Era um cântico frequente nos primeiros anos escolares. “A luta começou em 1964.” E repetia-se o primeiro tiro de Alberto Chipande em Chai, e a bravura dos velhos guerrilheiros. Para Eduardo Nihia, o primeiro tiro pode ter sido dado em qualquer uma das frentes: Cabo Delgado, Niassa ou Zambézia
A história é feita de vencedores.” A frase é tão antiga quanto a própria realidade dos tempos romanos que os historiadores se encarregaram de registar as epopeias dos Césaros. O contexto que envolveu as lutas africanas pela independência também suporta-se nessas “epopeias” inspiradoras de guerrilheiros que desafiaram toda a artilharia portuguesa, inclusive o “último suspiro”, que foi o Nó Górdio para acabar com a Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo.
Todo o processo da Luta de Libertação, que culminou com a Independência de Moçambique e que durante anos foi tema principal de livro de história, começa a ser analisado e em alguns capítulos, segundo analistas e a comunicação social, parece estar envolvido em penumbra. E, quando se aproxima o 25 de Setembro, a data da criação das Forças Armadas de Moçambique – herdadas das Forças Populares de Libertação de Moçambique com génese nos jovens guerrilheiros, muitos deles treinados na Argélia, que fizeram os primeiros combates. Dizíamos que quando se aproxima essa data, o tema mais debatido é sobre o autor e o local do primeiro tiro.
Encontramo-nos de uma forma descontraída com o general Eduardo da Silva Nihia, que também o podemos chamar de M’toto, como faziam os seus velhos camaradas de armas nas matas de libertação. M’toto é uma palavra em Swahili que significa criança ou pequeno.
Com M’toto procuramos reconstruir o período da luta de libertação, as razões que levaram a zona sul a não ser um campo activo de batalha. “Foram presos quase todos aqueles que deviam iniciar a luta em Maputo e em toda a zona sul do país. Nampula ficou fora dessa mesma história, porque não tinha fronteiras com o exterior”. E, a questão do primeiro tiro: “Cabo Delgado foi o primeiro a mandar a informação, porque estava perto de Dar-Es-Salaam.”
Podemos começar por traçar balizas que nos permitem reconstituir a história da Luta de Libertação Nacional?
A Luta de Libertação Nacional começa no momento em que os moçambicanos jovens criaram a Frente de Libertação de Moçambique em 1962. E 1963 foi o ano de preparação militar. Eu vou em Julho para Argélia que se ofereceu para treinar os nossos guerrilheiros. Em Julho é o nosso grupo que vai a Argélia, composto por 62 pessoas, entre elas Samora Machel que era o nosso chefe e outros como Alberto Chipande, Raimundo Pachinuapa, Bonifácio Guruveta. Voltamos em Março de 1964. Fomos responsabilizados para criar o nosso primeiro quartel em Côngua, no noroeste de Dar-es-Salaam. O comité central já tinha a perspectiva de iniciar a luta, mas antes tínhamos que fazer um trabalho de esclarecimento ao interior, era como chamávamos o nosso país. Tínhamos que alertar os moçambicanos que iríamos iniciar a luta de libertação. Eu fui destacado sozinho para ir a Nampula, por ser natural de Nampula. O único Macua de Nampula na Frelimo era eu.
Quando preparam os moçambicanos para a luta armada já tinham as datas marcadas?
Nós os militares não conhecíamos a data. Na primeira quinzena de Setembro somos informados de uma forma clandestina, que no dia 25 de Setembro deve haver tiros em todas as frentes já identificadas: Cabo Delgado, Niassa, Tete e Zambézia. O sul não estava contemplado.
Em termos estratégicos e militares, o sul não tinha algum interesse em termos de concentração de esforços para a luta?
Tinha, mas o grupo de sul teve problemas e a maioria foi presa e não dava para iniciar a luta. Em Nampula também não tivemos nenhuma força.
As origens militares de Nampula, referimo-nos à sua construção como um posto de controlo e expansão militar para a zona norte do país, teriam deixado a Frelimo com receios?
Não havia meios... não tínhamos formas de abastecer. É uma história complicada, porque Nampula não faz fronteira com o exterior. Para se chegar a Nampula tem que se passar de Malawi. Então, no dia 23 recebo um grupo com armamento. Nesse grupo estava Guruveta e António Silva que era o nosso comandante. No dia 24 preparamo-nos e procurámos o alvo, que foi o posto administrativo de Tacuana na província de Zambeze. Tínhamos sido informados que o chefe do posto não estava. Tinha ido a Milange. Nós aguardamos até ele aparecer num Land-Rover de caixa aberta e parou à nossa frente. Não sei porquê o nosso comandante não deu ordem para dispararmos. Ele acabou saindo e se dirigindo para casa. Nós aprendemos que um soldado não pode disparar sem ordens. Ele disse que não deu ordens, porque podíamos matar a população. Mesmo discordando, tivemos que nos reestruturar e dividirmo-nos em três grupos de cinco a seis pessoas cada. Um grupo para a residência do chefe do posto, outro para os Correios e outro para a Cadeia. Eu fui encarregue para dirigir o grupo dos correios, Tchama Ambrósio para a cadeia e Bonifácio Guruveta para a residência. Deviam ser por aí 22h00 do dia 25 de Setembro. Começamos a disparar, tivemos informação que o chefe do posto foi ferido. Incendiou-se a cadeia depois de libertar os prisioneiros e fazer reféns os simpaios. Nos Correios atingiu-se primeiro o chefe dos mesmos. Iniciou-se assim a luta de libertação de Moçambique, na província da Zambézia.
