Friday, August 1, 2025

1 - Os crimes da PIDE/DGS em Moçambique (1964 - 1974)

 

Os crimes da PIDE/DGS em Moçambique (1964 - 1974)

Em 1974, o Exército criou uma Comissão de Verdade para investigar os crimes da PIDE/DGS. Recolheu milhares de provas de violações dos direitos humanos. Esta documentação estava perdida há mais de 30 anos na Torre do Tombo. O PÚBLICO revela-a pela primeira vez numa série de sete artigos.

As provas da violência e do terror

Ao longo de três meses, a "Comissão de apuramento de responsabilidades criminais do pessoal da ex-DGS" inquiriu centenas de vítimas e testemunhas, fez perícias, recolheu documentos e interrogou suspeitos. Os resultados dessa colossal investigação são as provas que faltavam sobre a violência discricionária contra a população.

O PÚBLICO agradece o contacto dos cidadãos que queiram prestar informações adicionais sobre os factos tratados nesta série sobre a PIDE/DGS em Moçambique, reservando-se o direito da avaliação devida. Para tal, disponibiliza-se um endereço electrónico: pidemocambique@publico.pt

Um arquivista deambula pelos corredores do último piso da Torre do Tombo, em Lisboa, observando com atenção as caixas que guardam a documentação produzida pela PIDE/DGS — três quilómetros e meio de um arquivo que ali chegou em 1991 e que ainda não foi integralmente inventariado e descrito. Fá-lo por curiosidade, nos poucos tempos livres que tem como chefe da Divisão de Comunicação e Acesso, nas pausas de um vaivém diário entre as salas de leitura e de referência e os diversos depósitos. Todos os investigadores que frequentam a casa conhecem Paulo Tremoceiro.

Em finais do ano passado, numa das suas voltas pelo sexto piso, atentou numa caixa com o número 48 e retirou-a da estante. No seu interior estava um volume pobremente encadernado com duas folhas de cartão grosso que envolviam cerca de mil folhas, presas em dois furos e uma corda de sisal. No frontispício alguém escrevera a caneta azul e com sublinhados “Região Militar de Moçambique. Sector ‘C’. Comissão de Apuramento de Responsabilidades do Pessoal da ex-DGS. Auto de corpo de delito por homicídio. Arguidos: Todo o pessoal de investigação desde o ano de 1964 a 1973 e ainda os directores da ex-DGS.”

Paulo Tremoceiro, chefe de Divisão de Comunicação e Acesso do Arquivo Nacional Torre do Tombo, no piso onde se encontra o Arquivo PIDE/DGS
Sala de leitura da Torre do Tombo
O fundo documental que o PÚBLICO agora revela está guardado em 12 caixas depositadas na Torre do Tombo há mais de 30 anos
Trabalhos de digitalização do PÚBLICO

Era um achado intrigante. Do arquivo da polícia política em Moçambique quase nada chegara a Lisboa depois das ordens de destruição do mesmo, decretadas pouco depois do 25 de Abril por autoridades militares e por alguns dirigentes da PIDE. Salvaram-se apenas sete pastas com alguns processos-crime e cadernos de notas apreendidos a elementos independentistas, provenientes das filiais em Nampula, Beira e Vila Cabral (actual Lichinga). De qualquer forma, a inscrição a caneta parecia indicar que se tratavam de documentos militares, adensando-se o enigma, e Paulo nunca lera qualquer menção a esta “Comissão de apuramento” nos papéis da PIDE. Decidiu abrir o volume.

A primeira página era uma folha azul de 25 linhas, dactilografada e dirigida ao “Gabinete do Movimento das Forças Armadas (MFA) junto do Comando-Chefe da RMM [Região Militar de Moçambique]”, datada de 6 de Junho de 1974 e assinada por um motorista chamado Alfredo Fontes Nivavela. O texto tomava a forma de uma participação judiciária feita no quartel em Nampula, a cidade mais importante do Norte moçambicano, e tinha como instrutor um alferes miliciano, Luís Filipe Sacramento, e como escrivão o cabo Francisco Torres: Nivavela, residente no bairro do Matadouro, procurava o paradeiro do seu tio Paqueleque, desaparecido desde o dia em que fora detido por dois agentes da PIDE/DGS, em Outubro de 1966.

