sofreguidão o ar cheio de perfumes da noite.Apetece-me beber
um copo de cerveja em qualquer lado, como se uma febre interior mequeimasse as
entranhas. Dirijo-me ao Bar Pic-Nic, mas já se encontra encerrado. Eu perdera a
noção do tempo. Pergunto as horas: Passa das dez e meia da noite.
Haviamdecorrido cerca de oito horas desde que me sentara no gabinete do
ComissárioPolítico da província de Tete.A cidade parece-me menos feia. O ar
quente da noite é absorvido com prazer pelos meus pulmões saturados do fumo que
receberam no gabinete acanhado de ondesairá.Entro num café, ainda aberto, e
tomo uma «bica»
e
um copo de
água, quando ocorpo me pede cerveja. Mas o Partido decretara a proibição de
venda de bebidas alcoólicas depois das vinte e uma horas. Sorrio para toda a
gente, sentindoquetodos conheciam a minha história como se ela pudesse ser lida
no meu rosto.Repito o café com prazer, com deleite, com sofreguidão.Uma criança
da idade do meu filho passa junto de mim, aproxima-se daminha mesa e
acaricia-me com o olhar. Sinto que a minha mão é atraída para os Encarreguei a
São de destruir tudo o que me comprometesse. Com a colaboração* de um moleque
de confiança, há muitos anos ao serviço do meu lar, foi aberta umacova no
quintal — a que o meu filho de cinco anos chamou latrina — e os
objectoscomprometedores foram atirados para ela e regados com petróleo.Em
poucos minutos, importantes pedaços da minha carreira profissional, arquivadoscom
entusiasmo, foram pasto das chamas.A São atirara também, ingenuamente, para o
braseiro outros objectos inúteis — lâmpadas velhas, frascos de «spray», etc.,
que encontrara na despensa, motivando uminofensivo mas barulhento tiroteio.Pode
parecer ridícula esta descrição mas ela é necessária para retratar o clima
deterror que se vivia, pois as prisões sem motivo sucediam-se
indiscriminadamente. Eessas ocorrências, que nunca tinham honras de Imprensa,
eram contadas entreamigosaumentando o cenário onde o pânico se expandia em
campo propício.Um mestiço de Moatize, de nome Áfrico, afirmara junto de uma
roda de amigosque não acreditava na Imprensa moçambicana e dera um exemplo: —
Vocês já viram que os jornais só falam do M.P.L.A., dando a impressão de queem
Angola não existem uma U.N.I.T.A. e uma F.N.L.A.?... Já repararam que se
elestivessem o povo a seu lado não necessitavam dos cubanos? ...Foi preso e
colocado incomunicável numa sela. À noite sua mulher caminhava narua
transportando numa marmita o jantar do detido, quando foi abordada por) umamigo
a quem contou a detenção do marido. Não se abriu em pormenores e o amigo
afirmou-lhe que daí a pouco levaria um pacote de cigarros à prisão.Esse
indivíduo, de nome Loures, levando ao prisioneiro um pacote de cigarros euma
cerveja entra na área da prisão mas só a abandona quatro dias depois. Todo
otempo passou-o descalço a «capinar» uma vasta área, cumulado constantemente
comofensas e insultos. E não foi agredido por ser proprietário de um bar onde
oscomandantes guerrilheiros se embriagam, liquidando as contas com «vales» que
nuncasatisfazem em dinheiro.Tudo isto se sabia, e quantos chegavam do Sul
transportavam consigo muito mais para contar na roda de amigos, ocorrências que
acabavam por percorrer todos osouvidos dos assustados portugueses. Por outro
lado, proliferavam os assaltos eoCorpo de Polícia de Moçambique olhava
indiferente quem se atrevia a participar oroubo de que fora vítima.Os alvos dos
larápios, como é óbvio, eram as residências portuguesas, os bares, osrestaurantes,
os estabelecimentos comerciais, ainda propriedade de lusitanos. A
estesassaltos, de que nunca eram descobertos os autores, não escaparam em Tete
aRecebedoria de Finanças, O Banco de Moçambique, e o Instituto de
Crédito,mostrando o à vontade com que as quadrilhas actuavam.As mulheres temiam
sair à rua para não chocarem com esbirros da Frelimo, ereceavam ficar em casa
para não serem agredidas pelos larápios. A cidade rés piravamedo
e
via-se na
forma de falar, nos gestos, nas reacções de todos os habitantes, quese estava
às portas do pânico.
Ao se
imiscuir nos assuntos africanos — e Angola é o mais cabal exemplo — aUnião
Soviética não esconde os seus interesses imperialistas. Pelo contrário,
mostra-os claramente como dominadora.Onde estranhar, então, que Samora Machel,
sacrificando ainda mais o povo doseu país, proporcione a Moscovo a tentativa de
desmantelamento dos governosocidentais africanos, atirando o sub-continente
para a guerra? Mas quem se espantaainda, se olharmos à obsessiva mescla de sadismo
e de ódio que dirige todas as suasúltimas atitudes políticas?
15. O CAOS
ECONÓMICO
«Destruiremos
a pobreza através de uma estratégia económica correcta,baseada nas necessidades
do povo. Sabemos o que o povo quer e o nossoproblema central c destruir a estrutura
colonial que está profundamentearreigada. Por isso temos que libertar os
espíritos das pessoas, libertar a suainiciativa criadora. Assim, definimos as
aldeias comunais como locais onde opovo está organizado, executará tarefas
definidas, terá programas, e utilizarácorrectamente as suas próprias forças. E
o desenvolvimento começará no campoe será apoiado pela indústria...»—
afirmou
Samora Machel ao jornalista D. Martin,do «Observer», quando aquele repórter
focou o problema da miséria do povomoçambicano, já impossível de
disfarçar.Segundo o Presidente Samora Machel, para vencer os graves problemasde
economia que afectam Moçambique, é apenas necessário libertar o espíritodas
pessoas. Libertar a sua actividade criadora é enclausurar o indivíduo emcampos de
trabalho — aldeias comunais — e dar-lhe tarefas definidas —
trabalhoforçado.Poucos meses após concedida esta entrevista os resultados da
medicação comu-nista estão patentes aos observadores. Mais uma vez os modelos
extraídos de umasituação histórica estranha a um país, transportados para ele
dão como resultadoofracasso.Do interior do país, em intermináveis caravanas,
milhares de agricultores famin-tos, que recusam o trabalho forçado nas
machambas colectivas instituídas sob terror, buscam protecção nas cidades onde
os empregadores escasseiam: as indústriasencontram-se paralisadas ou são
dirigidas por inexperientes comissões administrativas,as empresas
economicamente sólidas vão-se enfraquecendo com as exigênciassalariais, a
construção civil, parcialmente amorfa desde a Independência, foi forçada
acessar completamente a sua actividade com a nacionalização dos imóveis, e
aactividade bancária, que já desertou do interior, não concede créditos por não
possuir uma carteira de depósitos que justifique uma actividade credicial.As
avalanches destes agricultores, que se sentem desenraizados nas florestas
decimento, aumentam o palco da fome, bordão que os apoia para as veredas do
crime.Os estrangeiros partiram, em busca de liberdade, para os países
ocidentais, e osmoçambicanos negros, que por motivos diversos não podem
imitar-lhes a fuga, passam clandestinamente as fronteiras para a Rodésia e para
o Malawi. Na área da Angónia,cerca de quarenta mil moçambicanos internaram-se
por terras estrangeiras entre Novembro de 1975 e Fevereiro de 1976, procurando
do lado de lá o direito àiniciativa privada, ao trabalho livre, à própria
liberdade individual. Isto confidencia-me um administrador de Distrito,
recentemente nomeado pelo Partido.Em qualquer região do globo onde uma política
deseje ser bem aceite pelasmassas a fome terá de ser destruída por meios
locais. Os governos comunistas, porém, dão aos problemas, sejam quais forem,
uma interpretação ideológica, jáque para eles não existe área de actividade
livre de ideologia. Lendo emcartilhas alheias, interpretam o seu povo com olhos
de estranhos no lugar e no tempo.Os sucessos obtidos muito longe do pequeno
mundo que governam, são consideradoscomo certezas de sucesso no seu
mundo.Passam-lhes despercebidos os anseios do povo e as suas tendências
naturais.Obedecem à União Soviética, a única pátria pura para eles, aquela que
não lhesmerece a mais pequena crítica e que é espelho do comportamento a que
obrigam oseu povo. A União Soviética sabe que o socialismo em liberdade poderia
ser terrivelmente perigoso para ela, bastando-lhe o exemplo de Pequim. Por isso
obrigatodos os governos, conquistados pelo seu imperialismo ideológico, a que
se sintamamarrados às suas ideias base, à sua directriz, às suas determinações,
passando acontar, para os governantes fantoches, primeiro o agrado moscovita e
só depois o bem estar do seu povo. E não há nada mais doloroso do que assistir
às constantestentativas para aplicar a um país africano, no final do século XX,
as teorias, possivelmente usadas com relativo sucesso por Lenine na Rússia em
1917.O resultado da experiência pode encontrar-se já no caos económicode
Moçambique e não vale a pena culpar o colonialismo para atirar poeira aos olhos
dosobservadores, como disfarce simplista
e
grosseiro.
Para o Governo, porém, e para aImprensa que o adula, pouco importam, no
momento, as realidades subterrâneas se afachada construída resiste. Vejamos,
pois os graves problemas da economia, e como justifica a Imprensa, ou tenta
justificar, as faltas de produtos de primeira necessidadeque contagiam a fome a
quem ainda tem meios económicos para a debelar:
«A falta de
farinha de milho no mercado, alimento básico das populações demenores recursos,
deve-se à inexistência de milho, em virtude de umaavaria registada no desvio
ferroviário...»«...a propósito da escassez de pão de trigo, neste aspecto não
existe falta dematéria-prima, mas as empresas lutam com falta de pessoal
qualificado para obternão só o máximo rendimento da linha de montagem em
funcionamento, tuasainda para pôr em funcionamento uma nova linha de montagem
...»«...o
pão de trigo
que tem aparecido nas últimas semanas, para além de serpequeno, é de fraca
qualidade. O pão apresenta-se compacto e isso deverá sermotivado pela falta de
sal ou de levedura e ainda devido a misturas...»
