quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

O paradoxo da omelete

 

O paradoxo da omelete
Omolete é coisa boa. Alimenta, sabe bem e distingue-nos (dos que não têm meios). Mas como se diz por aí, para fazer omolete é preciso partir o ovo que é também bonitinho. Isto é, é preciso fazer mal ao ovo (e, consequentemente, à galinha e ao pintaínho que não vai nascer) para ter uma omelete. Numa época em que a consciência dos direitos dos animais é cada vez mais apurada, a questão que se levanta é saber se é moralmente correcto fazer isso. Podemos em boa consciência inviabilizar a vida dum pintaínho e ferir os direitos da galinha (e do galo) para satisfazermos os nossos desejos? Porque é que achamos que valemos mais do que esses pobres animais? Apenas porque somos mais fortes e pensamos que o mundo foi feito apenas para nós?
É a isto que chamo de paradoxo da omolete. Muita gente pode ver a razoabilidade destas questões. Pode até concordar que não existe nenhuma razão ética (nem mesmo a auto-preservação) que justifique o consumo do ovo. E mesmo assim decidir que vai continuar a consumir omelete. Seria normal. Nem sempre somos coerentes, muito menos quando estão em jogo os nossos próprios interesses. Aí simplesmente bloqueamos qualquer tipo de questionamento que nos possa levar a rever as nossas posições e, talvez até, a mudar de comportamento. Somos escravos das nossas paixões, infelizmente.
Este é para mim o paradoxo da omelete. É o conflito entre cometer um acto que pode ser injusto para satisfazer um desejo que pode, por sua vez, ser justo. Na política, este paradoxo manifesta-se ao nível da obediência. Já que toda a sociedade é um sistema de regras, a sua viabilidade depende também do cumprimento dessas regras. Não decorre desta constatação a ideia de que o bom funcionamento duma sociedade dependa do cumprimento de regras, portanto, da obediência. Há regras injustas. Há sociedades que se reproduzem na base de regras injustas, ou da aplicação injusta de regras. Essa tem sido a nossa experiência com a democracia em Moçambique. Quem nos governou até aqui nem sempre primou pela justiça na aplicação das regras que deviam viabilizar Moçambique.
Assim sendo, levanta-se a questão de saber se obedecer é ético. A resposta não é assim tão linear. É verdade que as maiores atrocidades na História da humanidade foram cometidas por pessoas obedientes, não por pessoas desobedientes. O estado de lástima em que o nosso sistema político se encontra explica-se em larga medida pelo facto de milhares de funcionários públicos, milhões de militantes de partidos e milhões de cidadãos terem obedecido regras cuja aplicação tem sido, na maioria dos casos, injusta. Se o verbete “ordens superiores” não fizesse parte do nosso dicionário político, talvez não tivéssemos chegado aonde agora estamos. Talvez nenhum membro da CNE, do STAE, nenhum juiz, nenhum presidente de mesa, etc. tivesse tido a coragem moral de falsificar actas, editais ou resultados lá onde isso realmente aconteceu.
A desobediência podia ter sido importante para nos poupar do destino que nos envolve agora. Aí entram factores sociológicos que mereceriam um tratado à parte. A questão mais premente por enquanto é a seguinte: é ético desobedecer agora para que a aplicação de regras seja justa? É ético fazer manifestações à margem da lei? É ético reagir com violência à violência policial? É ético desrespeitar os órgãos estatais? Acima de tudo, até onde vai a desobediência? Podemos, em nome da desobediência civil, usar os outros como meios para alcançarmos os nossos fins? Podemos limitar a liberdade de movimento das outras pessoas, a sua liberdade de expressão (cancelando-as quando dizem coisas que não são do nosso agrado) e a liberdade de se não envolverem na política com base no argumento de que é preciso partir o ovo para se ter a omelete?
Não sei, mas a minha sensação é que talvez não. Uma coisa é desobedecer à injustiça do Estado. Outra coisa, bem diferente, é violar preceitos éticos que nos definem como pessoas. O Estado proíbe o roubo, por exemplo, mas isso não significa que eu que quero desobedecer ao Estado devo roubar. O limite aí não é a regra do Estado, mas sim o preceito ético necessário à minha definição como alguém portador de moral. Se violo a regra de não roubar, não estou apenas a protestar contra o Estado. Estou a usar outras pessoas como meios para os meus fins. Estou a fazer mal a outras pessoas. Estou a ser anti-ético. Esse é um problema que tenho comigo mesmo, não com o Estado injusto.
É curioso que a nossa história política, conforme venho repetindo, se resume a isto: está profundamente enraizada entre nós a ideia de que os fins justificam os meios. A Frelimo comprometeu o seu projecto de independência com esta maneira de pensar; a Renamo tornou-se numa organização “terrorista” por ter pensado que o fim da democracia justificava o seu terror; hoje, as manifestações que estão connosco já há semanas abriram espaço para o caos com base na ideia de que a “verdade eleitoral” é um bem pelo qual outros podem morrer, perder a sua propriedade, as suas fontes de rendimento, etc. Isto é, do outro lado da “verdade eleitoral” não está a salvação. Está aquilo que sempre inviabilizou o nosso País como projecto político.
Eu sou pela justiça eleitoral porque ela é importante para que a nossa democracia assente num princípio justo. Quando, contudo, a justiça eleitoral se transforma em “verdade eleitoral” em nome da qual tudo vale e serve, fico profundamente reticente. É um filme que já vi em vários idiomas e noutros quadrantes. Não tem fim feliz. Depois não vivemos felizes para todo o sempre. Nutrimos os ressentimentos que vão tornar robusta a desobediência do futuro. E se alguém me perguntar: então qual é a tua alternativa? A minha resposta é simples: se para matar a minha fome e a da minha família e comunidade é preciso matar o meu vizinho (ou mesmo apenas partir-lhe as pernas), eu prefiro morrer de fome.
Estas manifestações, pela forma como estão a ser conduzidas, pelo desprezo que revelam em relação aos direitos dos outros, deixaram de fazer sentido para mim. Não são diferentes da violência gratuita da polícia e da arrogância com que temos sido governados.
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Manuel Macia
Esta tudo dito!
Mas, como entramos na surdez colectiva, como fazer ouvir este clamor?!...
Manuel Macia
Alias,
Um excelente exercicio do que um sociologo (cientista social) pode fazer pela casa colcetiva: a sociedade (mocambicana).
A situacao em que estamos, sera mesmo o beco sem saida?...
Luís José Loforte
Muito bem: e qual é a saída para a crise?
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Hélio Mudjecky
Luís José Loforte esse é o ponto que à mim também preocupa, estamos todos a discutir as consequências - manifestações e seus contornos- e reduzimos o problema fundamental por detrás dessa manifestações - Verdade Eleitoral.
Esse princípio nunca fez tanto sentido em toda nossa história política multipartidária, hoje as pessoas querem saber por que foram votar. Que houve falsificação e manipulação dos resultados, é uma coisa que dispensa debate, as pessoas manifestam-se, há logo repreensão, os manifestantes ficam violentos, ninguém discute por que ficaram violentos.
Apesar de tudo isso: qual é a saída, mesmo? Não manifestar?
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Luís José Loforte
Hélio Mudjecky, conseguiu esmiuçar os contornos da minha pergunta ao Professor. Por este andar, ainda ficaremos sem galo, galinha, ovos e, consequentemente, sem omeletas!
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Pedro Armando Sitole Paduana
Luís José Loforte não falam das causas. Directa ou indirectamente, dizem.que houve fraude ou irregularidades, mas poucos se dibruçam sobre as soluções. Até cansa
Eusébio A. P. Gwembe
Pelo andar da carruagem, vamos dialogar no cemitério.
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José Pinhão respondeu
 