No segundo fólio, repetia-se a metodologia: os mesmos militares registavam a 4 de Junho o pedido do cozinheiro Gabriel Mussa, que pretendia saber em que circunstâncias morrera o seu tio Lampião Piteira, morto nas celas da PIDE naquela cidade, em data incerta.

Seguiam-se 235 folhas de depoimentos mais ou menos semelhantes, que assumiam o formato de actos processuais: autos de notícia, autos de queixa, participações e denúncias. Os depoentes não eram apenas familiares que procuravam saber o que acontecera aos seus pais, irmãos, filhos e outros parentes após a detenção dos mesmos pela PIDE — na grande maioria, eram antigos reclusos da PIDE que contaram aos militares as torturas e os tratamentos desumanos e criminosos a que foram sujeitos nos interrogatórios e nas secções prisionais da polícia. Falaram e mostraram como os seus corpos ostentavam as marcas vitalícias dessa violência.

Os restantes fólios deste volume consistiam em cópias de comunicações entre as subdelegações e a delegação da polícia na capital, Maputo (então Lourenço Marques), sobre a morte sem causa registada de civis nos calabouços da PIDE e nos hospitais locais, entre 1964 e 1974; e ainda originais dos registos quinzenais de detenções, folhas A3 quadriculadas com as identidades dos presos, datas de entrada e de libertação e frequência da distribuição de alimentos, papéis manuscritos sobre refeições fornecidas e compra de géneros e bens alimentares — ou seja, uma parcela do arquivo que se julgava perdido para sempre.

O que esta caixa n.º48 indiciava era que após a Revolução de Abril as Forças Armadas (FA) presentes em Moçambique tinham constituído uma Comissão de Verdade para investigar os crimes e as violações de direitos humanos cometidos pela PIDE na colónia, inquirindo vítimas e testemunhas.

Mas quando Paulo Tremoceiro partilhou a sua perplexidade com o PÚBLICO, em finais de 2024, as suspeitas sobre esta documentação não previam o que se encontrou nos últimos seis meses: em mais 11 caixas estavam as provas documentais, e até agora nunca reveladas, das atrocidades praticadas pela PIDE contra a população civil moçambicana.

Verificar “possíveis crimes e abusos graves”

No quartel de Vila Cabral, perto do lago Niassa, a notícia de uma revolução na “metrópole” chegou através de uma rádio sul-africana. Os militares ali instalados estavam “isolados do mundo”, diz hoje o juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, António Ferreira Girão, então alferes miliciano. “Foi uma bagunça”, recorda, “os gritos eram ‘viva a peluda!’ e não ‘viva a liberdade!’ porque na gíria militar a ‘peluda’ era sair da tropa.”

António Ferreira Girão em Vila Cabral, no norte de Moçambique. Chegou a África acompanhado da mulher e da filha em Setembro de 1972 e regressou a Portugal em Agosto de 1974
Ferreira Girão era alferes miliciano e estava destacado na secção de "acção psicológica". Conhecia bem os elementos da PIDE/DGS na subdelegação de Vila Cabral

A quase mil quilómetros dali, em Nampula, o então major pára-quedista Nuno Mira Vaz, que chegara a Moçambique precisamente um ano antes, a 25 de Abril de 1973, oriundo de missões na Guiné e em Angola, apresentava-se como um dos militares do Movimento das Forças Armadas (MFA), sendo destacado para o grupo que deveria “responsabilizar-se” pelos elementos da PIDE/DGS. Mais a norte, em Montepuez, pequena cidade que tinha pouco mais do que um entreposto algodoeiro, propriedade de um colono abastado, António Ribeiro Carlota percebeu depressa que tinha de ali permanecer a cumprir o serviço militar, mas ainda não podia suspeitar que o Verão dos seus 22 anos iria ser passado a registar provas incriminatórias contra funcionários da polícia política portuguesa.