Por que não se fala da luta na Zambézia?
O nosso comandante, António Silva não vivia na base connosco, mas sim em Malawi. Ele pegou nas informações, prometendo mandar a mensagem sobre o início da luta, mas não o fez. Ele desertou-se.
Isto remete-nos à questão do primeiro tiro. Alberto Chipande é realmente o autor do primeiro tiro? Onde se deu?
Foi em todas as frentes. O que aconteceu é que Cabo Delgado é ali perto [Tanzânia]. Logo que os companheiros de Cabo Delgado, Chipande e outros, dispararam, a informação foi imediatamente levada a Tanzânia onde estava o nosso Estado Maior, comunicando que a luta iniciou. Comunicou-se que o primeiro tiro foi em Chai e a nossa informação não foi levada a Tanzânia. A primeira informação é que fica. Por essa razão ficou registado que a luta começou em Moçambique no distrito de Chai. Isso é que veio ao ar.
Onde é que se deu o primeiro tiro?
... Não bastava que chegássemos e disséssemos que ali se disparou, ali também, não haveria seriedade. Para dizer que para chegar a Zambézia era preciso passar pelo território malawiano, enquanto que Cabo Delgado e Niassa era só atravessar o rio e entrar em Tanzânia. A falta de informação foi só na Zambézia, em Tete também fracassou. Na altura, Tete para abastecer precisava passar de Malawi. Mas o grupo de Tete encontrou um contra tempo, a posição do governo malawiano, que não devíamos passar de Malawi. É por isso que a informação que fica é a que diz que a luta começou em Chai.
O governo malawiano prendeu o nosso grupo. Acusou-nos de bandidagem e eu disse que não queríamos nenhum malawiano. Nós estamos a lutar para libertar o nosso país. No dia seguinte, levaram-me ao comando, em Zomba. Apareceu o director da segurança, Special Branch, que tinha todos os meus dados fornecidos pelos meus companheiros que desertaram, incluindo António Silva. Sabia que eu era da Frelimo, tinha a lista que deixava claro que treinei na Argélia. Levou tempo para ser liberto. A nossa direcção - camaradas Mondlane, Samora e Chissano - foi por duas ou três vezes ter com Banda para me libertar.
Refere-se à deserção e a pessoas que não enviam a informação. Como é que se cria disciplina num exército de guerrilha como a Frelimo?
Fomos treinados na Argélia de uma forma diferente com os outros. Estávamos preparados para a guerrilha. Mas também houve um grupo que teve treino político militar na China. Éramos ensinados a respeitar o povo...
Havia uma forma de impor ordem, caso se violassem as regras?
Cada força tinha um Comité Disciplinar. Se um soldado cometesse indisciplina, eu como comandante submetia-o ao Comité...
Muitos exércitos de guerrilha recorreram à pena de morte para impor a ordem nas suas fileiras. A Frelimo também enveredou por está prática?
Não... Num combate bati um soldado, porque estava a disparar enquanto se retirava da posição o que punha em risco a vida dos seus companheiros. Quando o vi a disparar, fui lhe pegar, dei coronhada, arranquei-lhe arma e ele fugiu. Quando cheguei em Nachingweia, o falecido Magaia (Filipe Samuel Magaia) era o nosso comandante antes de Samora. Ele perguntou o que aconteceu e eu expliquei. O comité Disciplinar estava reunido e o presidente era Urias Simango. Magaia disse que como militar fiz bem. Nós não tínhamos pena de morte durante a luta de libertação. Isso nunca aconteceu.
Quarenta e seis anos depois do início da luta armada e 35 anos depois da independência, este é o país com que sonhou?
Nós nunca sonhamos em ser chefes, ou ser ministros. Nenhum guerrilheiro sonhava em ser ministro. O nosso sonho era libertar o país e voltar para as nossas casas, os outros que fiquem a governar. Não há nenhum combatente que vai dizer que sonhava em ser ministro. Por isso, o país com que nós sonhávamos, estava escrito nos nossos estatutos. Mas hoje, sinto-me muito honrado por ser independente, porque não há nenhum mal pior que ser colonizado. Não há que dizer que estou a viver bem, enquanto é colonizado. Penso que os combatentes libertaram este país e atingiram os objectivos. O país que queríamos é este. Mas se alguém tem as suas ideias e diz que não é este, podemos discutir. Este país foi colonizado durante 500 anos. Dos países africanos, talvez nós tivemos mais tempo de colonização. Estive nas comemorações dos 45 anos da independência de Tanzânia e apercebi-me que não teve 100 anos de colonização.
Nós ficamos 500 anos sem estrada nem pontes. Quando proclamamos a independência, só tínhamos uma universidade e, de 2000 estudantes que estavam a estudar, apenas 40 é que eram moçambicanos de pele da nossa cor. Agora, quantas universidades temos? Isso para mim é a base de desenvolvimento. No período colonial, você fazia a quarta classe e sentia-se no topo.
O PAÍS – 25.09.2010
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