sábado, 2 de maio de 2020

Um dia na vida duma máscara em Moz.


Elisio Macamo
30 Nisan, 17:18 ·


É noite de segunda-feira. Estou cheia de poeira encostada numa lata qualquer, cheira a óleo de cozinha, se calhar é isso mesmo. Mal consigo respirar porque todos os pôros estão cheios de impressões digitais, felizmente da mesma pessoa a julgar pelo cheiro e perfil. A saliva que foi se acumulando enquanto ele falava já secou. Está num abraço romântico com o suor que vinha lá da testa. Tem gato nessa relação, mas não é da minha conta. Enfim, veremos como vai ser o dia amanhã.

O de hoje começou muito cedo. O meu portador é vendedor ambulante. “Gueva” produtos electrónicos chineses na loja dum indiano na baixa de Maputo e percorre toda a baixa, desde a fábrica de cerveja até à TVM. Eu estou de olhos vedados, não vejo nada. Sou como o meu portador na sua relação com a razão que o leva a me usar. Meu “job” é proteger o meu portador de bichinhos invisíveis que dizem que vêm lá da China. Dizem que se uma pessoa infectada tossir ou qualquer coisa assim, pode transmitir às outras. Gostam de entrar pela boca ou pelas narinas. O meu portador recebeu-me como donativo duma alma caridosa que estava numa campanha de distribuição de máscaras a populações vulneráveis. O meu portador é população vulnerável.

A minha suspeita é que estão a obrigar o meu portador a se proteger para se protegerem. Espertinhos. Quando o aperto da vida obriga gente como o meu portador a arrombar viaturas ou subtrair peças para revenda através dos zambezianos lá do “Estrela”, os caridosos não percorrem a cidade a doar doses de KFC aos necessitados como forma de se protegerem. Preferem ignorar ou bater palmas quando a Edilidade manda sair. Enfim, fiquei no bolso do meu portador até ele chegar à paragem do “Chapa”. Apercebi-me que o meu dia de trabalho ia começar quando senti os dedos do meu portador a me procurarem no bolso. Será que ele lavou as mãos antes? Com sabão? Lembro-me que enquanto caminhava para o “Chapa” parou num sítio e a julgar pelo som líquido que se abatia na areia percebi que ele estivesse a urinar. Bom, o vírus não é transmitido por urina do próprio dono.

Para entrar no “Chapa” teve que se apoiar noutras pessoas, segurar no umbral da porta do veículo, limpar um bocadinho o assento. Estava muita gente lá dentro. E bem apertadinho. Mesmo sem narinas deu para perceber que aquilo era uma orquestra de cheiros. Senti as mãos dele a me ajustarem na cara dele. Tremi de medo. Quando é que ele lavou as mãos? Será que não pegou esses malditos bichinhos quando andou aí com as mãos em todo o lado? Não me entendam mal. Eu não me importo comigo. Não vou apanhar os bichinhos. Mas é frustrante ser acusado de não ter feito o trabalho como deve ser. O vizinho de lado perguntou ao meu portador quanto custavam uns auriculares piratas da Sony. Quando o vizinho disse “não percebi, disseste o quê?” estremeci porque sabia que ia ser levantada. Dito e feito. Lavou as mãos? Uma senhora sentada atrás do meu portador ajudou-lhe a me colocar bem. Lavou as mãos?

Descemos na baixa, perto do Mercado Central. O meu portador puxou-me para baixo e encostou-me no queixo. Ouvi-o a falar com amigos e pelo som percebi que se apertaram as mãos. Se tivesse olhos tê-os-ia fechado horrorizada. Mas sou apenas uma máscara. Aguentei firme. Durante toda a manhã, e depois de termos ido ao “Monhê” pegar a mercadoria, percorremos a Avenida 25 de Setembro de cima para baixo. Devo ter sido estacionada no queixo umas 15 vezes. Isso acontecia, sobretudo, quando o meu portador para ser entendido pelos seus clientes tinha que me afastar da boca. Os momentos mais difíceis para mim eram quando ele vendia alguma coisa. Pegava no dinheiro que lhe davam, metia no bolso e depois colocava-me de volta a tapar a boca e o nariz. Nem dava para eu perguntar se a pessoa que lhe entregou o dinheiro tinha lavado as mãos. E a pessoa de quem essa pessoa obteve o dinheiro?