Muitos membros do grupo de oficiais que registou e documentou a repressão policial da PIDE já morreram; outros recusaram falar. Estes três homens (que nunca se conheceram) aceitaram falar com o PÚBLICO. O conselheiro Ferreira Girão e o coronel Mira Vaz não têm memórias muito vívidas das inquirições, talvez porque tenham abandonado abruptamente estes trabalhos: o pára-quedista, Mira Vaz, saiu de Nampula a 4 de Julho para chefiar um batalhão em Nacala; e Ferreira Girão, que então era já magistrado do Ministério Público, regressou a Portugal a 4 de Agosto. Ribeiro Carlota, hoje com 78 anos, engenheiro electrotécnico reformado, foi o único que passou os meses de Junho, Julho e Agosto de 1974 a ouvir civis, quase todos das etnias macua e maconde, originários da província de Cabo Delgado. “Quando acordávamos e íamos à janela espreitar, já havia muita gente que estava à espera para ser ouvida. Era impressionante”, lembra. Muitas destas pessoas viajavam de lugares remotos, a pé, caminhando “desde a véspera”.

“Vila Algarve”, antiga delegação da PIDE em Maputo, fotografada em 2015
“Vila Algarve”, antiga delegação da PIDE em Maputo, fotografada em 2015Manuel Roberto/Arquivo PÚBLICO

Em Vila Cabral, Nampula e Montepuez, como também em Quelimane, Beira, Tete ou Maputo, instalados em quartéis ou nos antigos edifícios da PIDE (como a “Vila Algarve”, delegação na capital), dezenas de militares começaram em finais de Maio de 1974 a trabalhar exclusivamente na “Comissão de apuramento de responsabilidades criminais de elementos da extinta PIDE/DGS” (aparentemente não existia uma única designação para este organismo, existindo documentos em que surge também como “Comissão para a investigação das queixas contra elementos da ex-DGS” ou “Comissão de Saneamento e Investigação”).

A data dos primeiros autos de queixas é 28 de Maio, feitos em Nampula. No dia anterior, 27, um telegrama do comando-chefe na colónia informava Lisboa de que todos os sectores militares tinham sido incumbidos de verificar os “possíveis crimes e abusos graves” exercidos por pides e que as inquirições seriam feitas por grupos de três oficiais, que, nas suas áreas, poderiam instaurar processos-crime e “controlar” os funcionários da polícia.

Isto significava, segundo se comprova na documentação, que os militares ficavam responsáveis pela instrução preparatória dos processos, actuando como investigadores criminais. Não podiam punir judicialmente, mas tinham poder para arquivar autos, manter sob prisão ou libertar pides, ordenar diligências, fazer interrogatórios e recorrer aos arquivos policiais e prisionais. Redigiam sumários de culpa pelos crimes de homicídio ou ofensas corporais (praticamente os únicos considerados) e recomendavam a entrega da matéria probatória aos tribunais militares. Aparentemente, essas provas nunca foram entregues às instâncias judiciais.

Serviços paralisados, fugas e poucas detenções

Em Moçambique, as decisões sobre o destino a dar ao pessoal da PIDE após a Revolução foram titubeantes e pautadas por retrocessos e dúvidas. Logo em Abril, os serviços desta polícia paralisaram, a delegação em Maputo e as subdelegações e postos em todo o país foram tomadas e ocupadas pelo Exército, confiscou-se armamento e munições e tomou-se o controlo das centrais de comunicações e do centro de instrução dos Flechas, a força paramilitar da PIDE/DGS que tinha quartel a 12 quilómetros de Vila Pery (actual Chimoio). No decreto-lei que ditava a extinção da PIDE, aprovado pela Junta de Salvação Nacional a 25 de Abril, lia-se que os funcionários destacados no Ultramar poderiam ser transferidos para os serviços de informações militares caso estivessem ilibados de responsabilidades criminais. Em Abril e Maio, porém, era ainda muito cedo para se apurar, de facto, sobre as atrocidades perpetradas pela PIDE contra a população civil, sobretudo desde 1964, ano de eclosão da guerra em Moçambique.