Isto
escrevia-se no «Notícias da Beira» no dia 12 de Março de 1976, mas o povonão
aceitou as justificações inventadas e reclamou, sendo necessário o uso da força
policial em diversas bichas formadas em vários estabelecimentos da Beira. O
jornal foi forçado a mudar a sua forma de observar o problema e, na edição
seguinte, afirmavacautelosamente:
«Têm-se
registado, nos últimos tempos, uma falta considerável deprodutos de primeira
necessidade para a alimentação. As causas para a existênciadesta situação são
variadas. Entre elas destacamos avarias técnicas e
escassez
deabastecimento
por parte dos centros produtores ou por quebra de produção oupor falta de
transportes. O que é certo é que a falta de produtos alimentares temsido muito
sentida pela população. Entretanto, prevc-se que já esteja normalizadoo
abastecimento de arroz. O carregamento do produto, vindo do Paquistão,
jáchegou, e a partir do início da corrente semana começou a ser distribuído
nomercado. Por outro lado, junto às padarias, têm-se formado ultimamente
grandesbichas para a aquisição de pão, em virtude da quebra de produção
registada
...»
Sob o domínio
da embriagues política, os jornalistas vão enganando os leitorescom meias
verdades, dando-lhes esperanças infundadas, aguardando com paciênciaque os
peditórios, feitos a nível internacional pelo Governo de Moçambiqueresultem,
para que o povo tenha alguma coisa para enganar a fome.Será aberrante
acreditar, porém, que esses auxílios venham solucionar o caoseconómico do país
sem um esforço interno e este não existe. A produção é nula e ossalários
treparam, após reivindicações exageradas, cinco e seis vezes. As
primeirasexigências salariais, após a Independência, tentaram colocar o salário
mensal mínimoà razão de 600 escudos diários, e a justificação que encontravam
para a tola exigênciaera política e revolucionária: Terminar de uma vez para
sempre com os antigosexploradores, os exploradores feudais.A generosidade
governamental, que não se elevou a esse extremo, encaminhoudezenas de empresas à
falência, causando maior número de desempregados. Simul-taneamente os técnicos,
perseguidos, injuriados, regressavam a Portugal e osseuslugares eram
preenchidos por operários inexperientes a quem era proporcionada uma reciclagem
que, mesmo assim, não os preparou para tirar partidodas máquinas demasiadamente
sofisticadas para os seus frágeis conhecimentostécnicos.Grandes complexos
industriais paralisaram temporária ou definitivamente a suaactividade, mas
mesmo dessa caótica situação o Governo moçambicano quis tirar partido político
inventando culposos.Dou, como exemplo, o que se passou na C.I.G.O.M.O.,
importante empresa detransformação de sisal, situada na zona industrial de
Nacala. Esta empresa passou ater, após a Independência, um encargo de salários
da ordem dos 900 mil escudosmensais, e o jornalista encontrou como motivo para
a sua paralisação temporária oseguinte:
«Os Estados
Unidos da América eram, nos anos anteriores, osprincipais consumidores deste
produto da indústria moçambicana, mas, napresente fase, ainda não se mostraram
interessados na sua compra. Algunsresponsáveis daquele complexo industrial
pensam que a posição dos EstadosUnidos da América seja motivada por razões de
ordem política.»
Esqueceu o
jornalista Mário Ferro, autor deste bocado de prosa publicado no«Notícias da
Beira», que os responsáveis que assim pensavam — e pensariam mesmo? — eram os
membros do Grupo Dinamizador da empresa, membros políticos, portanto. Não
disse, também, que as exigências dos trabalhadores — sancionadas pelo mesmo Grupo
Dinamizador — e a diminuição de produção, criaram à empresadificuldades de
carácter económico-financeiro que se fizeram sentir no preço do pro-duto,
colocando-o muito acima da oferta da concorrência internacional.Atirou apenas
as culpas aos Estados Unidos da América, um país de políticaocidental, boa
razão para mais uma vez se apreciarem as vantagens do comunismo.Esvazia-se o
capitalismo de uma virtude, implantando mais solidamente no coraçãodas massas o
amor ao socialismo russo.A produção de açúcar baixou em cerca de 60 por cento
na primeira apanha após aIndependência, e a Imprensa disfarçou o fracasso
acusando os agricultoresestrangeiros de sabotagem económica. Foram saneados os
dirigentesadministrativos,estrangeiros também, mas a verdade tornou-se impossível
de camuflar por mais tempo: A produção baixou por falta de trabalho e pela
existência deliberalismo e de anarquia na classe trabalhadora.A decepção dos
dirigentes, quando constataram que a classe operária se batia acimade tudo pela
sua comodidade individual, manifestou-se com rancor. A Imprensaacusou os
trabalhadores de terem deixado na terra grandes quantidades de cana por colher.
«Foi cortada
a 60 centímetros do solo!»
— explicaram
os jornalistas, usando asmãos como fitas métricas. Houve reuniões com as
estruturas do Partido.Os comissários políticos encontraram-se com os
trabalhadores nos próprios locaisdetrabalho. Deram-se «vivas» ao Presidente
Samora Machel e à Frelimo. Mandaram-se «abaixar» a preguiça e os malandros. E
os trabalhadores gritaram e aplaudirame cantaram canções revolucionárias. No
dia seguinte tudo continuava na mesma.A desorganização e a anarquia haviam
penetrado em todos os sectores deactividade e os que desejaram suster o
desastre foram encarcerados,maltratados, expulsos do país. Permitia-se que
irresponsáveis se entregassem aataques torpes e insensatos aos que tentavam
travar o desastre económico do paíscom a audácia que as circunstâncias exigiam.
Esses, rotulados de exploradores e decolonialistas, embarcaram contrafeitos nos
«jumbos» para Lisboa.Os, observadores internacionais olhavam estas bizarras
cenas com curiosidade ecomentavam desfavoravelmente a política moçambicana, não
escondendo oespanto que a todos causava o caminho de auto-destruição que
Moçambique trilhava.Viam nas «bichas» citadinas, junto aos estabelecimentos, a
montra docaos económico, da fome, da miséria colectiva, e do que viam iam
informando osseus países. O correspondente da B.B.C, reportou esta situação, em
curta notíciado seguinte teor:
«Nas ruas do
Maputo, a antiga e rica cidade de Lourenço Marques, vivem-seespectáculos nunca
presenciados. O povo passa horas, desde o nascer do sol, em longas bichas para
adquirir pão. A maioria destas pessoas é africana. Outraslongas bichas, desta
vez compostas por gente de todas as raças, são assinaladas junto das empresas
aéreas e das agências de viagem, em busca de vagas nosaviões para abandonarem
Moçambique. Embora estejamos em Março, todas aspassagens aéreas para Portugal
estão esgotadas até fins de Julho.»
O correspondente
da B.B.C, foi expulso de Moçambique. Não era esta a imagem que o mundo deveria
colher do país, mas aquela oferecida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros,
Joaquim Chissano, quando discursa nastribunas internacionais, sem outra
alternativa além da de renunciar à análise dos problemas nacionais para não
desmistificar o Partido e a ideologia socialista.Pode deste modo sobreviver o
regime comunista em Moçambique, mergulhadona doença, na fome e em perseguições?
A resposta é afirmativa. A solução foiencontrada pela Frelimo, com o auxílio do
Kremlin: Basta construir o homem novoenclausurando-o dentro de uma ideologia
que o iniba de olhar o mundo que o rodeia,obrigando-a a uma conduta falsamente
liberta.E para tanto acontecer Samora Machel possui a receita: «Por isso temos
quelibertar os espíritos das pessoas, libertar a sua iniciativa criadora». Mas
é dessaliberdade que milhares de pessoas fogem diariamente passando, com risco
de vida, asfronteiras rigorosamente policiadas.
16. AS
NACIONALIZAÇÕES
Vladimir Borodin,
num artigo publicado pela Imprensa moçambicana pouco apósa Independência — com
todo o destaque devido a um colunista soviético — diz queainda antes da grande
revolução de Outubro de 1917, Lenine frisava a necessidade daabolição de
propriedades privadas, fábricas, empresas, banca, caminhos de ferro, poissem a
sua transformação em património nacional seria impossível liquidar o domínioda
burguesia. E descrevia todo o processo leninista.O povo moçambicano tomava,
pois, conhecimento, por intermédio deVladimir Borodin, das instruções políticas
recebidas por Samora Machel dos seus patrões moscovitas.Samora Machel põe em
prática, sem organização, sem estruturas económicas,sem quadros, as realizações
de Lenine no princípio do século. Alheando-se às reali-dades moçambicanas,
plagia todo o processo comunista de nacionalizações semmedir as consequências,
sem verificar que a fuga do povo moçambicano para aEuropa e para outros países
africanos se devia à não concordância com a sua política. E, não se contentando
com a nacionalização das grandes empresas, com alutacontra o capitalismo, a
média e a baixa burguesia, faz mais pobre a pobreza,freando o desenvolvimento
económico sob um controlo estatal arcaico.Os primeiros meses de Independência
caracterizam-se pela progressiva agudi-zação da situação social. As ajudas
estrangeiras não resolvem o problema, poisos empréstimos não fazem mais do que
incrementar o déficit. As nacionalizações, repentinas e sem estudo prévio,
agravam ainda mais a situação económica efinanceira. Imprevistas, as
nacionalizações vieram imediatamente a seguir a umdiscurso do Presidente
Samora, e o povo não recebeu de bom grado mais essa provadeditadura.Foram
nacionalizadas as terras, porque apenas o Estado, que é popular, pode ser
senhor de propriedades. Foram nacionalizados os edifícios, porque as casas são
do povo. Foi nacionalizada a medicina, porque a saúde é um direito do homem.
Foramnacionalizadas as agências funerárias, porque é crime negociar com a
morte. Foinacionalizada a advocacia, porque a Justiça é popular. Foi
nacionalizado o ensino, porque todo o homem tem o direito de saber.
Filosoficamente, definindo a situação,afirmar-se-ia que tudo quanto existe em
Moçambique passou a ser do povo.Mas será assim?Vejamos, uma a uma, as medidas
de nacionalizações e as concretas consequênciasimediatas:
AS
TERRAS
Moçambique,
com uma área de cerca de 790 mil quilómetros quadrados, temgrande parte das
suas terras produtivas por aproveitar. As que de maior importânciaforam até
agora agricultadas deixaram de o ser ao passarem para o Estado, porque
pertenciam a particulares que se viram despojados do que lhes pertencia
eabandonaram o país. O Estado não possuía quadros técnicos para os
substituir.As produções, mesmo assim, reduzidas em proporção à capacidade produtora
dosespaços cultivados, são conseguidas em complexos agrícolas ainda
organizados, amaioria multinacionais, e não em iniciativas estatais ou do
povo.Toda a produção de açúcar parte de grandes empresas, nomeadamente da
«SenaSugar Estates», da «Açucareira de Moçambique» e da «Maragra».Os
plantadores particulares, localizados nos arrebaldes destas empresasde capital
estrangeiro, que auxiliavam a produção para que as fábricas laborassem em
pleno, foram os primeiros a abandonar os campos, forçados à desistência pela
faltade mão-de-obra. O moçambicano menos culto negou-se a trabalhar após o 25
deJunho, ou passou a exigir salários que nenhum empregador podia
satisfazer,transformando-se a mão-de-obra moçambicana numa das mais caras do
mundo.Os mesmos problemas passaram a afectar a produção de chá, na mão de
empresasdo Gurué, de Licungo e de Milange, nomeadamente os importantes
complexos agro-fabris dos grupos «Junqueiro», «Monteiro & Giro» e «Sena
Sugar Estates». Todasestas empresas baixaram as produções pelos motivos
apontados, e os mesmos problemas tocaram as concessionárias de algodão, de
quenafe, de arroz, de caju, detabaco e de copra, agriculturas exploradas, no
tempo português, por importantescolossos económicos, que caminharam com rapidez
após a Independência para o totalabandono pelas entidades empresariais, não
substituídas por competentesadministrações estatais mas por oportunistas Grupos
de Trabalhadores que asatiraram para a ruína.