O pior é que nem dava para me concentrar nessas coisas. O suor, a respiração e a saliva transformavam-me num eco-sistema húmido propício para os tais bichinhos construírem um projecto de habitação para jovens ali mesmo na boca do meu portador. Como são microscópicos, não é, nem dá para ver. Bom, também estou de olhos vedados. O único momento de alegria que tive foi quando fui parar no rosto dos colegas de trabalho do meu portador. Queriam ver como ficavam as máscaras na cara de outros. Parece que os colegas ficaram com inveja do meu portador.

Para a refeição, que ele tomou a caminhar, tive direito a descer ao pescoço. Passei mais tempo a absorver o suor que escorria do que mesmo a descansar para retomar o trabalho assim que ele terminasse de comer. Perto do prédio de 33 andares o meu portador limpou as mãos em mim e porque estava bem quente, tirou-me da cara, fez-me limpar o suor da sua testa e voltou a colocar-me para tapar a boca e o nariz. Mas que fazer, é meu job. É verdade que já não sei qual é exactamente a minha função, se estou ali para guardar os bichinhos, afugentá-los ou simplesmente fingir que o meu portador está protegido.

A tarde foi difícil. Eu só queria sair dali e ir tomar banho em algum sítio. Livrar-me do suor, da poeira, dos pedaços secos de saliva. Eu fiquei a imaginar como deviam estar as minhas colegas que tiveram a sorte de adornar a cara de outros compatriotas bem situados na vida. Ouvi dizer, mas não posso jurar, que as mais afortunadas entre nós atém direito de ser usadas em veículos 4X4 aclimatizados. Deve ser bom! Já ouvi também falar de outras colegas que terminaram esquecidas na berma duma rua qualquer. Criaram uma associação dos amigos de Carlos Serra e Regina Charrumar para serem recolhidas.

Prontos, a tarde passou sem mais incidentes. Como quem diz, não é. A vida do meu portador é dura. Há menos pessoas na rua a quem vender coisas. Dizem que estão em isolamento físico. Para o meu portador, o isolamento físico dos que estão bem na vida não começou com os bichinhos, mas bom, prontos, máscara não fala política. Mais tarde, na TV, o Presidente da República falou de pessoas como o meu portador. Fiquei orgulhosa. Disse que são os nossos compatriotas do sector informal. O meu coração derreteu-se. Bom, ter-se-ia derretido se eu tivesse coração. Não tenho. O meu job é fingir estar a fazer trabalho importante. Mais vale prevenir do que remediar. Como, não importa.

O motorista do “Chapa” teve que “falar alto” para um agente da polícia municipal porque alguns passageiros não traziam as suas máscaras. Ao que tudo indica, aquele dinheiro que vai ao seu bolso porque as pessoas nao traziam máscara também ajuda a combater os bichinhos. Bom, chegou uma altura, ao longo da tarde, que senti ter passado mais tempo no bolso do meu portador do que no seu rosto. Tanto faz. Quando chegámos à casa, o meu portador colocou-me de novo para impressionar os outros. Era sinal de importância. Na verdade, isso, mais do que se proteger dos bichinhos invisíveis, é que o motivava. Eu sinto quando alguém gosta de mim ou aprecia a minha relevância. Para o meu portador, cujo nome ele até nem me disse, eu sou um pedaço de trapo que o ajuda a se sentir parte da nação. Mais vale isso do que nada, não é? Sinto-me usada, mas sem utilidade. É tipo ele também. É coagido a sacrificar-se por uma nação que se está nas tintas para ele. Pelo seu sacrifício, recebe um pedaço de trapo para pensar que está a contribuir de forma menos onerosa. Bom, não devia falar assim de mim mesma. Não sou pedaço de trapo. Sou a infantaria na vanguarda da guerra contra o inimigo invisível.

Antes de ser encostada na lata de óleo ainda fui usada pela criançada lá em casa. Brincaram “polícia pega ladrão”, mas com outro nome. Chamam de “polícia corre atrás do compatriota no sector informal”. É quase a mesma coisa. Quando o meu portador viu que eu andava de rosto de criança para rosto de criança, zangou-se e foi me arrancar gritando “vocês, preciso disto amanhã, não é brinquedo!”. Um calafrio atravessou-me a espinha dorsal que não tenho. Não sei como dizer estas coisas sem usar a linguagem humana. Sou tipo os homens e mulheres que mandam na terra do meu portador. Têm o seu próprio mundo, mas não têm nenhum vernáculo que lhes permita falar do seu mundo de forma autónoma. Para conferirem sentido à sua vida descrevem-no como os outros descrevem os seus próprios mundos. Deve ser duro ter língua própria, mas assim que você abre a boca para falar dele, você se dá conta de que está a falar do mundo dos outros.

