quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Ambiciosos

 

Ambiciosos

“Um ambicioso é capaz de tudo; vender a pátria só por causa da sua ambição e dos seus interesses individuais. Não sei se um ambicioso muda. A minha experiência prova que não. Muda de táctica, mas não elimina a sua ambição. Um ambicioso é criminoso ao mesmo tempo”. Samora M. Machel

Estas são, talvez, as palavras mais citadas em Moz quando alguém quer dar a impressão de ser decente. Só que são palavras que contêm uma ideia horrível, cujo único mérito é de nos fazer entender algumas das dificuldades que temos com o debate de ideias. Há três coisas nelas que importa reflectir.

A primeira é a ausência de definição do que é um ambicioso. Pode ser que no discurso original conste. Nem é necessária. O “ambicioso” é uma pessoa que se coloca à margem da vontade colectiva tal e qual ela é interpretada por um grupo restricto de pessoas. O núcleo duro da Frelimo gloriosa dizia o que era essa vontade e todo aquele que divergisse era potencialmente um “ambicioso”. Os “interesses individuais” ilustram esta ideia básica, pois naquele contexto de vontade colectiva fictícia todo aquele que manifestasse ideias diferentes só o podia fazer por colocar “interesses individuais” à frente.

A segunda coisa chega a ser arrepiante. Um “ambicioso” não muda. Uma vez “ambicioso”, sempre ambicioso. Isto é, uma vez inimigo do povo, sempre inimigo do povo. O alcance disto é enorme. É uma maneira de colocar um preço muito alto à divergência de opinião. Você fica marcado para sempre. Se interpela, ninguém concorda consigo e o assunto é suficientemente importante, o risco que você corre é de ser visto com desconfiança para sempre. Tudo o que você vier a fazer ou dizer vai ser visto como “mudança de táctica” para você continuar a perseguir os seus “interesses individuais”.

A terceira coisa é a ideia de que ser diferente dos outros, ou melhor, ter opinião radicalmente diferente faz de si um “criminoso”. Isto é, divergir de opinião é saltar uma linha imaginária que separa o bem da maldade, o justo do injusto, o correcto do errado. Sendo assim, o mesmo tratamento que se dá a um criminoso pode ser dado a quem tem opinião diferente, pois é tudo mesma coisa. Mais uma vez, o preço da divergência de opinião é bem alto. Você não corre o risco de se equivocar, o que seria normal. O risco que você corre é de ser visto como um “criminoso”.

Na verdade, estas não são palavras de Samora Machel. Ele é que as proferiu, mas ao fazê-lo, estava a dar expressão à cultura política do grupo a que pertencia assente na prerrogativa que um grupo de iluminados tinha de interpretar a vontade de todos, traduzir isso em projecto político e ainda conduzir o processo de realização desse projecto. Uma das principais manifestações dessa cultura política era (e continua a ser) a tendência para não tolerar quem pense diferente, marcá-lo para sempre e ainda legitimar qualquer agressão contra essa pessoa. Por isso, pense bem antes de repetir essas palavras numa discussão qualquer por aí. Não há decência nelas. Há apenas uma moral absoluta que não permite qualquer tipo de interpelação. É a moral de quem sabe que está certo, que os outros estão equivocados e, por isso, pode fazer o que quiser a esses outros.

Recuperei estas palavras para sugerir que essa cultura política continua viva entre nós e não é apenas prerrogativa da Frelimo. Mesmo o semanário Canal de Moçambique chafurda nesta lama pelo seu jornalismo ideológico com traços de fanatismo religioso. Como a sua celebração da morte de membros das FDS aquando da violência armada da Renamo contra o Estado mostra, ele também parte dos mesmos pressupostos na base da ideia do “ambicioso”. A questão é a seguinte: não temos espaços comuns de debate que nos permitam usar a razão como recurso na comunicação. Cada grupo fala para si próprio. Isso significa que como não queremos ouvir ninguém que diga algo diferente, radicalizamo-nos no nosso próprio discurso, não temos nenhuma vontade de ouvir argumentos que nos possam fazer mudar de opinião e ficamos com a agressão verbal (ou física) como único recurso comunicativo. A polarização é funcional à manutenção da solidariedade de grupo. A brigada do ódio cumpre, inadvertidamente, esta função.

O problema é que a solidariedade de grupo, quando baseada na polarização, é disfuncional para a política em contexto democrático. Política é deliberação, logo, divergência de opinião. Se ela não acontece, o espaço político fica atrofiado e não nos resta outra maneira de comunicação senão a agressão. Enquanto você tiver as rédeas do poder nas mãos tudo parece estar bem. Você pode mandar calar os outros e, se necessário, partir-lhes as pernas ou privá-los de oportunidades. Mas o poder não vai ficar consigo para sempre. Mesmo agora, aposto que os actuais detentores do poder já começam a ficar preocupados com o que vai ser deles daqui a alguns anitos. Para já, no próximo ano haverá novo candidato e ele não vai se esquecer de quem o ignorou, desprezou ou se fez de importante. Muitos vão ficar fechados em suas casas com medo de sair ou, ao telefone, vão usar linguagem codificada por saberem que estão a ser ouvidos pelo irmão grande que investe mais nisso do que na escuta dos malfeitores lá em Cabo Delgado. Tem aquela música reggae do conjunto “Steel Pulse” sobre o guarda-costas (bodyguard, I wouldn’t like your job, snakes in the grass, say they know not God). Pois. “I just can’t sorry [sic] for the bodyguard…”

Eu tenho a grande sorte de ter no meu trabalho, e ganha-pão, a possibilidade de reflectir sobre o que se passa no País. Não perco nenhum tempo nas redes sociais porque as leituras que faço, as reflexões metodológicas e teóricas que faço definem o meu trabalho. Se fizesse isto para ser parte da malta, inteligente que penso ser, preferiria oferecer os meus préstimos directamente e, quem sabe, garantir coisas que a vida como académico não nos dá. Enquanto no nosso País partirmos do princípio de que a crítica significa tudo menos o interesse genuino de entender coisas, vamos nos privar dum recurso mahala na própria governação. Vamos ficar reféns daqueles que não nos dizem o que pensam, mas aquilo que eles pensam que nós gostaríamos de ouvir. São essas pessoas que no mesmo fôlego vão iniciar campanhas contra aqueles que não se sentem com nenhuma obrigação de limitar o seu próprio pensamento. Vão reagir à crítica com o argumento de que alguém está contra o governo, Frelimo ou Nyusi, o que é uma maneira muito conveniente de se furtarem à reflexão e privar o País de tudo o que pode contribuir para o tornar melhor.

Mas, prontos, daqui a uns cinco anos eles também serão “ambiciosos”. Se a lógica que teimam em manter continuar, vão provar do próprio remédio. Aí, aqueles dentre nós que sobrarem, vão cantar com a Rosália Mboa que havemos de os receber nos braços quando caírem do poleiro...

Yorumlar

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