As ricas
terras moçambicanas voltavam a ser selva. Cobriam-se as ruínas e as doresdo
desemprego e da fome com a bandeira marxista. Sob as bênçãos de
Moscovo,Moçambique afundava-se na mais confrangedora pobreza.O que restou?
Apenas aquilo que o povo cultiva junto ao casebre, produtos deconsumo corrente,
em quantidades muito inferiores às carências nacionais. Moçam- bique,
considerado oficialmente como um país de agricultores, passou a importar todos
os produtos agrícolas que consome.E, enquanto o povo se compenetra da real
ameaça soviética, o Governo segura-se àesperança das machambas colectivas,
distribuídas por comunas humanas. Mas o povonão apoia nem aceita essa tão
apregoada técnica comunista. Ninguém pode, de certeza, adivinhar o futuro, mas
a miséria e a fome actual são já importantes motivos de meditação.
OS EDIFÍCIOS
Serviu a
nacionalização dos edifícios para uma melhoria de vida das populações?Em
princípio cuidou-se que esta iniciativa do Governo moçambicano, que tanto
prejudicou a colónia portuguesa, viria solucionar o problema habitacional das
massasmenos favorecidas economicamente, proporcionando a grande parte das
famílias umlar. No dia 3 de Fevereiro de 1975 Samora Machel expressa-se neste
sentido:
«Agora vocês
não vão levar para os edifícios que eram dos colonizadores,para aqueles andares
todos, para aquelas casas que foram vocês com o vossotrabalho que os
construíram, com o vosso trabalho forçado e desumano, não vãolevar para lá as
vossas galinhas, os vossos cães, os vossos cabritos, os vossosporcos. Ë ou não
é?...»
E apreensivo:
«...Nem vão
levar para lá o pilão. Não vão levar para lá o pilão e bater com opilão lá em
cima. É ou não é?... Vocês a bater no pilão as casas vinham todascair cá em
baixo. Ë ou não é?...»
Eram, pois,
para o povo as casas nacionalizadas sem qualquer indemnização aosantigos
proprietários (falou-se nela, é verdade!), e assim pensou o povo, ainda
poucoacostumado às manobras políticas do Partido. A Imprensa, na sua boa fé
fez-se ecodessa opinião, e o «Notícias da Beira», em preâmbulo a uma espécie do
inquérito público, publicou o seguinte:
«O direito ao
alojamento, que corresponde à satisfação duma necessidadeessencial e elementar
de cada cidadão e da sua família, é objecto de umaespeculação sem limites, que
conduz ao enriquecimento escandaloso de um certosector da burguesia colonial,
eis uma das razões da recente nacionalização dosprédios de rendimento, expressa
num comunicado oficial, no dia seguinte àmedida ter sido anunciada pelo
camarada presidente. Por outro foramobjectivos concretos daquela decisão
governamental liquidar o racismo, adiscriminação racial e social que ainda
existem na nossa sociedade, acabar com adivisão para criar uma verdadeira
unidade de todo o povo sem distinções de espécie alguma e permitir ao povo
tomar a cidade, vivendo nela, deixando estade ser propriedade de um certo número
de exploradores que desprezam ostrabalhadores.Um outro objectivo da recente
nacionalização, igualmente importante, époder-se agora organizar no seio da
cidade uma verdadeira vida colectiva, isto é,organizar a democracia no seio da
cidade, de modo a que todos participem nadiscussão eresolução dos problemas da
vida colectiva, criando assim as basespara o exercício do poder popular
democrático, o alicerce político da nossasociedade, tal como também vem
expresso naquele comunicado da Presidência daRepública.»
É isso? ...
Pois bem:Cerca de um ano volvido, as rendas continuam elevadas, algumas até
subiram decusto, e os edifícios vagos continuam sem inquilinos para os
habitar.Apenas mudou o senhorio, que agora é o Governo da República Popular
deMoçambique, por intermédio de uma nova repartição que ofereceu lugares
optima-mente remunerados a um grupo de protegidos do Partido — na maioria
familiaresdos membros do Comité Central — e que foi denominada Administração
dos Prédiosdo Parque Habitacional do Estado, embora efectivamente a
administração seja exer-cida pelo Montepio de Moçambique ... umas das
estruturas colonialistas.Mas não só:Os atrasos nos pagamentos de rendas são
punidos com multas, e, sendo osenhorio apenas uma entidade, as bichas nos dias
de pagamento ocupam quilómetrosde artérias citadinas.O povo foi traído pela
demagogia governamental e continua a viver onde sempreviveu, sentindo nos
bolsos a mesma ausência de dinheiro para habitar a residênciaque deseja. O
direito ao alojamento continua a ser comprado ao capitalista, só que
ocapitalista agora è oEstado, que baseia a cobrança das rendas no seguinte:
«Tornar
possível recuperar parte do dinheiro aplicado na construção ou com-pra de
prédios, conseguidos através de empréstimos feitos pelos bancos estatais e
queainda estão por amortizar, possibilitando, por outro lado, a construção de
novashabitações, valer aos encargos das obras em curso dos prédios em
construção, queestão a ser levados a cabo sob a responsabilidade do Estado a
partir daestatização dos prédios de rendimento...»
Estas
afirmações não podem em hipótese alguma responder às interrogações do povo
ludibriado.Quanto gastou o Estado na aquisição dos imóveis?A resposta é: Nem um
chavo!Os antigos proprietários devem aos bancos estatais?Mas que bancos estatais?
Não passaram eles para o Estado sem queeste investisse na sua aquisição?E onde
estão os capitalistas, se o próprio Governo reconhece que os imóveis, por ele
nacionalizados sem dispender qualquer indemnização, pertenciam a pessoas que entre
as pessoas, onde não existem novos valores, nem condições e trabalhopolítico
que possibilite a formação de um homem novo.O aspecto caricatural da prostituta
na esquina ou no bar à espera de clientesé apenas uma pálida ilustração do que
é a prostituição. Nas concepçõesburguesas de vida e relações sociais não é
prostituta aquela que usa aliança,aquela que vai à missa, ou que perfilha os
padrões de honestidadeconvencionados.Também as relações entre as pessoas são
eminentemente políticas.O amor é um acto político. E quantos casais na prática
sabem responderpoliticamente às solicitações quotidianas? Quantos não esquecem
a política noescritório onde desempenham «um cargo de responsabilidade» ou na
sede doGrupo Dinamizador» onde não faltam a qualquer reunião?Para muitos a política
não entra na vida conjugal, nas relações entre aspessoas, ou por outras
palavras, a política, a ideologia está presente, mas é aideologia do inimigo, a
ideologia reaccionária, exploradora e individualista. Porisso, não devemos
pensar que, se acabarmos fisicamente com as prostitutas mais«visíveis» nos
centros urbanos, acabamos com a prostituição.A prostituição é inerente a um
determinado sistema, onde são dominantes asrelações de desigualdade entre as
pessoas, onde a ideologia dominante permiteque se forje a prostituição. Só
eliminando as causas, as próximas e as remotas, sepoderá eliminar a
prostituição. O mesmo será dizer que só destruindo o sistema,a sociedade
colonial-capitalista, só destruindo e eliminando a ideologiaburguesa,
acampamento inimigo nas nossas cabeças, só com a criação daSOCIEDADE NOVA, com
a criação de fundamentos materiais e ideológicos quepermitam a eliminação da
exploração do homem pelo homem, a criação doHOMEM NOVO, se poderá eliminar a
prostituição FÍSICA EIDEOLOGICAMENTE.»
Temos pois
uma nova definição de prostituição. Não é o amor, nem o acto queestá em causa
porque o amor
é um acto
político
. Uma mulher
pode ser honestadentro dos padrões da honestidade convencional, ser amiga do
seu marido, ser leal aolaço matrimonial, respeitá-lo em gestos e acções, nada
se lhe apontar dentro dasfronteiras da
honestidade
convencional
, mas se a
política — e tem de ser a daFrelimo — não entrar na sua
vida conjugal
, nas suas
relações
entre as
pessoas
, pratica
prostituição. Não é prostituta a jovem que, solteira, dorme com o guerrilheiro
da Frelimo, oucom
o
dirigente do
Partido, desde que leve bem dentro de si, a política socialistamarchelista. Não
são prostitutas as mulheres, jovens e velhas, que depois dos endiabrados
batuques realizados nos recintos da sede do Partido — e provo com a totalidade
doshabitantes das proximidades do ex-colégio João de Deus, na Beira — acabam
asmadrugadas em animalescas bacanais, porque trazem dentro de si a ideologia e
nãosão reaccionárias.
Não são
prostitutas as camaradas do Departamento Feminino, das bases guer-rilheiras da
Frelimo, que dormem cada dia com o seu camarada diferente, porque são políticas
e o acto é um acto político. Nem aquelas que encontrei no aquartelamentode M.