1 resposta
Tristencio Sambo
Professor Elisio Macamoo, como é que acha que o povo se devia manifestar para a reposição da verdade eleitoral? Os Madjermanis estão a manifestar-se pacificamente pelos seus direitos há mais de 20 anos e até hoje zero!!!
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Marilu Lopes Agibo
Professor Elisio Macamo lamento por quem nao vai ler todo o texto. Equilibrio, Ponderação enfim, a ÉTICA em causa! Politica sem ética é o fim!
N'tini Kwango Baule respondeu
 
2 respostas
Zé Martins
Uma vez mais concordo " ipsis verbis" com tudo que disseste. Ab
Raul Junior
Não concordar com a forma como as manifestações estão a ser conduzidas é estar na lista dos que os manifestantes consideram indivíduo a ser visitado. Luta - se pela substituição do regime por um nazismo selvagem!
Lyndo A. Mondlane
eu que sou parco em palavras, tirar fascistas ou intolerantes para colocar outros fascistas e intolerantes nunca funcionou
José Pinhão respondeu
 
1 resposta
Elisio Macamo
obrigado à Lorena Massarongo pela correcção do título.
José Pinhão
O povo desfavorecido também tem direito às "omeletes"
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José Pinhão
Os fins (justiça) só justificam os meios (violentos) porque não têm alternativa (pacífica). No caso da frelimo os fins eram e são injustos e os meios utilizados também são violentos. A crítica é livre mas as consequências más ou boas toca a todos mais cedo ou mais tarde.
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Kasswamy Tivane
Lamento bastante por este laudatório tão rico não chegar junto do elementos da UIR, SISE, corporação policial, simpatizantes e membros da frelimo, presidentes das mesas eleitorais,OMM, OJM. (Obedientes).
Edmundo Chambal
A semelhança entra a forma física do ovo e a do nosso PR torna o exercício de quebrar ovos algo relaxante...

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