A iniciativa de incorporar pides no universo castrense foi pouco consensual no seio do MFA. Em Vila Pery, o Movimento entendia que o trabalho desta polícia não tinha “qualquer interesse” para a Polícia de Informação Militar (PIM), sublinhando que isso era verificável em colaborações e relatórios “antecedentes”. “Na minha perspectiva”, diz hoje Nuno Mira Vaz, elemento do MFA em Nampula, “não eram essenciais à tropa. Digamos que não havia consideração recíproca”.

Em Lisboa, o assunto não causava menos embaraços. Em meados de Junho, Costa Gomes, chefe do Estado-Maior do Exército, perguntou a Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial (a nova designação do Ministério do Ultramar), se o saneamento integral dos quadros da polícia política também se aplicava às colónias, notando desde logo que muitos pides estavam já a trabalhar nos organismos militares.

Em Abril de 1974, o quadro da PIDE em Moçambique seria talvez composto por cerca de 600 funcionários (não há números rigorosos, sabendo-se que em 1972 os números rondavam as duas mil pessoas nesta colónia, em Angola e na Guiné). Tinha uma delegação em Lourenço Marques (onde estava a direcção-geral, chefiada por António Fernandes Vaz de 1960 a 1972, e depois por Fernando Pereira de Castro até Abril de 74); mais de uma dezena de subdelegações, sobretudo no Norte, onde estava o epicentro da guerra; e inúmeros postos de fronteira e de vigilância. Tinha ainda sob a sua tutela um grande número de prisões: Machava e Sommerchild, na capital, Fortaleza do Ibo, Ponta Mahone, o campo de trabalhos forçados de Mabalane, calabouços em Quelimane, Beira, Nampula, Tete, João Belo ou Vila Junqueiro e celas em postos da administração colonial. Estava dispersa por todo o território e não existia qualquer controlo sobre a sua actuação.

Poucos dias após a Revolução, os Democratas de Moçambique, uma organização criada ainda no período colonial, começaram a exortar publicamente a população a apresentar queixas formais contra a PIDE. Disponibilizaram-se para recolher denúncias manuscritas e distribuíram folhas pré-impressas que poderiam ser preenchidas por vítimas e familiares. Sabemos agora que uma grande parte desta documentação foi recuperada pelos instrutores militares da Comissão e incluída nos processos-crime como matéria probatória. No cabeçalho dos impressos, lia-se a frase “Investigação dos crimes contra a humanidade e contra a economia” — não era a primeira vez que a PIDE era acusada de violações dos direitos humanos e delitos contra bens públicos e privados, mas desta vez, com o derrube da ditadura e da ocupação colonial, talvez fosse feita justiça, acreditavam os Democratas.

Folha pré-impressa distribuída pelos Democratas de Moçambique junto da população civil para denunciar os crimes da PIDE/DGS
Folha pré-impressa distribuída pelos Democratas de Moçambique junto da população civil para denunciar os crimes da PIDE/DGS

Temendo o recrudescimento da ira popular e de actos de justiça nas ruas, o Exército começou a deslocar pides para outras zonas, proibindo a sua saída do país. Porém, um número incontável conseguiu fugir para a Rodésia (actual Zimbabwe) e para a África do Sul; outros, poucos, foram surpreendidos por ordens de prisão, como as três dezenas que estavam na subdelegação de Vila Cabral.

Numa das salas onde presidiu a muitos julgamentos, hoje salão nobre da câmara de Estarreja, Ferreira Girão diz que lembrar o momento de detenção dos pides é como uma “catarse”. Enquanto alferes miliciano no sector da “acção psicológica”, ia quase diariamente à subdelegação recolher relatórios, pelo que conhecia bem os funcionários. “Passados quatro dias [do 25 de Abril] fui chamado à chefia: ‘Recebemos aqui esta mensagem ultra-secreta do quartel-general em Nampula (...) os pides têm de ser todos evacuados e presos para irem para a Machava, de maneira que você como está à vontade com eles tem de os reunir para serem presos.’ Mas como? ‘Olhe, uma sugestão: diga que vai fazer uma palestra’.” E foi o que aconteceu. “Lá os reuni e nisto sinto à volta do edifício, parecia um filme daqueles de guerra, as botas cardadas e as armas aperradas para prender 30 homens.”