Pádua — nove mulheres totalmente sem roupa — na barraca do comandante
dodestacamento.Prostitutas são todas as mulheres, de todas as raças, que não
aderem àFrelimo. Prostituição praticam todos os homens que não levantam o
braço, de punhofechado, aos gritos histéricos de «Viva a Frelimo».As mulheres
encurraladas nos campos de reabilitação, desconhecendo a razão porque se
conservaram vivas no Inferno onde viram tantos morrer, praticarama prostituição
porque não frequentavam as reuniões de esclarecimento do Partido no seu bairro,
no seu emprego, porque não aderiram à Frelimo. E as que morreram, vitimadas
pelas balas dos seus algozes embriagados por álcool e por desejos de sangue,
eram prostitutas, praticavam a prostituição, embora fossem puras de corpo,
embora seconservassem honestas de pensamentos e de acções, fossem óptimas
esposas, mãesexemplares e cidadãs sem mácula aos olhos da honestidade
convencionada por todosnós.A sua prostituição foi, pois, unicamente política. E
por isso, leitor, nos campos demorte de Bilibiza, de Mandimba, de Tebamba, de
Nawá, de Ludiene, de Nova Freixo,de Mabaca, de Marrupa, da Base Beira, de
Luatize, da Base Central, de Atisel, deMsauíze, do Xiconono, e de outras
criadas, e de muitas outras que serão construídas, podes encontrar homens e
mulheres, com idades compreendidas entre os poucos diasde vida e os oitenta e
noventa anos que praticaram prostituição aos olhos dahonestidade não
convencionada, da honestidade política mesmo conservando-sehonestas, mesmo
pagando com a vida para continuar a serem até à morte.Foram transportadas como
animais em camiões de carga para os diversos camposde morte do Niassa, numa
viagem que demoraria cinco a seis dias mas que preencheu, totalmente, cerca de
um mês, porque os ordenanças do delirantesocialismo de Samora Machel, os
transportadores da carrada humana para o mata-douro, desejavam aproveitar a
fartura de fêmeas do curral volante para assuas torpezas de sexualismo viciado
e selvagem.Mulheres, crianças, entregues aos abutres que em Lusaka receberam
das mãos deinsignes portugueses, seus irmãos, a resolução dos seus destinos, as
suas própriasvidas.Todos nós conhecemos as fronteiras da honra e do pudor, das
gentes africanas,que vergastam as mulheres desde o nascimento: São vendidas
pêlos pais ao primeirohomem que lhes pague o «lobolo» e trocam de marido desde
que, com dinheiro ouvalores, o novo conquistador indemniza o marido traído.E
não há prostituição! ...A Frelimo, mesmo não apoiando o «lobolo», que considera
uma das tradiçõestribais a afastar do povo moçambicano, admite-o. E criou, em
sua substituição, ocasamento revolucionário, praticado entre os e as camaradas,
a qualquer nível, a partir do próprio Presidente. Samora Machel casou com Graça
Simbine, uma mulher que possuiu diversos maridos revolucionários, sem que o seu
casamento fosse regis-tado em qualquer repartição além do Partido, que o
autorizou.Samora Machel casara em Lourenço Marques antes de entrar narevolução.
Casou diversas vezes nos anos de combate. Apoderou-se de JosinaMagaia, após ter
assassinado o marido, um dos guerrilheiros de confiança do dr.Eduardo Mondlane,
o comandante Filipe Magaia. Assassinou Josina Machel porquesabia demais sobre a
morte do primeiro presidente da Frelimo e volta a casar comGraça Simbine depois
de endeusar o nome de Josina entre as componentes doDepartamento Feminino que
ela criou.Mas nunca praticou prostituição. Nem nenhuma das suas amantes. Mesmo
agora,que esconde o filho à curiosidade popular por não ser negro como ele nem
comoGraça Simbine sua última mulher — que também era casada em LourençoMarquesantes
da revolução — não acusa a mulher de prostituição. E a razão é simples:Todos
eles transportam para os actos de amor animalesco a política. Os seusactos de
amor são políticos. Não são reaccionários. Não fazem parte da
honestidadeconvencional. A política foi transportada para a sua vida conjugal,
mesmo que essavida conjugal apenas dure horas ou meses.O que pensaria, se
vivesse, da evolução marxista moçambicana, o seucriador Karl Marx?Os outros
prisioneiros, as outras prisioneiras, são Testemunhas de Jeová. Per-tencem à
seita religiosa sedeada nos Estados Unidos da América mas espalhada pelomundo
inteiro.Lidei com os membros desta religião, com os mesmos que hoje morrem
noscampos de trabalho e de extermínio da Frelimo em 1972, nas regiões de Gulemo--Balame,
na Angónia, onde cerca de quarenta mil se refugiaram a expensas doGoverno de
Portugal.Eram pessoas honestas e trabalhadoras.Ergueram, como se saltassem do
solo de um dia para o outro, mercê da vontadeférrea do homem, gigantescos,
embora precários, aglomerados humanos, que rodearamde evoluída agricultura.
Eram, na totalidade, malawianos e somavam cerca de quarentamil
almas.Desloquei-me, em aventurosa viagem, acompanhado de um administrador de
posto de Vila Coutinho, à região onde se acolheram e onde desejavam contribuir
nodesbravamento de terras, na agriculação, no progresso moçambicano. Não
possuíam outra política além da sua religião e o amor ao próximo, e haviamsido
expulsos do Malawi. O Portugal moçambicano acolheu-os e integrou-os
semdificuldade na sociedade local.Em Agosto e Setembro de 1975 a Frelimo quis
mostrar a sua presença bolchevista disfarçada de laicismo, e as quarenta mil
pessoas, e quantosmoçambicanos com eles estudavam a Bíblia, tiveram de
enfrentar torturas desumanas,espancamentos, roubos de dinheiro e as mais
infamantes sevícias.Os homens foram despidos e muitas mulheres foram
estupradas.
Em Setembro,
Outubro e Novembro de 1975, congregações completasforam transportadas para os
campos de extermínio, nelas se incluindo cerca de trêsmil moçambicanos, além
das dezenas de milhar de malawianos que se haviam refu-giado na
Angónia.Entretanto, dezenas de milhares de volumes com roupas, oriundos da
África doSul, legalmente despachados nos correios sul-africanos, vistos e
revistos pêlos serviçosalfandegários moçambicanos sem que qualquer atropelo à
lei fosse detectado, destinadosàs Testemunhas de Jeová, eram abertos em Tete,
por ordem do inspector da P.I.C., edistribuído o seu valioso conteúdo pelos
combatentes terroristas da Z.A.P.U., depoisdenominada Z.I.P.A., e pêlos
simpatizantes da Frelimo.Os volumes continham fatos, casacos, camisolas,
vestidos, sapatos,sobretudos, ofertas de instituições humanitárias
internacionais. Mas isso poucoimportou à P.I.C. da Frelimo. A Frelimo desafiava
as leis internacionais, apoderando-se do que não lhe pertencia, do que era
propriedade dos homens, mulheres ecrianças que assassinara ou enclausurara em
campos de trabalho.E, pasmai! o mundo aceitou todo este procedimento com
criminosa indiferença.Eu próprio vi os volumes armazenados nas instalações da
P.I.C. em Tete, assisti àsua conferência pêlos registos alfandegários, e ouvi
da boca do camarada JoséCastigo, que mostrava um rictus de estranha e patética
felicidade: —
Oh Passos,
isto vale mais de vinte mil contos! ...
Não respondi.
Tudo aquilo que estava frente a meus olhos, ocupando todas assalas do primeiro
andar do edifício, mesmo ao lado do Tribunal que deveria significar Justiça,
não tinha preço monetário. Valia as quarenta mil vidas destruídas pela Frelimo.
28. O
ASSASSINATODO POLÍCIA GRAÇA DINIZ
Massacres,
perseguições, lentos assassinatos pela fome, pela pancada, esquarte- jamentos,
têm-se acoitado à desculpa benevolente, e geralmente aceite, da política,
emtodas as
gerações.Grande
número destes acidentes históricos, para melhor serem tolerados e digerados
pela opinião do homem comum das regiões onde eles não têm lugar, jogam com a
palavra liberdade. A liberdade deu até agora um explêndido exemplar de
carniceiro.Os processos de tortura têm evoluído com o decorrer dos tempos, e
cada geraçãoanexa à experiência histórica das artes de matar novos processos de
destruição dohomem. Cada governo tenta superar o que politicamente lhe está
mais próximo, nos processos de tortura, criando organizações especializadas na
morte.A Frelimo não aprendeu na História nem disso necessitou. Não lhefaltaram
professores especializados na matéria.Os anos de treino na Argélia —
inicialmente — na Rússia e na China — depois— criaram técnicos excepcionais na
arte de matar, e vítimas para o holocaustodas macabras experiências não
faltaram em Moçambique. O país é grande eexiste muito espaço desértico onde
implantar bases de
reeducação, para
encurralar as cobaias humanas, arrebanhadas sem escolha entre os que não apoiam
os crimes da política marchelista. Se um dia alguém conseguir agarrar os
números dos que foramsacrificados ao processo de torturas frelimista, o mundo
verificará, abismado, que aFrelimo ocupa lugar de destaque na trágica história
universal.Falarei de uma vítima. Como símbolo. Falarei dela porque há
testemunhas ocularesque podem declarar perante a Justiça internacional, os
tormentos que viram inflingir aum inocente até à morte. Falarei da destruição,
fabricada com técnica sádica aoagente da Polícia de Segurança Pública, Adelino
da Graça Diniz, no campo de recuperação de Bilibiza, em Cabo Delgado (agora
Rovuma), onde outros como eleagonizam no momento em que, frente a teus olhos
está esta reportagem. Antes, porém,terei que recuar escassos meses, para que
melhor se entenda os
motivos da
sua morte.A Polícia de Segurança Pública em Moçambique, que dependia da
organizaçãocongénere metropolitana, era porém dividida em dois sectores que na
actuação não sediferenciavam: Os recrutados na antiga província e os que
zelavam pela segurançadas populações moçambicanas em regime de comissões,
enviados, portanto pela Mãe-Pátria, para o Ultramar. A única distinção
verificava-se no fardamento: Os agentes emcomissão continuavam envergando os
uniformes metropolitanos acinzentados e osrecrutados, na grande maioria
metropolitanos também, que entraram na Corporaçãoapós o cumprimento do serviço
militar em Moçambique, usavam o uniforme de caquiamarelo, mais de acordo com as
condições climatéricas locais.Após a independência, e especialmente nos meses
que a antecederam — durante odomínio do Governo de Transição de maioria
frelimista — quantos recrutados locaisrequereram a sua partida para Lisboa, ou
para os destacamentos metropolitanos, foi-lhes concedida.Alguns, porém,
iludidos pelas palavras amistosas do Governo, então dirigido por Joaquim
Chissano, por serem naturais de Moçambique ou no futuro país terem vivido por
longos anos, ou por à terra se sentirem ligados por laços familiares — muitos
haviam contraído matrimónio com naturais—, ou ainda por a sua perma-nência lhes
possibilitar uma mais fácil promoção hierárquica, conquistada pela
