Wednesday, September 15, 2021

Olhar sem ver

 

Olhar sem ver
Esta é a fórmula usada por um colega maliano, Tieman Diarra, que faz connosco a Academia Piloto de Pós-Graduação em Estudos Africanos em Bamako. Decorre neste momento o nosso seminário “Hampâté Bâ”. Inspiramo-nos neste monstro intelectual africano para organizar a nossa reflexão sobre o que significa fazer ciências sociais em África e temos como slógan aquela sua ideia segundo a qual só quem sabe que não sabe é que pode vir a saber.
A fórmula “olhar sem ver” resume o tema central deste seminário: de que é que se trata quando dizemos que estamos a estudar uma determinada coisa, por exemplo, o golpe de estado na Guiné, a radicalização de jovens, a conversão religiosa, etc.? De que é que esses fenómenos são um caso?
Têm sido dias empolgantes de profunda reflexão metodológica e conceitual. Trazem ao de cima uma das piores manifestações da nossa dependência dum vocabulário científico alheio. Essa manifestação consiste no recurso constante ao que Mamadou Diawara (meu colega nesta empreitada) e eu chamamos de “demónios analíticos” e sua relação parasitária com factos estilizados.
“Demónios analíticos” são a expressão da ideia de que quem faz análise social está em posse não só de um conjunto de factos que reflectem a verdade das coisas, mas também da capacidade intelectual de utilizar as verdades por detrás destes factos para ter a certeza em relação a tudo. Por exemplo, quando a gente “explica” a violência em Cabo Delgado com recurso à ideia da marginalização, a gente está a usar um demónio analítico porque a gente se satisfaz com muito pouco.
O problema disto é que reduzimos a complexidade do mundo ao que entendemos, não ao que seria possível entender se não estivéssemos reféns do que sabemos. Perdemos, assim, a oportunidade não só de ampliarmos os nossos horizontes como também de perceber melhor o que queremos explicar. Isto é a propósito da maneira como de forma recorrente tentamos abordar os assuntos da nossa terra.
O áudio difundido ontem, por exemplo, é um exemplo típico. Ele tem, sem dúvida, um lado objectivo em relação ao que ele significa. Esse lado objectivo consiste não só nas alegações que a ex-ministra faz, mas também nos elementos adicionais que ele nos traz para avaliarmos ainda melhor aquilo que pensávamos entender bem.
O pior que podemos fazer perante esta situação é concluir que esse lado objectivo é tudo o que precisamos de saber. O demónio analítico insinua-se sob a forma duma narrativa básica que vê nela ou uma pessoa desesperada/descontrolada, ou então parte duma conspiração (Guebuzista) para prejudicar Nyusi. Pode ser que os dois palpites estejam correctos, mas o mais provável é que eles apenas revelem os limites da nossa capacidade de entender as coisas. Dito doutro modo, pode ser que essa maneira de abordar as coisas nos impeça de sabermos o que devíamos saber para melhor entendermos o assunto.
Escutei o áudio duas vezes. Uma de manhã quando o recebi, outra à noite já na cama. O que ouvi foi um relato de alguém que considera ter agido com referência a um código moral tácito entre membros duma determinada associação política e que interpreta o funcionamento inevitável das instituições de justiça como algo propositadamente feito para fins políticos.
Abstenho-me de tecer qualquer juízo normativo em relação à isto, embora confirme o que sempre tenho escrito – sobretudo nos textos sobre o “poder da Frelimo”. À pobreza analítica da esfera pública junta-se também a pobreza analítica dos actores políticos que não conseguem conceber a realidade social fora das teorias de conspiração na base das quais eles mantêm a ilusão do seu “patriotismo” ou “cidadania”. É tudo maniqueísta, isto é redutível ao bom e ao mau, sem nada no meio.
Ora, o sentido das coisas não é apenas objectivo. É também documental. Quando eu digo “ele também está envolvido” não estou apenas a indiciar alguém. Estou também a documentar as condições estruturais que podem tornar possíveis certos comportamentos. Dito doutro modo, o áudio não é apenas o desabafo duma pessoa desesperada que quer arrastar outros na queda. É o documento de como o partido Frelimo funciona, do valor normativo que atribuímos às nossas instituições – incluindo os nossos órgãos de soberania – e dos contextos dentro dos quais agimos como actores ou observadores políticos.
Tudo isto precisa de conceitualização. Outra maneira de dizer a mesma coisa é a seguinte: ao invés de olharmos para o áudio devíamos, talvez, procurar ver o que ele documenta.
As reacções ao áudio fazem parte do que ele documenta. Assim, e de forma previsível, alguns vão ver nela a pessoa que vai trazer a verdade das coisas, outros a desgraçada que precisa de ser vexada publicamente, outros ainda vão por instinto procurar proteger ou demonizar as figuras que ela critica ou parece querer proteger. As questões que deviam ser levantadas para a gente entender melhor o que está em questão, não serão colocadas.
Como escrevi ontem, não creio que haja matéria criminal individual contra o ex-Ministro da Defesa. Só que ele está acossado e, com ele, todo o nosso sistema político. A questão é a seguinte: a sua presença na tenda da BO não me parece necessária para o apuramento da responsabilidade criminal dos que lá estão. A sua ausência, contudo, vai garantir que pessoas sejam penalizadas por aquilo que fizeram em nome dum sistema e duma cultura política à qual ele preside.
Não sei como conceitualizar isto. Confesso a minha própria perplexidade. Mas o que precisamos de entender é justamente isso. Não se a senhora está desesperada, se o ex-Ministro da Defesa pode ser julgado (nem é isso que Boustani sugeriu; ele apenas disse que ele também devia depôr, portanto, ajudar na procura da verdade...), se isto é obra do Guebuzismo, etc. Precisamos entender o que isto tudo nos diz sobre a nossa forma de fazer coisas. Precisamos disso para mudarmos, sob o risco de se não o fizermos voltarmos a repetir os mesmos erros.
Por mais curioso que isto possa parecer, a chave mestre deste assunto todo é neste momento o ex-Ministro da Defesa. Nunca o País precisou tanto de liderança política.

2 comments:

Unai Sébastien Martinez said...

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