António Ferreira Girão, juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, fez parte da Comissão que investigou os crimes da PIDE/DGS em Vila Cabral (Lichinga)

Num telegrama datado de 24 de Maio, o comando militar em Moçambique informou Lisboa que estavam detidos 38 pides (12 inspectores, três chefes de brigada e 23 agentes). Mas no mês seguinte tudo mudou, ainda que temporariamente.

Destruir os arquivos para evitar “incidentes internacionais”

A 8 de Junho, num plano rodeado do maior secretismo e delineado pelas Forças Armadas (FA) em Moçambique em conjunto com o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), depois de “ponderados todos os riscos”, foi desencadeada a Operação Zebra, destinada a deter a quase totalidade dos quadros da direcção e investigação da PIDE/DGS — exceptuaram-se as agentes femininas e os elementos que tinham entrado em funções depois de 1 de Março de 1974.

A que se devia a operação? Antes de mais, tinha um carácter preventivo e de protecção: “(…) o seu desencadeamento foi a intensa campanha desenvolvida opinião pública apoiada jornais tentando confundir Farmadas com ex DGS campanha que continua”, lê-se num telegrama “secreto” remetido de Moçambique, pertencente a um fundo do Arquivo da Defesa Nacional (ADN).

Iniciada às 10h30, a Operação Zebra resultou na captura de 529 pides (de um total de 562 identificados pelos militares, estando 22 em paradeiro desconhecido, segundo o Exército) e no seu encarceramento na Machava, situada na capital, mas também em celas nos quartéis e nas subdelegações. A acção previa um período máximo de detenção de dez dias, durante os quais a população era convocada a “apresentar queixas devidamente fundamentadas”. Findo esse prazo, as FA poderiam libertar aqueles sobre os quais não recaíssem “quaisquer acusações” e integrá-los na PIM.

A leitura dos telegramas e relatórios desses dias revela que os militares acreditavam que era necessário prender os pides para que os civis não receassem denunciar as violências cometidas na última década. Ao mesmo tempo, procuravam contrariar a “forte campanha de informação pública” que insinuava a cumplicidade e colaboração entre as FA e a PIDE/DGS, algo que causava um notório desconforto ao Exército.

Na data em que foi realizada esta operação militar, prosseguiam já os trabalhos da comissão criada para investigar os crimes da PIDE. Menos de um mês depois, a 4 de Julho, 148 funcionários tinham sido libertados, embora sujeitos ao “regime de controlo militar” e proibidos de sair das suas áreas de residência. Vinte dias mais tarde, o EMGFA foi alertado de que decorriam “fugas” para a África do Sul, a partir de onde os pides tentavam “aliciar outros” para uma acção “defensiva ou ofensiva” na colónia. A 3 de Setembro, nas vésperas da insurreição branca contra os acordos de Lusaca, Lisboa decidiu o “imediato regresso” dos que estavam “em liberdade e presos”; a 7, os revoltosos libertaram os que estavam detidos na Machava e deram-lhes armas; e no final do mesmo mês, centenas de funcionários portugueses e nativos embarcaram com as famílias em aviões fretados pela FA, com destino a Lisboa.

Em Junho, a maior preocupação da cúpula militar em Lisboa era, porém, a salvaguarda dos arquivos da polícia em Moçambique, extensos e dispersos — era imperioso mantê-los intactos e sob protecção, existindo o “grave risco” de “incidentes internacionais”. O EMGFA não sabia ainda, contudo, que a PIDE já se tinha antecipado, por diferentes motivos e usando outros métodos, nas subdelegações da Beira e de Inhambane: na primeira cidade, um inspector obrigara cinco reclusos a transportar todo o arquivo para sua casa, na cozinha da qual os papéis foram destruídos pelo fogo; e na segunda, tudo foi igualmente incinerado num auto-de-fé que durou de 26 de Abril e 4 de Maio. Num auto de inquirição feito a 4 de Setembro de 1974 na Beira, Nomeado Chipenete, ex-preso, contou que ele e mais quatro reclusos queimaram o arquivo da subdelegação da Beira na cozinha da casa do inspector José de Almeida Poço.

