A Democracia em Chamas
por Paulo Guilherme *
2.5 mil milhões de meticais era o valor do contrato de marcação de combustíveis posto a concurso pelo Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME) de Moçambique. Aproximadamente, 35 milhões de dólares. O suficiente para gerar uma intensa disputa entre elites políticas próximas da FRELIMO, nas últimas semanas. Como, aliás, é habitual em contratos e concessões semelhantes. O tráfico de influências em torno do concurso foi enorme, gerando suspeitas sobre a adjudicação. A história foi contada na última edição do semanário Canal de Moçambique e o MIREME foi obrigado a anular o concurso. A democracia a funcionar.
Quatro dias depois, o "Canal" estava a arder: desconhecidos incendiaram as suas instalações. Por volta das 20:00 de domingo, as instalações foram arrombadas, o material informático queimado e, aparentemente, uma bomba artesanal foi detonada. A democracia a arder.
O "Canal" é dos jornais mais críticos em relação ao Governo da FRELIMO. Responsáveis da FRELIMO gostam até de desvalorizar o jornal como um meio da oposição. Muitas têm sido as denúncias de casos de nepotismo e corrupção feitas pelo "Canal". Tantas que, apesar da coincidência do incêndio com a publicação da denúncia sobre o concurso dos combustíveis, a lista de autores potenciais do crime é vasta.
Na verdade, este não é um caso isolado, nem deve ser tratado como tal. Carlos Cardoso, o corajoso jornalista de investigação, foi assassinado em 2000. Nos meses anteriores ao seu assassínio, Carlos Cardoso havia publicado notícias sobre o desaparecimento, em 1996, de 14 milhões de dólares em subsídios para a privatização do Banco Comercial de Moçambique (BCM). Cardoso continua, aliás, a ser uma referência nas redacções moçambicanas.
E a ameaça nunca deixou de pairar. Nos últimos anos, Moçambique tem assistido a uma vaga de violência mortal contra sectores independentes e críticos dos Governos Guebuza e Nyusi. E críticos dos serviços secretos, o SISE. Desde o assassinato de Gilles Cistac em 2015, ao baleamento de José Jaime Macuane, no ano seguinte. Em 2019, foi Anastácio Matavel, líder de um grupo de observação eleitoral, a pagar com a vida o preço da luta pela democracia. São casos atribuídos aos "esquadrões da morte", a que temos vindo a dar atenção no Africa Monitor Intelligence, há vários anos.
Em comum, o "Canal", Cistac, Macuane, Matavel e outros têm uma coisa: ousaram denunciar o controlo do aparelho do Estado - e dos negócios do Estado - pela FRELIMO e pela elite política.
Seria seguramente injusto responsabilizar a FRELIMO no seu todo por estes crimes. Mas será ao Governo, à procuradoria e à polícia criminal que compete esclarecer cabalmente os casos e colocar os mandantes - não apenas os autores materiais - perante a Justiça. Algo que não tem feito, talvez porque os mandantes são pesos-pesados do regime. Inimputáveis. E é no seio do partido-Estado - mais concretamente, em meios dos serviços de informações - que se alojam aqueles que têm dificuldade em conviver com a democracia e a crítica: Provavelmente nalguma reminiscência dos tempos do partido único.
* Editor do África Monitor Intelligence
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