suaexperiência policial, aceitaram o ingresso nos quadros moçambicanos.Pesou,
ainda, nesta tomada de resolução, permanecer durante largos meses emMoçambique
a polícia metropolitana, em regime de conselheira dos novos recrutados para o
exercício policial, entre os guerrilheiros da Frelimo e os oportunistas que,
àúltima hora aderiram ao Movimento.Adelino da Graça Diniz foi um dos que
ficaram.E ficou para morrer.A violência da Frelimo começa, porém a
manifestar-se, e alguns dos seus obreiros passaram a ser os policiais,
imediatamente a seguir à partida dos últimoscontingentes dos conselheiros
portugueses. A Frelimo converte-se numa organizaçãoespecializada em tortura e
assassinato. Matam-se milhares de indivíduos por uma simples delacção ou
suspeita de não militância ou antipatia às ideias políticas marchelistas. Nas
cidades organizam-se verdadeiras caçadas, camufladas emlutas contra a
prostituição, em lutas contra a corrupção, mas que verdadeiramente são uma
perseguição sistemática contra a presença branca e contra a chamada
burguesia.Será difícil saber-se um dia quantos milhares de pessoas morreram
nessas «orgias»da Frelimo. Famílias inteiras, aldeias inteiras foram
exterminadas ou sonegadasà sociedade, nelas se incluindo, como já frisei,
quantos professavam as ideias reli-giosas das Testemunhas de Jeová.A polícia
moçambicana, que abandonou a denominação de Polícia deSegurança Pública para se
converter em Corpo de Polícia de Moçambique, estavadestinada a cumprir papel
essencial nessa acção criminosa de repressão.Muitos agentes, levados por
princípios morais, por repulsa natural aocrime, permaneceram leais à sua
consciência. Certifícaram-se, com horror, darepressão levada a cabo pelo Corpo
de Polícia de Moçambique. As execuçõesmultiplicam-se e a fuga de refugiados
expressa o terror e a insegurança do povo. Arepressão policial não é outra
coisa mais do que urna vingança política, visandodestruir as ideias contrárias
à Frelimo por meio do extermínio físico dos seusdefensores.Em nenhum caso,
porém, a atitude destes agentes moralizados pode ser chamadade rebelião no
sentido jurídico do termo; foi, pelo contrário, uma tomada de posiçãoao lado do
povo moçambicano, a que por nascimento ou por vivênciapertenciam, umdesejo de
restabelecimento da ética e justiça que haviam sido ignoradas efrequentemente
violadas.O agente da Polícia de Segurança Pública de Moçambique, Adelino da
GraçaDiniz tomara essa posição e era, perante a Frelimo, um elemento que
necessário setornava eliminar.Foi preso. Foi insultado e amesquinhado. Foi
agredido. E depois, resto do quetinha sido, foi transportado para o Centro de
Reabilitação de
Bilibiza, para ser definitivamente
reabilitado
com a morte,
sofrendo no
seu corpo todos os trata-mentos que tentou evitar que fossem inflingidos ao
povo.Mas no campo de Bilibiza diversas testemunhas assistiram ao assassinatodo
agente da polícia e identificaram os seus assassinos. Foram eles ocomandante
provincial do Corpo de Polícia de Cabo Delgado, camarada Massamba,o comandante
da Defesa de Cabo Delgado, camarada Pfumo, o chefe da secretariado referido
Corpo de Polícia, camarada Namuca, diversos guerrilheiros e policiais,entre
estes últimos se distinguindo pela sua ferocidade, o agente número 52daquela
corporação assassina.E as testemunhas contam, ainda horrorizadas:
«Graça Diniz
esteve amarrado durante catorze horas sendo durante esseperíodo constantemente
agredido da forma mais selvagem e desumana. Foram-lhe partidos os dedos das
mãos, um a um. Aplicaram-lhe a tortura «china»;Braços amarrados atrás das
costas até as omoplatas encostarem uma à outra.Foi queimado com pontas de
cigarros. Foi brutalmente agredido eespancado cruelmente. Após as catorze
longas horas de indizível suplício, GraçaDiniz era um homem completamente
destroçado.
Urinava
sangue. Agonizava. Os seus algozes deixaram que ele fossemetido num jipe para —
segundo afirmaram — ser levado para tratamentos nohospital.Poucos dias depois
um dos polícias da Frelimo
— prosseguem
astestemunhas —
informou os
portugueses presos naquele campo que Graça Diniz jáfora enterrado.
Entretanto,
Álvaro Cunhal visitava Moçambique. Durante os dias que antece-deram a visita os
jornais e a Rádio, em largos títulos, louvavam o camarada visitantee convidavam
o povo a associar-se aos festejos dedicados ao
nosso
grandesalvadore ao grande amigo dos moçambicanos.
A Frelimo
organizou festas. Recepções. Banquetes. Correu champagne a esmo.Álvaro Cunhal
foi festejado. O povo foi obrigado pelos Grupos Dinamizadores a sair à rua e a
concentrar-se à passagem do visitante, para o aplaudir, para o acarinhar.
Ealgum povo veio, porque há sempre algum povo para ir a qualquer parte.Álvaro
Cunhal ergueu imensas vezes o seu braço direito e de punho fechadoelevou a voz,
que Portugal já bem conhece, em «Vivas à Frelimo».Estridentes. Sentidos.
Convincentes.Álvaro Cunhal foi recebido em festa pela Frelimo. Pela mesma
Frelimo quetorturou e assassinou o agente da Polícia de Segurança Pública Graça
Diniz. Pelamesma Frelimo que ainda conserva no campo de Bilibiza, e pêlos
imensos Centrosde Reabilitação de Moçambique, milhares de Portugueses à espera
da morte. Quenão foram convidados a assistir à chegada de Álvaro Cunhal. Nem
aos banquetesoferecidos em sua honra ...
29. PORTUGAL
NÃO FOI LUDIBRIADO
Perante os
factos que até agora descrevi — e que provarei aonde e quandofor necessário — é
de crer que muita gente — e Portugal está cheio dela — possaainda acreditar na
boa-fé dos negociadores de Lusaka e de alguns elementos dasForças Armadas de
Portugal que sustinham o bastão doPoder. ,Ê de crer que para esses o povo
português reserve umas quantas palavras decomiseração:
Coitados! ...
Eles acreditaram nas promessas da Frelimo...
Quem assim
pensar, engana-se.Os negociadores e grande parte das Forças Armadas portuguesas
sabiamcom que espécie de Frelimo iam negociar. Conheciam toda a astúcia, toda
adesonestidade, o espírito de traição dos dirigentes do Partido moçambicano e
mesmoassim foi com eles que assinaram o sinistro Acordo.A minha profissão, e
especialmente o cargo que ocupava na gigantesca provínciade Tete, levava-me a
imiscuir-me nalguns meandros confidenciais, e por vezes secretosda polícia
militar portuguesa, especialmente na trágica e insegura fase que medeouentre o
25 de Abril de 1974 e o 7 de Setembro, de 1975.
E o que, de
certo modo, é interessante, é que eu possuía duas espécies distintasde
informadores, antagónicas, até. Da primeira faziam parte contactos por
mimaliciados, homens que eu considerava como colaboradores essenciais ao bomdesempenho
da minha missão de jornalista destacado na mais estratégica regiãoda guerra em
Moçambique.Trabalhavam nas mais diversas repartições civis e militares e
traziam-me infor-mações, sempre antecipadamente aos informadores oficiais,
competindo-me amim, apenas, tentar confirmação antes de as remeter, geralmente
telefonicamente, para aredacção do jornal.A segunda espécie de informadores era
composta pêlos homens que oficialmentetinham, entre muitas, a função de
informar a Imprensa, mas que só me diziam o quelhes interessava, o que não
bolia com o bom nome militar, o que, como é lógico, meera permitido publicar,
visto que dentro do próprio jornal, lendo e relendo todas asnotícias recebidas,
existia, nesses primeiros tempos de
democracia
portuguesa,
umcensor militar nomeado pelo M.F.A.Essa informação oficial era dirigida pelo
major Xavier, que chefiava a Repartiçãode Acção Psicológica Militar e estava à
frente da comissão do Movimento das ForçasArmadas.Por norma, como já disse, as
informações que este competente e inteligenteoficial trazia ao meu conhecimento
haviam sido antecedidas por outro informador privado, e em algumas vezes eu não
consegui oferecer ao meu rosto a máscara deingénua surpresa que ele esperava, e
que, confesso, me seria da maior conveniência.Por outras logrei enganá-lo, e
vale a pena relatar o caso «Ornar», a mais vergonhosatraição cometida pela
reconhecidamente criminosa Frelimo às Forças ArmadasPortuguesas, facto que foi
totalmente esquecido pêlos ilustres oficiais que assinaramo Acordo de
Lusaka.Vamos à história:Estava-se numa fase de paz, se bem que o acordo de
cessar fogo só fosse assinadoum mês depois. Era uma paz táctica, conveniente
para ambas as forças em luta. Osmaiorais da Frelimo na região de Tete já se
haviam deslocado por diversas vezes àresidência do Governador de Tete, Gomes do
Amaral, e com ele haviam acamaradado.Os guerrilheiros operacionais já haviam
trocado as esfarrapadas fardas queenvergavam, e que envergonhavam a Frelimo —
viam-se homens de casacocamuflado roto e calções vermelhos sebentos e chapéus
de mulher em vez de quépismilitares — por uniformes oferecidos particularmente
pelas Forças Armadas. Outros,ainda, haviam recebido, por oferta, calças civis
de boa fazenda e casacos à últimamoda, para se apresentarem, condignamente,
como representantes doexército
vitorioso.
Eu próprio
assisti à entrega de cara roupa civil ao comandante Raimundo Dalepee aos seus
homens, e os ofertantes foram oficiais do Exército de Portugal.Enfim, existia
uma tácita paz sem que o cessar fogo fosse oficializado e os militaresde todas
as graduações — menos os fuzileiros, esses nunca entraram no jogo — iam
Frelimo os
não comunistas contrários a Samora Machel e usou com Savimbias
balas de
açúcar
tão do agrado
comunista. Savimbi não caiu e a luta sob asua direcção continua em Angola, mas
o essencial, entretanto, estava conseguido. Ogoverno angolano era
comunista.Recordo, como achega, as recentes declarações de Jonas Savimbi,
daUnita, concedidas ao «Fígaro», e esquecidas pela grande imprensa portuguesa —
especialmente pela estatizada—, a respeito do empurrão que Melo Antunes
nãodisfarçou, mas que Savimbi soube evitar, para cair nos braços dos novos
czares daRússia. Savimbi falava de Agostinho Neto mas, mais uma vez, foi
colocado em focoo nome do
negociador
Melo Antunes,
um dos maiores responsáveis pêlosdramas impostos aos povos das antigas colónias
portuguesas:
«Neto é um
comunista. Foi por isso que eu não aceitei a proposta feitapor Melo Antunes, em
Lusaka, para organizar em Viena, uma conferência secretaentre russos, Neto e eu
próprio.»
Podia o dr.
Keneth Kaunda, sem se comprometer politicamente perante o mundoatento aos seus
gestos e atitudes, resistir à armadilha que espreitava as colónias portuguesas
e que fora engendrada por Moscovo, que tinha do seu lado um grupo de
portugueses
internacionalistas
comandados
pelo general Costa Gomes? Não.De todos os cantos do globo, em orquestração,
erguiam-se vozes ratificando oespírito descolonizador dos novos portugueses.
