terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O silêncio dos intelectuais

 


Que Moçambique teríamos se os intelectuais assumissem o seu papel de consciência da nação? Se eles falassem, criticassem, apoiassem, e, porque não, se envolvessem directamente na política para levar a ciência até onde ela é mais necessária? Por mais curioso que possa parecer, se tivéssemos esses intelectuais não teríamos um Moçambique diferente. Teríamos um País polarizado onde a verdade e os factos são funcionais à reprodução de certezas morais. Teríamos o Moçambique que temos agora porque mais importante do que intelectuais (e académicos), o que um País precisa para ser melhor (ou simplesmente para ser País) é que exista uma cultura sã de debate.
Essa cultura sã de debate não pode existir onde certezas morais predominam. Nunca funcionou em lado nenhum. Sistemas religiosos, regimes autocráticos e cientismos (a crença obsessiva no poder do conhecimento científico) tornam-se totalitários (e polarizantes) justamente porque assentam na premissa segundo a qual os seus princípios morais seriam o único crivo pelo qual tudo deve passar para poder ser dito, pensado ou feito. Isso dá na tirania da opinião, no anti-intelectualismo e na paixão pelo supérfluo.
Se um intelectual disser que o País precisa de reconsiderar seriamente o papel que a mandioca desempenha nas políticas públicas, antes mesmo de se entender o que a mandioca tem a ver com as políticas públicas, a discussão vai ser sobre o seguinte:
Porque só agora diz isso? Que ligações políticas tem ele? Porque deve ser ele (homem, heterossexual, da região “cozido” e da etnia “assado”, etc.) e não uma outra pessoa? Porque fala só da mandioca e não menciona a batata doce? Porque só fala da ausência da mandioca nas políticas públicas e não aborda questões mais prementes como o preço das portagens, a corrupção no judiciário, a violência policial, etc.? Que intelectual é ele que não mostra compaixão pelos camponeses que produzem a mandioca? Quem pensa que ele é para dizer o que faz falta ao País? Se “estudar” é isso, então dou graças a Deus por não ter estudado...
E se, por alguma sorte qualquer, as pessoas entenderem a ideia do intelectual e consideram que faz todo o sentido, hão-de surgir as seguintes perguntas:
Porque só agora diz isso? Que ligações políticas tem ele? Porque deve ser ele (homem, heterossexual, da região cozido e da etnia assado, etc.) e não uma outra pessoa? Porque fala só da mandioca e não menciona a batata doce? Porque só fala da ausência da mandioca nas políticas públicas e não aborda questões mais prementes como o preço das portagens, a corrupção no judiciário, a violência policial, etc.)? Que intelectual é ele que não mostra compaixão pelos camponeses que produzem a mandioca? Quem pensa que ele é para dizer o que faz falta ao País? Se “estudar” é isso, então dou graças a Deus por não ter estudado...
Portanto, o mesmo.
Isto é, onde as condições não estão reunidas para o debate são de ideias, nenhum intelectual faz falta. Se o gênio aponta para as estrelas e o tolo não só olha para o dedo como também usa toda a sua energia intelectual e política para mostrar que o dedo está sujo, as unhas não estão feitas, é dedo do Norte do País, dedo sem nenhuma sensibilidade de gênero, etc. que sentido faz quebrar o silêncio? Para quê? O que pode valer o que um intelectual diz onde a razão reside na força das convicções? O que vale o conhecimento quando a opinião é mais do que suficiente para validar seja o que for? Que espaço pode haver para o intelectual onde a mínima discordância é mais do que suficiente para pôr em causa a própria ideia de intelectualidade?
O intelectual só quebra o silêncio com utilidade onde não é quem está certo, mas o que é certo que importa. Tudo o resto é apenas teimosia da sua parte. Felizmente, a mesma teimosia que faz dele intelectual, a mesma teimosia que o torna atrevido e a mesma que o leva a abraçar o conhecimento mesmo sabendo que ao fazer isso está a entrar no mundo das incertezas. Ser intelectual é arrogantemente acreditar que se é um poste de luz que ilumina mesmo sentindo-se lentamente corroído onde há fecalismo a céu aberto.
Desde 1975 que estamos nisto. As ideias úteis, as pessoas que podem fazer a diferença, o pensar fora da caixa sempre esbarraram com a forte convicção de quem detém o poder – ou acha que detém o poder – de que aquilo que ele não conhece, ele não só não come como também está na obrigação de combater com toda a sua energia. Dez anos de participação na Luta Armada de Libertação Nacional fizeram melhor médico, historiador, jurista, etc. Simpatias por quem fez a luta pela democracia fazem melhor democrata, economista, sociólogo, etc. Querer a verdade eleitoral mais do que ninguém faz melhor opinador, defensor dos direitos humanos, engenheiro, etc.
Em suma, o silêncio dos intelectuais não é voluntário. Pode ser que o País ainda não esteja pronto para ter intelectuais no seu seio. E o País ainda não está pronto porque tem, talvez, uma forte relação de amor com o supérfluo. As boas ideias não se corrigem enquanto se pensa na melhor maneira de as pôr em prática. “Corrigem-se” atacando quem as propôs.
No fundo, merecemo-nos. Que a mandioca se lixe!
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Alcídes André de Amaral
"Se 'estuda'r é isso, dou graças a Deus por não ter estudado...", isso é bastante sintomático. É falada até pelos que estudaram. Mas eu penso que a utilidade do intelectual não diminui mesmo em contextos onde aparenta que a sua presença seja inútil. Em espaços como os nossos, os intelectuais podem fazer a sua função na periferia e entre eles tendo em vista o coletivo: poucos aos poucos a "moral" que procuram propor vai-se alastrando. Também tem a ver com a história do país ser bastante recente e com a curiosa relação que o país sempre teve com os seus intelectuais no seu seio. Penso que muito mais do que o país, é a sociedade que aparenta não estar preparada para ter intelectuais no seu seio. Almeja-se aquela ideia de uma negritude: "Todos estão de acordo com todos".

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