Tuesday, March 23, 2021

30 anos de injustiça

 

Segunda-feira, 22 de março de 2021
30 anos de injustiça

Na semana passada, publicamos uma das matérias mais relevantes da história do Intercept. Mostramos como casais ricos do Amapá driblam a Lei da Adoção e tiram crianças de famílias pobres com apoio do judiciário. São histórias dilacerantes, como a de Jéssica, que ouviu o seguinte de uma funcionária do abrigo em que seus filhos estavam:

"Ela me disse para perder as esperanças e esquecer minha própria filha porque as pessoas que estavam com ela tinham mais dinheiro que eu”.

Em momentos assim, é preciso ter a empatia necessária para ver a história pelo olhar da vítima, que não tem recursos para ser ouvida: e se fosse com você ou alguém que você ama?

Passei os últimos 12 meses me dedicando a essa investigação. A primeira denúncia chegou ao Intercept quando fui a Macapá, no início de 2020. A pandemia ainda não existia e eu podia viajar pelo Norte e Nordeste do Brasil em busca de histórias. 

Valeu a pena mergulhar de cabeça nessa denúncia. O que descobrimos pode ser definido como um esquema que, valendo-se de ações de adoção com pedido de destituição do poder familiar, há décadas permite que pessoas endinheiradas ou com alguma proximidade com o judiciário local tomem crianças de famílias pobres. A perda da guarda acontece em tempo recorde e depois as mães ou outros parentes biológicos sofrem por anos com processos extremamente lentos para tentar recuperar suas crianças. Sempre sem sucesso. 

A reportagem é um retrato muito realista do Brasil e de como funcionam conchavos e acordos entre as elites. Por isso persegui essa história. Mas não só. Nossa missão é causar impacto e quando mergulhamos numa investigação como essa, nosso foco é mudar vidas, mexer com as estruturas.

Apenas dois dias depois da publicação da matéria o impacto veio e nos trouxe muita felicidade. Escrevo esta mensagem para dividi-la com você e agradecer por estar ao lado do TIB.

Na quarta-feira, o Corregedor Geral da Justiça do Amapá, desembargador Agostino Silvério Junior, publicou a portaria nº 62861 que determina a abertura de uma sindicância para apurar os fatos narrados na reportagem. O desembargador cita minha matéria no seu despacho para estabelecer que se faça um "levantamento de todas as ações de destituição de poder familiar e de adoção que tramitaram desde o ano de 1991 e aquelas que ainda tramitam nas varas competentes da Justiça do Estado do Amapá". 

Atenção: o Tribunal de Justiça do Amapá vai investigar todas as adoções realizadas por meio de ações de destituição de poder familiar nos últimos 30 anos no estado. A portaria deu a mim e às mães que entrevistei uma tremenda esperança de que os casos em que há irregularidade sejam revertidos. São, em sua esmagadora maioria, famílias pobres, que não podem contar com bancas de advogados poderosas e que precisam enfrentar outras famílias com grande poder financeiro e muita influência no judiciário. 

É aí que o jornalismo entra e faz a diferença. Eis o que acontece quando olhamos para os lugares que o jornalismo corporativo ignora e onde a imprensa local muitas vezes está submetida aos interesses daqueles que se favorecem de esquemas como esse. 

Meu trabalho no Intercept tem foco no Norte e no Nordeste e de maneira muito especial nos arranjos corruptos que existem no judiciário. É como a gente não cansa de repetir: queremos contar as histórias que realmente precisam ser contadas — e que com frequência não teriam espaço nos veículos financiados por empresários. 

O Intercept não tem juiz de estimação. Não tem medo de ir fundo nas suas investigações. Não faz jornalismo para caçar clique. Nós fazemos o jornalismo que a sociedade precisa e que tem como único fiador o interesse público. 

Em dois dias fizemos um tribunal — que há décadas é leniente com famílias ricas que tomam crianças de mães pobres — se mexer, e esse é um tipo de jornalismo que requer tempo, advogados, cuidado e custa muito caro. Para fazê-lo, a gente precisa do apoio de mais e mais pessoas. Se você acredita que é importante publicarmos outras histórias como essa do Amapá, peço que você se junte ao Intercept hoje. Tenho muitas investigações na manga, mas, para andar, precisamos ter certeza de que não faltarão recursos.

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Abraços,

Nayara Felizardo
Repórter

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