Moisés Kutsemeta
Quando criança, cortava cabelo, ou melhor, o meu pai mandava-me cortar o cabelo num barbeiro da zona. Era conhecido por “Moisés Kutsemeta” (o Moisés que corta cabelo). Aquilo era tortura com aquela máquina manual que puxava bem os cabelos. O choro estava sempre garantido. E para piorar as coisas, o barbeiro levava o seu trabalho a sério. Não só deixava aquela maldita máquina puxar bem a raiz do cabelo como também usava o seu dedo polegar para mandar a minha cabecinha para todos os lados a seu bel prazer.
Nunca começava uma nova faixa sem espetar o dedo polegar cheio de cabelos no meu queixo ou testa ou bochecha e lançar a minha cabecinha para um ângulo imaginário que ele precisava para alinhar tudo. E nem mesmo quando chegava aquela fase de endireitar tudo com a tesoura, que ele manejava como se fosse a língua duma víbora qualquer, as dores abrandavam. É por isso, suponho, que era chamado “Kutsemeta” (que figurativamente até quer dizer “como corta!”) e não “Mutsemeti” (cortador).
Cortar cabelo naquela altura, e logo para um africano que miraculosamente conseguiu ser assimilado – como foi com o meu pai –fazia parte dum processo de auto-disciplinarização. Normalizava uma ideia bem específica de ser civilizado. Cuidar de si, apresentar-se bem (segundo padrões coloniais, claro) e usar serviços de terceiros para fazer algo que ele próprio podia fazer (ou alguém na família) eram propriedades dum dispositivo (para falar com Foucault) ao abrigo do qual a tortura a que Moisés Kutsemeta nos submetia não era nada de errado, apenas o sofrimento necessário para que fóssemos gente. Outra maneira de dizer isso é que ele não era má pessoa (aliás, não era mesmo), apenas cumpria a sua obrigação dentro dum sistema que exigia isso dele. O meu couro cabeludo fervilhava em nome da civilização.
As sociedades têm disto. Comportam, a todo o momento, dispositivos que exprimem o exercício do poder e a forma como nós próprios nos submetemos a esse exercício como se fosse um acto voluntário. Não nos damos conta de que estamos a fazer o jogo de quem nos domina. No nosso país, há um dispositivo dominante na política que é a ideia de que só se é verdadeiro moçambicano se se é capaz de justificar tudo o que se faz com recurso à ideia de que é para o bem do povo. Vem dos tempos da Frelimo gloriosa e seu discurso marxista. Embora tivesse havido na altura algo parecido com um compromisso com isso, ao longo do tempo, e sobretudo com a abertura do sistema político, esse compromisso tornou-se mais retórico do que prático.
À medida que se constituiu aquilo que chamo de elite do atraso, portanto, uma classe política que vive do acesso aos recursos do estado para a sua própria reprodução – governo e oposição – as referências ao povo passaram a ser um engodo para legitimar a prerrogativa do poder. É sintomático, por exemplo, que nas hostes da Frelimo não exista ninguém hoje – absolutamente ninguém – que se tenha notabilizado por apresentar uma nova interpretação do que a Frelimo representa. A referência ao povo poderia ter sido traduzida num discurso, por exemplo, que destaca a importância da autonomia, das oportunidades, da dignidade, enfim, de qualquer valor que mostrasse que o partido está vivo e pensa. Nada. A referência serve para proteger o princípio dos fins que justificam os meios.
O total descalabro que foi o processo de sucessão revelou a miséria ideológica mascarada de medo de falar (ou “coesão”). O mais próximo que se chega a uma ideia de discurso ideológico é o que aquela senhora membro da Comissão Política falou: prerrogativa do poder. O manifesto eleitoral da Frelimo – assim como as teses ao seu último Congresso – são uma vergonha para quem tem como referência a Frelimo da Independência. O manifesto do candidato independente foi em muitos aspectos superior ao da Frelimo e num espaço político onde se discutem ideias teria sido difícil para a Frelimo ter os votos que teve.