Na minha próxima vida quero ser um desses bichinhos. Fazer um nó malévolo na testa e aterrorizar aqueles que só se preocupam com a sorte dos outros quando se dão conta de que, afinal, estamos todos no mesmo barco. Sim, isso mesmo.
Enfim, mais vale remediar para poder prevenir...




39Ser - Huo, Ricardo Santos ve 37 diğer kişi

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Ilidio Da Silva Prof Elisio, simplesmente maravilhoso. A STV depois da tua reacção improvisada de ontem deveria passar este texto para os que não entenderam a msg. Parabéns mais uma vez pela abordagem
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Constantino Pedro Marrengula Prof, aqui estamos no faz de contas. Com raras excepções, cada um vai fingindo que esta a fazer a coisa certa. Quando se fala do desafio de pensar a maioria, os informais, atiram nos com alguns números redondos alocados para qualquer projecto com um pouco de social. And life goes on.
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Fatima Mendonça Hoje pela primeira vez usei uma máscara FP2. Muito terá ela a contar!!!
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Santos F. Chitsungo Tenho falado nos meus círculos da irrelevância e até da perigosidade do uso obrigatório da máscara, principalmente para as pessoas mais desfavorecidas.
É ilusório esperar que alguém que vive de 50 Mzn para alimentar diariamente, vá tirar esse valor para comprar diariamente uma máscara, supondo que precise de apenas uma, que é igualmente ilusório.
Okay, compreende-se que se faça a recomendação do seu uso, bem como da lavagem frequente das mãos, mas algo mais devia ser feito, como o reforço da imunidade das pessoas. Como? Existem muitas formas.
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Miro Guarda Santos F. Chitsungo meu caro, na Espanha o pessoal médico tem direito a apenas uma máscara por semana devido a escassez. Eu não sei até que ponto o uso desse EPI é relevante.
Enfim, minha opinião. Vale o que vale.
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Santos F. Chitsungo Pois Miro Guarda meu, os médicos, primeiro são treinados para preservar e manter a assepsia dos equipamentos e afins, depois, trabalham num ambiente rigorosamente controlado
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Yanıt yaz...







Santos F. Chitsungo Algumas dessas máscaras, são confeccionadas por leigos e não preenchem requisitos mínimos para o efeito para que foram concebidas.
Portanto, são mais perniciosas e só criam uma falsa sensação de segurança, o que pode até ser pior para o utente. Ele pode baixar a guarda, na falsa impressão de que está protegido.
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Bartolomeu Tome Ate que o portador, por entender que e objecto artesanal tipo aqueles uniformes das 'chefias' entendeu ha muito o seu papel acessorio como.objecto de adorno. Nao zangue sra mascara!
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Cremildo Bahule ...ya, tirei o chapéu.
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Emilio Maueie Recupero aqui uma das frase do Prof EM: cometer suicídio para escapar da morte
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Graca Conceicao "Fazer um nó malévolo na testa e aterrorizar aqueles que só se preocupam com a sorte dos outros quando se dão conta de que, afinal, estamos todos no mesmo barco. Sim, isso mesmo.
Enfim, mais vale remediar para poder prevenir..."

Habituamo-nos a viver ao mover das ondas.
Iremos desaguar onde ela bater e desfazer-se.

Nosso Moçambique real😔.

Elisio Macamo Vênia
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Lourenco Rosario Crônica da Morte Anunciada, Gabri Garcia Márquez, tudo dito, Elisio Macamo
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Leo D. P. Viegas Gostaria de partilhar :)
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Elisio Macamo copy and paste.
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Yanıt yaz...







Mussá Mohamad Ibrahimo Professor storyteller...
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Elias Gilberto Djive Que vida sofrida das máscaras! 👏👏👏
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Miro Guarda Tudo dito. Da para escrever um livro com o título: As máscaras da nossa desgraça.
Apwaka!

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