Quaisquer divergências ou críticasnão seriam toleradas se essa era a vontade
portuguesa. A opinião política mundial eraunânime
e
Keneth Kaunda
não pôde sugerir emendas à intenção portuguesa. Apenasapoiá-las, ou não. O
mundo apregoava que o futuro de Moçambique se delineava promissor e auspicioso
e com a derrota das ideias de Keneth Kaunda o Ocidente perdia a sua principal
figura de proa e o comunismo russo reavivava a sua infiltraçãono
continente.Keneth Kaunda cedeu. Mas cedendo continuou a ser o mais lúcido
cérebro dalinha da frente negra da África Austral, daquela linha da frente
quereafirma, constantemente, o seu compromisso em apoiar a luta armada pela
libertaçãodo Zimbabwé (Rodésia), como a única maneira de propagar a fé marxista
pelo con-tinente Sul a seguir, ao mais moderno império mundial — o comunismo
soviético.Para Moscovo o desenrolar dos acontecimentos no sub-continente
africano foi otriunfo e a plenitude. Valendo-se da atmosfera de optimismo e de
nacionalismo, aRússia desempatou o seu potencial de forças com o Ocidente,
criando novas basesestratégicas na rota do Cabo. Mas no silêncio do seu
gabinete, quando se desfazemnos ouvidos do dr. Keneth Kaunda as vozes, que não
escondem ódios mas fielmenteos traduzem, de Július Nyerere, de Samora Machel e
de Agostinho Neto, o presidenteda Zâmbia deve recordar, com pena, o insucesso
de todas as suas iniciativas edèmarches para fazer nascer, nas terras africanas
que caminham para palcosdantescos, um novo e portentoso Brasil de cultura lusa,
cristão, chamadoMoçambique.E entenderá que as soluções que não foram aceites,
teriam trazido a paz e o progresso aos quinze milhões de negros das duas
maiores colónias portuguesas e a
segurança aos
portugueses que ali residiam, e serviria de travão ao avanço comunistana África
Austral, que alastrará o sangue, o terror, a incerteza, a miséria, o caos,
aosseis milhões de negros rodesianos e às duas centenas e meia de milhares de
brancosque povoam aquela antiga e tão conturbada ex-colónia inglesa.Resta
apenas a imagem central do «complot» comunista ainda de pé. A destruiçãoda
influência ocidental será tentada. Para já os movimentos de libertação
que,medrosos e trôpegos, fazem teatrais aparições nos tablados sul-africanos
sãomarxistas e a campanha internacional já foi urdida. Os quatro milhões de
brancos sul-africanos e os vinte e quatro milhões de negros do mais forte e
rico país africanoserão a tentativa mais arrojada da União Soviética, que
apenas poderá ser sustida por uma violenta e definitiva acção do Ocidente.O dr.
Keneth Kaunda sabe que a União Soviética olha a única fatia que lhe
faltamastigar da África Austral, estendendo o seu domínio até ao Cabo. Sabe que
os países pró-ocidentais do sub-continente são os mais pequenos e mais fracos
agora. Adefesa da política ocidental era afirmada pela presença da cultura portuguesa
emAngola e Moçambique e hoje o último baluarte é a África do Sul. Se este cair
sob odomínio de um governo marxista-negro a África está conquistada pelo
impériosoviético e o Ocidente mais perto do seu fim.O dr. Keneth Kaunda sabe
isso e tentou evitar a tempo o drama que se avizinha edo qual é difícil prever
as consequências. Mas a História, que condenará osvendedores do império
português que incendiaram a África Austral, registará a suaoposição, disfarçada
mas activa, ao crime que, conscientemente, Portugal cometeu por intermédio de
um grupo de nacionais auto-nomeados dirigentes.
34. PLANO DE
LUSAKA:CAMINHO PARA A PAZ
No dia 13 de
Setembro de 1973, o dr. Keneth Kaunda, auxiliado por MarxChona, passava para o
papel o seu
Plano de
Lusaka
para ser apreciado
peloGoverno de Portugal. Seria seu portador o cônsul do Malawi, eng.° Jorge
PereiraJardim, então nas boas graças do governo de Marcello Caetano.Alguns
dirigentes da Frelimo haviam tido prévio conhecimento do Plano e se nãoo
aplaudiam, aceitavam-no pelo menos.A Frelimo era assolada pela crise que já
descrevi e a solução encontrada peloPresidente da Zâmbia punha termo aos
fantasmas da derrota que acompanhavammuitos dos seus chefes.O Presidente
maoista da Tanzânia, também tinha conhecimento do Plano
e
sobreele
havia discutido com Kaunda em diversas reuniões. Para Nyerere, anão
concretização do avanço russo no sub-continente era meio caminho paraagradar
aos proprietários da sua simpatia — a República Popular da China — eMoçambique
seguiria depois, na paz, a inclinação política que lhe aprouvesse, ouque mais
se enquadrasse na forma de sentir do povo moçambicano. Aliás, uma nação de
influência lusitana implantada no meio do continente elevaria as possibilidades
deequilíbrio político, favorecendo todos os territórios vizinhos.Dividía-se o
Plano em dois documentos distintos. No primeiro, o PresidenteKeneth Kaunda
descrevia o ponto de vista da Zâmbia na evolução dos territóriosafricanos
portugueses, com vista à procura do caminho da paz, com honra, semressentimentos
que viessem mais tarde a motivar o renascimento de atritos entre osdois povos —
o português e o autóctone.Desconheciam os autores da
descolonização
exemplar
o Plano de
Lusaka do dr.Kaunda? ...Creio estar fora de hipóteses o seu desconhecimento
pois ele
chegara
a
algunsdirigentes portugueses. O que aconteceu foi que os planos de
descolonização, disse-cados pelo grupo nomeado pelo general Costa Gomes, eram
outros e bem diversos,como se depreende do teor do
Acordo de
Lusaka,
assinado um
ano depois em 7 deSetembro de 1974, onde não são ressalvadas quaisquer
cláusulas que exprimam aintenção de salvaguardar os interesses dos portugueses
residentes na colónia, ondenão é protegida a cultura portuguesa, nem a memória
dos seus mais altos valores.Foi sob a «protecção» do almirante Vítor Crespo —
um dos membros da Comissãode Descolonização do general Costa Gomes — que todos
osmonumentos portugueses foram apeados com raiva, e alguns destruídos ou
danificados. Nãoescaparam à sanha destruidora os monumentos de Camões, de Vasco
da Gama, deGago Coutinho, de Sacadura Cabral, etc. Era necessário atirar ao
lixo toda arecordação de Portugal e colocar, no seu lugar, as figuras de
Lenine, de Karl Marx,de Mao Tse Tung.
O inculto
comissário político da cidade de Moçambique, justificaria aopovo o motivo da
destruição do monumento de Vasco da Gama com as seguintespalavras:
— O
colonizador Salazar, para escravizar os africanos, mandou Vasco da Gama
aMoçambique descobrir o caminho marítimo para a índia.
E só assim,
filosofando desta maneira, a acção destruidora dos alicercesde uma civilização
— que mesmo assim não fenece — consentida pelo almiranteVítor Crespo pode ser
entendida. Por mais
socialista
que fosse a
atitude do altocomissário de Portugal em Moçambique, a farda que envergava e o
cargo queexercia davam-lhe a obrigação de zelar e de fazer respeitar os
símbolos dePortugal, como os valores espirituais e humanos que eles
representavam.Os destinos do povo moçambicano e dos portugueses foi jogado em
Lusakano dia 7 de Setembro de 1974, por portugueses, o que torna necessário
divulgaro que um ano antes havia sido esquematizado por estrangeiros: O
PresidenteKeneth Kaunda e seus auxiliares. Por isso transcrevo, na íntegra, o
Plano doPresidente Kaunda. E que o leitor seja o juiz:«ConfidencialRepública
daZâmbia
Pontode vista
da Zâmbia na EvoluçãodosTerritórios Africanos Portugueses:
1. AZâmbia
prossegue uma política de paz genuína. O Governo daZâmbiacontinuaráaesforçar-se
para consolidar a paz na Zâmbia e nomundo.O Governo da Zâmbiainteressa-seemter
ao redor da Zâmbiavizinhosestáveise prósperos. Moçambique éum deles. A paz
queaZâmbia pretende emseu redor e nomundo em geral não é apenas a
ausênciadeconflitos mas sobretudoaexistênciade harmonia, respeito
eentendimento,tudo firmemente assegurado pelacadeira da justiça.2. A Zâmbia
prossegueuma políticanão racista. O Governo Português temdemonstradoque,ao
contrário da África do Sul edaRodésia rebelde, participanos princípios
fundamentais do não-racialismo. As lições da His-tóriademonstramque o mundo se
encaminha para uma maior integraçãohumana equearaçahumananunca mais voltará a
ser amesma. OGovernodaZâmbia aceitaosmilharesde brancos na Zâmbia e no resto
daÁfrica Australcomoumarealidadegeográfica, histórica, socialeculturalque
terátremenda influênciano desenvolvimentohumanodesta
partedomundo.Osdirigentesafricanos não podem abdicar das suasresponsabilidades
para comas raças não-negras, talcomonão espera que osBritânicos,os
AmericanoseosLatino Americanos, por exemplo,abdicassemdassuas responsabilidades
para com as raças negras e castanhasnaquelescontinentes.3. A
Zâmbia
está
interessada em desenvolver boas relações com Portugal. Nadase opõe a que os
dois países desenvolvam boas relações e cooperação emmuitos campos, excepto:a)
A política portuguesa nos seus territórios africanos. b) A cooperação
portuguesa política e militar com a África do Sul racista e coma Rodésia
rebelde.Os contactos entre os dois países seriam facilitados e encorajados se
Portugalefectivamente modificasse a sua política em face da África do Sul e
daRodésia, cujos actos de agressão contra os países independentes da África
sãoobstáculo na procura de uma solução pacífica dos actuais conflitos
nosterritórios africanos portugueses.4. A Zâmbia crê que a independência dos
territórios portugueses em África é aúnica e definitiva solução para a presente
situação crítica nesses territórios. Aguerra é, lamentavelmente, uma
desnecessária perda de sangue e dos recursosfinanceiros ou outros. Acções que
aumentem o intenso ressentimento jáexistente entre as massas da população
africana, cujo espírito e coraçãodeveriam ser conquistados, devem ser
firmemente evitadas.