Mesmo numa altura em que o País clama por algo mais fundador da parte de quem governa, nada vem. Só se ouvem as ameaças sem nenhum efeito do Comandante da Polícia que voltou a repetir o feito de 2017 quando disse que ia acabar com a insurgência em Cabo Delgado em alguns dias. Do Secretário-Geral interino e presidente eleito nem um pio se ouve. Este era o momento de ele pegar nas rédias e mostrar que não caíu de páraquedas. Era agora que ele devia mostrar que tem um projecto político, que sabe reunir consensos para o levar avante e que quer fazer alguma coisa para que o seu partido nunca mais seja associado ao que viola os direitos fundamentais do tal povo que serve. Mas nada. É o silêncio total.
Que a mesma referência ao povo seja usada pelos manifestantes – “povo no poder” – não representa, em princípio, nenhum resgate do verdadeiro sentido dessa referência. Representa apenas a força do dispositivo que, tal como a Frelimo o moldou, se traduz no princípio dos fins que justificam os meios. Nesse sentido, os actos de vandalismo fazem parte das manifestações. Não são externas a elas como alguns de nós gostaríamos de pensar para conferir aos protestos uma certa dignidade cívica.
A vandalização inscreve-se na lógica de o povo recuperar o que lhe é devido. Os ataques a cidadãos indefesos – mas que representam quem virou as costas ao povo – têm, no contexto deste dispositivo, toda a legitimidade. Quem vive em zona mais nobre não tem recurso fácil ao “vandalismo”, mas o direito que se arroga de incomodar com panelaços quem quer descansar – deve haver gente doente, bébés, etc. – inscreve-se dentro da mesma lógica: em nome da minha ideia do povo, tudo vale.
Quando olho para o País a partir deste prisma, ganho uma outra dimensão da extensão da nossa deriva como nação. Não é apenas o problema de não sabermos gerir eleições e expectativas. Somos todos, cada um de nós, gente que corta (cabelo) ao serviço da normalização da nossa própria desumanização em nome do povo.
É triste.
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Sem ajuda dos polícias e militares, contrariamente ao que aconteceu em Portugal apartir do dia 25/04/1974 é muito mais difícil de mudar o regime e a política em Moçambique que já dura mais que os 46 anos do salazarismo/Marcelismo, sem os distúrbios e extremismos que se verificam actualmente por alguns dos marginalizados, oportunistas e etc...
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Este seu texto é simplesmente uma pérola. Muitos parabéns
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Joaquim Huo
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Retenho, com profundo interesse, o conceito de "elite do atraso": é quase "fisico"!
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Amélia Russo de Sá respondeu
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Alcídes André de Amaral
De fato, a própria manifestação já inclui nela mesma a possibilidade do ato de vandalismo e desrespeito (e possivelmente ilegalidade) das forças de segurança. Sinto pavor dos que simplificam muito estes acontecimentos com a ideia de destruir para construir. Ou, como oiço até de nós jovens, o pensamento de que o que ocorre no país são coisas das revoluções e que é assim mesmo que deve ser nas Revoluções. IMAGINA-SE que o que ocorre no país seja uma revolução jamais vista... Eu estou tentando ver a tal revolução, mas não enxergo (deve ser porque não estou no país, e as pessoas que dizem isso tenham alguma razão. Porque estaria claro essa revolução se estivesse no terreno, dizem). E a saída que encontram para manter a crença numa revolução sempre acesa e em dia é construir uma imaginação de que é uma revolução em marcha, que já começou e que não haveria mais volta (para usar a expressão de Venâncio)... daí, a partir desta colocação de um presente em direção a um "futuro melhor" (qualquer futuro passa a ser imaginado como melhor que este presente), empurra-se os sentimentos das pessoas para frente, para cada vez mais para frente e, junto com esses sentimentos, carregam-se ao colo as ações, estas também cada vez mais violentas. E é só daí que passa a fazer sentido a ideia de "messias" e de "terra prometida" que ajuda a manter tudo isso em funcionamento. Ando triste com tudo isso...
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Slay Phyres
Não tem como frear as manifestações no contexto em que as coisas estão, o governo deve encontrar meios razoáveis de se posicionar, e evitar a todo custo discursos arrogantes de pessoas despreparadas para lidar com questões políticas.
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Pedro De Castro Maria
Professor Elisio Macamo, sendo que as forças em confronto usam apenas o "povo" como "fins que justificam os meios", qual seria para si a saída da crise instalada?
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Luis Mucabi Junior
Soberbo.
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