“Aos quatro dias do mês de Setembro de mil novecentos e setenta e quatro compareceu perante mim e o escrivão o senhor Nomeado Chibide.”“Que em fins de Abril de mil novecentos e setenta e quatro por onde, digo ordem do Inspector Poço foram levados para sua casa, na Ponta Gea, os processos das pessoas mortas, que tinham vindo uns dos postos do mato outros daqui da Beira que os mesmos foram queimados na cozinha do […], pelo declarante, pelo auxiliar Aspirante Xavier, pelo guarda prisional Ramos.”

Curiosamente, o argumento do receio de “incidentes internacionais” foi novamente invocado pelo Exército em finais de Setembro num telegrama “muito secreto” remetido para Lisboa. Mas, desta vez, o mando era para destruir todo o acervo da PIDE/DGS, mesmo com o “prejuízo” de nunca mais ser possível saber o destino de muitos presos políticos e de não se poder abrir processos-crime contra os membros da polícia.

Quando esta ordem foi cumprida, já os instrutores da comissão tinham guardado muitas cópias e originais desse vasto arquivo nas pastas dos processos-crime. O recurso a estes fundos fazia parte do trabalho de investigação e em muitos casos resultou na recolha de provas documentais dos métodos repressivos usados contra civis. Nas 12 caixas descobertas na Torre do Tombo está também uma parcela considerável do arquivo perdido de Moçambique.

Punição e extermínio

A 5 de Abril de 1973, a Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM) apresentou um relatório no Comité dos Direitos Humanos da ONU em que eram detalhados actos brutais cometidos pelos “colonialistas portugueses” em Moçambique. Uma cópia desse documento chegou à sede nacional da polícia política, em Lisboa, em Julho, procedente do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nada do seu conteúdo era estranho à direcção da PIDE/DGS ou ao presidente do Conselho, Marcelo Caetano. A FDIM alertava a ONU para as “bárbaras atrocidades” contra a população, exigia um inquérito internacional e para sustentar as suas acusações anexava um depoimento escrito do padre comboniano Luís Afonso Costa, que, no ano anterior, já comunicara a Caetano e a Roma a ocorrência de massacres e sucessivos atentados contra os Direitos Humanos no distrito de Tete. Os acusados eram as tropas e os pides.

Eduardo Mondlane (à esquerda) com Marcelino dos Santos durante uma audiência nas Nações Unidas na Tanzânia, em 1966
Eduardo Mondlane (à esquerda) com Marcelino dos Santos durante uma audiência nas Nações Unidas na Tanzânia, em 1966Getty Images

As denúncias às autoridades governamentais portuguesas e a instituições internacionais, feitas sobretudo por padres e missionários de diversas congregações, que tinham contacto directo com as populações, recrudesceram após o assassinato pela PIDE/DGS do fundador da Frelimo, Eduardo Mondlane, em Fevereiro de 1969, a par do aumento da violência contra populares. Tudo se prolongou até aos primeiros dias de Abril de 1974, quando Caetano ordenou a expulsão do bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto — num dos processos-crime da Comissão encontra-se o depoimento de uma testemunha que conta como os pides perseguiram, ameaçaram e bateram nos missionários também expulsos nessa altura, acicatando a ira dos colonos e lançando panfletos com o retrato de Vieira Pinto e a legenda “Famigerado traidor à Pátria. Indesejável em território português. VIVA PORTUGAL UNO E INDIVISÍVEL”.

O eco internacional do que acontecia em Moçambique teve poucos ou nenhuns efeitos práticos na colónia. Pelo menos desde 1966, os delegados do Comité Internacional da Cruz Vermelha que visitavam o país, nomeadamente as cadeias da PIDE, eram constantemente ludibriados através de cenografias montadas pela polícia com sugestões do Governo da “metrópole” e colaboração da Interpol, como veremos no artigo dedicado às prisões.