O Governo
português deveria, pelo contrário, intensificar os seus esforços para
seriamente estabelecer uma estrutura realística para a cooperaçãoharmoniosa
entre o povo de todas as raças nos territórios portugueses. Será o povo de
Moçambique que em última análise tratará dos interesses portuguesese traçará o
destino dos nacionais portugueses em Moçambique, tal como osdirigentes
africanos em Angola e noutros pontos dos territórios portuguesestratarão dos
interesses portugueses e moldarão o destino de toda a populaçãoincluindo os
nacionais portugueses. Os Movimentos Nacionalistas como a«Frelimo» deveriam ser
reconhecidos como um importante factor político cujaassistência na formulação
da futura estrutura política não pode ser ignorada.5. O Governo Português
deveria evitar:a) Envolver a África do Sul política, e económica e militarmente
nos territórios portugueses africanos. b) Envolver Portugal na derrocada
rodesiana.c) Ser envolvido pelas grandes potências na defesa dos seus
interesses naRodésia, África do Sul, Namíbia e outros territórios da África
Austral bemcomo nos seus próprios territórios africanos, uma vez que isso
complicaria a procura de uma solução pacífica.d) Considerar a Zâmbia e a
Tanzânia como Estados comunistas ou testas de ponte de comunismo. Na análise
final, a Tanzânia e a Zâmbia são os melhoresamigos do povo português e
defenderão as comunidades portuguesas tal comotêm defendido outras minorias no
passado.e) Alistar milharesdeafricanosnoexército para
combateremosnacionalistasafricanos porque isso conduzirá àmilitarização de
Moçambiquee outrosterritórios portugueses, para prejuízoúltimodos
própriosinteressesdePortugal.Quantomais for o númerode moçambicanos envolvidos
nasacçõesde guerra maior seráo númerode pessoassubmetidas à disciplina militar
no futuro. Existemabundantesexemplosna História que comprovam comoessa
orientação pode ser desastrosa.O Governo Português tem interesseemcriar
condições apropriadas para umaadministração civil estável emMoçambique,em
Angola e outros territórios soba jurisdição portuguesa.6. É com apoio nestes
princípiosqueoGovernodaZâmbia temoferecidorepetidamente, desde a
Independência,os seus bonsofícios privadamentee em público para assistir
Portugal e pôr termoà guerraearesolver os problemas através de negociações com
osdirigentes nacionalistas.OGoverno da Zâmbia está convencido de queos
interesses portuguesesserãomelhor servidos se se trabalhar paraaindependênciadosseusterritóriosafricanos.
Os dirigentesnacionalistas têm demonstradoasua boa vontade paraconversar acerca
da criaçãode condições para a negociaçãode
futurosdesenvolvimentosconstitucionaisemMoçambique.
7. O Governo
da Zâmbia acredita na comunicação. Acredita que esse éomelhor caminho para
resolver o problema.Reafirmaasua disposição deoferecer osseus bonsofícios para
ajudar a terminar a guerra ecolocar Moçambique e Angola firmemente nocaminho da
genuína paz,independênciae prosperidade.Lusaka, 12 de Setembro de 1973.»
35. PLANO DE
LUSAKA:
O BEM-ESTAR
DOS PORTUGUESES
A segunda
parte do Plano de Lusaka do dr. Keneth Kaunda refere, denomina-damente, a
estrutura necessária para a Independência de Moçambique, e os interessesde
Portugal que deveriam ser respeitados com garantias. Com a mesma segurança
etranquilidade Keneth Kaunda afirma a sua posição medianeira.A troca de
garantias é compensadora para Portugal e vai ao encontro das pretensões do povo
português e do espírito que iria enformar, um ano depois,o Movimento das Forças
Armadas, em 25 de Abril de 1974. Mas não agradariaaosnegociadores portugueses
comunistas. Teria outras cores a capitulação portuguesa.O Plano de Lusaka proclama
honra para Portugal. O texto e as intenções sãoclaras e nem eram necessárias
reformas. Compreendendo-se os motivos que levaramPortugal a não o aceitar antes
da Revolução de Abril, não se entende a recusa após oMovimento das Forcas
Armadas ter abalado e destruído os alicerces sobre os quaisrepousava a teoria
do governo português deposto. Mas as inovações introduzidas emPortugal são
ilimitadas e a Comissão de Descolonização olha o problema de mododiferente. E
quem não concordar com ela comete o horrível e duramente punido crime contra a
descolonização.
A opinião
pública internacional mostra-se confusa. O Plano do dr.Kaunda transpirara e
muitos países não entendem o comportamento de Portugal, masassistem em
silêncio. Só a Rádio Moscovo, nos seus noticiários para as colónias portuguesas
e Brasil, vai dando a perceber as íntimas relações entre o proceder daComissão
de Descolonização e a forma de olhar o problema de Moscovo.
E é a Comissão
de Descolonização, com o seu procedimento repressivo, que
castraqualquertentativa, entre Abril e Setembro, para fazer ressuscitar o Plano
de Lusaka.É interessante verificar que até agora, em 1977, toda a Imprensa
portuguesa o temolvidado, como que a não querer remexer numa ferida acesa em
muitas consciências portuguesas. E que melhor altura para o divulgar do que
esta, quando Portugal contacom um Governo onde o Partido Comunista foi pouco
votado pelo povo português? Não será ainda ocasião para dizer a verdade aos
portugueses, aquela verdade queKeneth Kaunda não escondeu em 1973 dos
dirigentes de Portugal?Publico, a seguir, o segundo documento do Plano de
Lusaka e mais uma vez peço ao leitor para ser juiz:
«ConfidencialRepública
da ZâmbiaMemorandumPonto de vista daZâmbia na Evolução dos Territórios
Africanos PortuguesesEstrutura para a IndependênciaO Governo Português
estáobviamentepreocupadoacerca dapreservaçãodos seus interesses
nacionaisnosterritórios africanos dePortugal.Deve inter aliapreocupar-secom
otipo de ligações que permitiriamaPortugal manterasua influência nos
novosterritóriosindependentes.OGovernodaZâmbiatemaconsciênciadestapreocupaçãoeestá
portantoprocurando colaborar na preparaçãodeumaestrutura queproteja egarantaos
interessesportugueses. O Governo daZâmbiaestá preparado,desde quetenhao
acordodolado português, paraobterasgarantias dosdirigentesnacionalistas acerca
dofuturodos interesses dePortugal. Comesteobjectivo deve ser consideradoo
seguinte:
1.RELAÇÕESPOLÍTICASa)
Os territórios independentes prosseguirão uma tendência não-racialnaconstrução
das novas naçõeseosnacionaisportugueses quealitêmvivido há séculos encontrarão
uma melhorsituaçãodo queaquelaquetêm agora.b) Asegurançados nacionais
portugueses apenaspode ser apropriada-mentegarantida atravésdeum programa
deintegração nacionalsobcondições de harmonia racial e cooperação, sem conflito
ou guerra. Aactual guerra é um obstáculoparase alcançarem estes objectivos.c)
As relações diplomáticasentreosnovos territórios independentesePortugal
assegurarão contactos maisefectivos e produtivos,bem comomútuo apoio na base de
igualdade erespeito recíprocos.d) Estabelecimento de uma Comunidade Lusíadacompreendendo
os anti-gosterritórios portuguesesincluindo o Brasil. Uma associação
destas,naqual Portugal teria uma posição dominante,desenvolver-se-iacomomelhor
organização do que a «Commonwealth»queaGrã-Bretanhainstaurou. A política
britânica-rodesiana-sul-africanaconjuntamentecoma visão racista de
algunsnacionaisbritânicosnasantigas colóniasbritânicas ensombraram aimagemda
Grã-Bretanhaereduzirama sua influência, sobretudo em África.e) A Administração
nos novosterritóriosindependentesserágrandementeinfluenciada por Portugal
nofuturoprevisível. Duranteeste período os nacionais portugueses serão capazes
decriar um maior graudeconfiança na governação das novasnaçõesindependentes
agora sobcontrolo português.2. RELAÇÕES CULTURAISO Governo da Zâmbia está
cientedo orgulho português na suaculturaLusíada. É convicção do Governo
daZâmbiade que aindependênciadosterritórios africanos portuguesesnãosignificará
o fimdainfluênciacultural portuguesa, masaocontráriooiníciodaexpansãodocampoda
cultura lusa em dignidade erespeito.a) O português permanecerácomo
aLínguaFranca nos novosterritóriosindependentes.b) A educação será
predominantemente portuguesacom professores por-tugueses.c) Cooperação técnica
com experiência e pessoal portugueses. d) A influência portuguesa na vida social
e cultural permanecerá durante longo tempo. e) As condições religiosas serão
influenciadas pelo passado português.
3.RELAÇÕES
ECONÓMICAS
A conservação
dos interesses económicosportugueseséfundamentalemqualquer acordo para conceder
aindependência aos territórios africanos portugueses. O Governo da Zâmbiaestá
ciente de que qualquer estrutura para a independência deveria garantirao
Governo Português que osseusinteresses económicos serão protegidos.a)
Comérciob) Investimentosc) Assistência técnicad) Acordo económico e de
cooperação técnica.4. RELAÇÕES MILITARESO Governo da Zâmbia reconhece que a
Defesa é um campo muito melin-droso. O GovernoPortuguês quererá,sem dúvida,
estar seguro dequeaindependência política não conduzirá, por exemplo,a que uma potência
comunista preencha o vácuo. A preservação dos territóriosportugueses será
assunto de interesse para o Ocidente emgeral.SegundooGovernoda Zâmbia
estesaspectossão negociáveis com os dirigentesnacionalistas e nãoserãoum
obstáculo para um acordo finalsobreaindependência.
5.OPORTUNIDADE
PARA A INDEPENDÊNCIADevesernegociada logo que a estruturapara aindependência
esteja traçada.
6.
FACTORESEXTERNOS QUE DEVEM SER ARREDADOS DA SITUAÇÃO PORTUGUESA
1.
Envolvimento da África do Sul.2. Envolvimento da Rodésia.3.Envolvimento das
grandes potências.Estes podem complicar asnegociações ou asmedidas tomadas para
pôr fim àguerra.Interesses Nacionais Portugueses1. INTERESSES POLÍTICOS E DE
SEGURANÇAFundamentalmente referimo-nos ao bem-estar dos nacionais portuguesesna
era post-independência. O novo sistema político paraosnovospaíses independentes
deverá assegurar protecção para todos osmoçambicanos e promover o seu bem-estar
sem consideração de raça, cor,credo ou origem étnica. De particular importância
para o GovernoPortuguês é o futuro de uma grande população de origem
portuguesa.2. INFLUÊNCIA POLÍTICAPortugal deseja, sem dúvida, ter uma
influência dominante nos novos paísesindependentes e não desejaria ver o
crescimento de qualqueroutra influência prejudicial para os interesses
portugueses nosseusantigosterritórios.3. INTERESSES ECONÓMICOS E
FINANCEIROSPortugal desejaria, sem dúvida, ver que ocomércio, os
investimentoseoutros interesses económicos sejam completamente
desenvolvidosnosseusantigos territórios em seu favor enãoem favor de qualquer outrapotência.4.
INTERESSES CULTURAIS Conservaçãoda cultura lusa.5. DEFESAOs novos países
independentes deveriam, no ponto de vista do GovernoPortuguês, manter uma
atitude quanto àdefesaque pelo menos não fosseanti-portuguesa. A estrutura para
a conservação eprogressodetodosestesinteresses nacionais é, no conhecimento da
Zâmbia, negociável.Os chefes nacionalistas estão determinados por um
sentimentode responsabilidademoral para com Portugal e osseusinteresses, e
estariam pre-parados para encontrar uma solução amigável em todos estes
aspectos.Lusaka, 12 de Setembro de 1975.»
36. DR.
ALMEIDA SANTOS:ESTADO FEDERAL «UNIÃO PORTUGUESA»
Não posso
afirmar o que pensa hoje o dr. Almeida Santos, ex-ministro daCoordenação
Interterritorial, dos dramas que enlutam o povo de Moçambique, daguerra que
alastra por todo o novo país, da miséria que adoenta o povo moçam- bicano, da
fuga da morte de quantos, portugueses, teimaram em permanecer em Moçambique
após ele ter assinado o Acordo de Lusaka. Era arriscado, para ruim,afirmar qualquer
coisa, pois sei que os homens mudam, por vezes comtanta facilidade como o
vento. Não posso afirmar quais eram as ideias do dr. Almeida Santos no dia 7
deSetembro de 1974, antes de se transferir para a pasta ministerial da
Informação,daquela Informação que tanto iludiu o povo português sobre as causas
e as conse-quências da descolonização de que foi um dos importantes fazedores.
Era arriscado para mim, pois as mesmas ideias podem hoje não serem acatadas
pelo ministro daJustiça de Portugal, dr. Almeida Santos.Posso afirmar, e não
arrisco nada, o que pensava o advogado dr. Almeida Santos,meia dúzia de anos
antes da Independência de Moçambique, porque o dr. AlmeidaSantos se
auto-biografou, ou se auto-criticou, no seu livro «Já Agora...»,arranjandouma solução
para Moçambique bastante diferente daquela com que concordou emLusaka, e onde
apôs, sorridente e feliz, a sua assinatura.E como posso afirmar, com a
permissão que me é dada pêlos escudosque consumi com a compra do «Já agora...»,
acho oportuno transcrever asolução moçambicana do dr. Almeida Santos e de um
grupo de democratas deMoçambique, que, embora custe a muito boa gente, se
assemelha ao do dr. KenethKaunda e í: que era desejada pelo general António de
Spínola.Vejamos, pois, sem comentários, o que pensava ou pensa o dr. Almeida
Santos dadescolonização de Moçambique:
«... Numa
campanha eleitoral para candidatos à Assembleia Nacional, aOposição Democrática
de Moçambique apresentou uma lista, de que fiz parte, eelaborou um manifesto
aos eleitores — como já disse apreendido na tipografia — onde, pela primeira
vez em Portugal se defendia uma solução determinada. Aautodeterminação surgia
aí, porém, defendida à escala nacional, em perfeitaequivalência a uma consulta
plesbiscitária...»
(sic).E
definindo melhor as suas ideias democráticas que desejava oferecer também ao
povo moçambicano de todas as raças, o então advogado de LourençoMarques
escreveu:
«... Nele se
dizia ainda este mínimo que convém transcrever para que o nossointuito não seja
deturpado:Seria despropositado esperar que, estados tão distantes na geografia,
etão diferenciados nas populações como seriam a Metrópole, Angola eMoçambique,
viessem a sofrer igual evolução centralizadora. Mas nada nosimpede de
acreditarmos na perduração sem conjecturável limite de laços devinculação
política, estratégica, diplomática, cultural ou tão só linguística, seformos
capazes de passar a semear a língua portuguesa, como língua veicularaceite
pelas populações autóctones, como mesmo empenho com que temossemeado algodão e
sisal.Teremos, nesse domínio, aquilo que tivermos sido capazes de merecer.Ou
melhor: colheremos aquilo que tivermos semeado. Se ódio ódio, se
amoramor.Visionam, pois, os signatários um estado federal, a que poderia
chamar-se «União Portuguesa», embora o nome não seja o que mais importa, e
estadosfederados — Portugal, Angola e Moçambique — aos quais aquela se
sobreporiana medida das prerrogativas de soberania que sobre eles detivesse.Um
chefe do Estado Federal directamente eleito pela comunidade emcondições a
fixar, e Chefes dos Estados Federados, directamente eleitos porestes,
exerceriam as inerentes funções ao nível federal e
estadual,respectivamente.Haveria um parlamento federal, constituído por
deputados directamenteeleitos, em proporção a fixar, pêlos estados federados, e
ao qual caberia aelaboração das leis relativas aos assuntos comuns a todo o
território daFederação. Parlamentos estaduais, directamente eleitos por cada
EstadoFederal, chamariam a si a feitura das leis exclusivamente aplicáveis aorespectivo
território.Um Governo do Estado Federal, e os governos dos Estados Federados,
esco-lhidos pelos Primeiros Ministros designados pelos respectivos Chefes
deEstado, exerceriam a função executiva, e, com menos amplitude do que o
actualgoverno,funções legislativas simples.Um tribunal de conflitos seria
encarregado de resolver os diferendosdos Estados Federados entre si, ou entre
qualquer deles e o Estado Federal.Cada Estado teria a sua organização jurídica
própria.Regressar-se-ia ao sistema da eleição directa dos Chefes de Estado, e
acen-tuar-se-ia a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial.Sem
se cair em extremos de parlamentarismo, que por toda a parte, e mesmoentre nós,
deram má conta de si, os parlamentos exerceriam um tal ou qualcontrolo sobre os
excessos ou os desacertos do executivo, através do sistema dasmoções de
censura, ou qualquer outro modo. Mas para evitar a descontinuidadegovernativa
poderia condicionar-se o recurso às moções, inclusive através dadissolução do
parlamento censor, seguida de novas eleições, após certo númerode moções em
cada legislatura.
Do maior
interesse seria a definição das prerrogativas de soberaniareservadas ao Estado
Federal. Visionam-se como menos provavelmentealienáveis a defesa, a acção
diplomática e a coordenação da economia a partir deeconomias desintegradas mas
cooperantes.Neste domínio, porém, como no mais concernente à montagem
doesquema, poderia avançar-se segundo escalões pré-definidos.Num ponto haveria
de ser-se intransigente, já que mais do que nenhumoutro daria o tom do nosso
desejo de evoluir em termos de política ultramarina:na inscrição, em cada uma
das constituições regionais, de um esquema evolutivopara governos
representativos da maioria das respectivas populações, de parcom garantias da sua
inalterabilidade e do seu perfeito acatamento. Bem secompreende que qualquer
desvio deste princípio só poderia favorecer umnacionalismo neocolonialista que
não resolveria coisa alguma e seria fonte segurade novos e inarredáveis
apocalipses.»
Curioso é ter
sido o dr. Almeida Santos um dos homens que assinaram o Acordode Lusaka, como
continua a ser curioso conservar-se no Governo de Portugal contratodos os
ventos e eventos da política portuguesa. Não foi democrata — ou eu não entendo
o espírito da democracia — ao nomear para último "Governador de
Moçambique, já após o 25 de Abril, um seu compadre ecolega de profissão, não
apoiando os interesses das maiorias. NesseGovernoaconteceram os trágicos
Setembros e Novembros moçambicanos. Aconteceua morte, a destruição, a fuga dos
portugueses, o abandono de grande parte de bens, adestruição sistemática da
colónia portuguesa. O dr. Almeida Santos nada perdeu. Osseus contentores
gigantes foram postos em Lisboa — um deles foi fotografado e publicado na
Imprensa, pois no seu bojo quase se podia transportar toda a riquezamoçambicana
— os seus capitais transferidos. Nada perdeu na sua democracia. Não foi
comunista e não o é nas suas afirmações, na sua forma de viver, nas
suasrelações humanas, mas, não sendo, sobreviveu à queda dos seus pares no
Governo,servindo, um Governo comunista, de terror, de sangue, de maldição, de
anarquia, domesmo modo que serve um Governo socialista na busca de um
verdadeiro Portugalremoçado.Qual é a cor política do dr. Almeida Santos, que
auto-criticando-se no início dadécada de 70, deseja para Moçambique e para
Angola uma autonomia democráticaem regime federado e que foi até à minúcia de a
baptizar em «União Portuguesa» e,meia dúzia de anos volvidos, assina um
documento onde, sem remissão, se faz aentrega de Moçambique a um partido
guerrilheiro, representante declarado da ditaduracomunista e do império
soviético, empurrando, com o seu gesto, Moçambique paraum futuro de fome, de
guerra civil, de destruição, e muitos milhares de portugueses para a miséria da
situação de semi-apátridas?Qual é o seu critério actual? Não negará esta sua
atitude todos os seus pronunciamentos anteriores?É certo que o dr. Almeida
Santos, nos seus raros momentos de penitência, afirmafilosoficamente que outros
Acordos, além do de Lusaka, foram entabulados com a Frente de Libertação de
Moçambique. Mas que Acordos? Os anos transcorrem e nãomerecem o povo português
e os muitos milhares de retornados e de refugiados umesclarecimento sobre o
teor desses acordos, sobre as suas consequências, e, sobretudosobre a sua
actividade nesses acordos, quando a sua responsabilidade é reconhecida por
todos os retornados e refugiados devido aos altos cargos que desempenhou
edesempenha?Responsabilidade como outorgante no Acordo de Lusaka.Responsabilidade
como ministro Inter-Territorial.Responsabilidade como nomeador do último
Governador-Geral.Responsabilidade como ministro da Informação, na fase em que
menos infor-mada andou a população portuguesa, inclusive sobre o teor dos
acordos com osguerrilheiros que, logicamente, não pode apenas interessar a meia
dúzia de portu-gueses mas a todos os portugueses.Responsabilidade — e por que
não? — como ministro da Justiça, pois é essa mesmaJustiça que o povo português,
que o povo moçambicano, que os retornados, que os refugiados, desejavam ver
praticada sobre quantos negociaram o Ultramar, semconsultarem democraticamente
os povos interessados, tapando orgulhosamente osouvidos a todas as vozes
discordantes que aconselhavam moderação e bom senso. Éesta habilidade de jogar
com ambos os lados, de se preservar das consequências degestos históricos, que
o futuro não deixará adormecer e que o presente saberácondenar.
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