Nas últimas linhas de uma participação escrita a 14 de Junho de 1974 e entregue à comissão militar, Luís José Catopola, funcionário administrativo em Govuro, torturado em Vila Cabral e na Machava, dizia esperar contribuir para “o desvendamento do grande mistério que são os crimes cometidos pela PIDE/DGS”. Eram um mistério, de facto, para todos os que não foram submetidos à violência discricionária desta polícia. Quando a comissão iniciou os seus trabalhos, desconhecia-se ainda a escala e o grau de brutalidade e sadismo praticados, os atropelos às convenções do direito internacional humanitário e às mais básicas condições humanas de dignidade.

O que os instrutores militares registaram e recolheram para memória futura — a voz das vítimas, mas também a de familiares de desaparecidos e mortos e a dos perpetradores (agentes, inspectores, guardas prisionais, auxiliares e intérpretes) — será contado nas próximas semanas e num podcast de seis episódios. Nas edições impressa e digital, serão ainda publicadas selecções de documentos inéditos.

Num curto período de tempo (três meses), a comissão agregou milhares de depoimentos a 381 processos. Ouviu vítimas, familiares, testemunhas, elementos da PIDE e da administração civil, funcionários de hospitais e de conservatórias do registo civil, agentes da PSP, médicos e enfermeiros. Procedeu a acareações e a sessões de reconhecimento presencial, pediu diligências judiciais, instaurou autos de corpo de delito directo e indirecto, requereu exames de sanidade e registou lesões corporais visíveis. Constituiu como arguidos ou identificou como “presumidos delinquentes” dezenas de pides, alguns dos quais tinham já abandonado a instituição ou haviam sido deslocados para a “metrópole”. Interrogou alguns dos que foram capturados na Operação Zebra e ouviu confissões sobre a recorrente prática de torturas nos interrogatórios, mutilações, sobrelotação das cadeias, mortes por asfixia, castigos corporais, fome, ausência de tratamento médico e a memória traumática de um cão esfomeado que durante a noite era introduzido nas celas da subdelegação em Nampula para estropiar os reclusos.

Em diversos interrogatórios, os instrutores perceberam que nunca seria possível determinar o número de detidos e mortos pela PIDE porque em alguns postos e subdelegações o registo dos presos só começou a ser feito em finais de 1973. Muitos foram inumados em valas comuns nos cemitérios e no mato, outros lançados aos rios, sem certidões de óbito ou com assentos que falseavam as causas (broncopneumonia ou insuficiência cardíaca).

Os trabalhos de instrução feitos entre Junho e finais de Agosto, “perdidos” até agora na Torre do Tombo, representam um processo de punição e extermínio sem qualquer controlo entre 1964 e 1974 — detenções ilegais, execuções sumárias, desaparecimentos, trabalhos forçados, condições desumanas de encarceramento, falta de apoio médico, confiscos e roubos de dinheiro e bens pessoais, sevícias e violações sexuais, choques eléctricos, alimentação deficiente, inibição do acesso a água, mutilações com pregos e facas, queimaduras do corpo com archotes, isqueiros, cigarros, ferros em brasa e papa a ferver, fracturas de membros e tortura através de “water boarding” são alguns dos relatos da desmedida violência exercida pela PIDE.

Depois, em Setembro, a agitação em Moçambique não apenas decidiu o repatriamento e o desterro dos pides, como terá decretado o fim da comissão: os chamados “termos de entrega” dos processos datam do dia 10 e obedecem a uma “mensagem-relâmpago” para que os trabalhos sejam encerrados. Algures entre 1974 e 1975, esta documentação viajou para Lisboa, porventura nas malas especiais do comando militar português, com escolta e isenta de inspecção aeroportuária, e foi levada para a prisão de Caxias, onde a Comissão de Extinção da PIDE/DGS reuniu e catalogou o arquivo.

Desde 1992, as 12 caixas estiveram num dos depósitos da Torre do Tombo à espera da curiosidade de Paulo Tremoceiro. É o conteúdo dessas pastas que será revelado pelo PÚBLICO nas próximas semanas.

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