sábado, 15 de março de 2025

S. Exa. e o fumo

 

S. Exa. e o fumo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 29 de outubro de 1998

Em circunstâncias normais o mundo jamais teria ouvido falar de S. Exa., o Meritíssimo Juiz da 4.ª Vara Federal de Porto Alegre. Mas o mundo de hoje não é normal: é um mundo espremido, compactado, miniaturizado, que cabe numa tela e é varrido, de Leste a Oeste, num piscar de olhos, pelas lupas eletrônicas de satélites bisbilhoteiros. Na nova escala microscópica das coisas, é bem natural que qualquer criatura de dimensões exíguas apareça formidavelmente ampliada.

Foi preciso, de fato, que o mundo mudasse muito para que um infinitesimal togado pudesse alterar, com um simples toque de caneta, os hábitos e o estado de humor de milhares de pessoas de todos os quadrantes da Terra. Proibindo sumariamente o fumo nos aviões comerciais brasileiros, pouco importando a duração do vôo, seja para Catolé do Rocha ou Tashkent. Posso atestar que, no vôo da Varig que me trouxe de volta à pátria amada no último dia 22, pelo menos durante os 15 minutos da profecia de Andy Warhol S. Exa. foi objeto das atenções de bolivianos, franceses, americanos e japoneses, os quais, em suas respectivas línguas, proferiram a respeito comentários dos quais uma parte não compreendi e a outra parte não ouso reproduzir. É razoável conjeturar que conversações similares tenham se desenrolado em muitos outros vôos, perfazendo, no conjunto, um ibope nada desprezível.

Não me interessa, aqui, sondar as razões de S. Exa. Suponho que se imagine um benfeitor da humanidade. E, se tal é o caso, em nada abalará essa sua crença a informação de que o primeiro governo a reprimir o fumo, sob pretextos humaníssimos, foi o da Alemanha nazista, e de que o conceito de “fumante passivo” foi contribuição pessoal do Führer ao progresso da ciência: duvido que S. Exa. tenha intuição sociológica bastante para captar aí algo mais do que mera coincidência, e afinal a hipótese de um neofascismo disfarçado sempre poderá ser exorcizada mediante um daqueles jogos verbais em que são proverbialmente hábeis os juristas. S. Exa. dirá, por exemplo, que tão graves são os males do fumo que até mesmo a mente nebulosa de Adolf Hitler os percebeu. Em seguida irá dormir o sono dos justos, a salvo de toda comparação incômoda. Nem o poderá abalar a ponderação de que o mencionado conceito, antes de adquirir foros de coisa científica, circulou por décadas no submundo ocultista, até impregnar-se no imaginário coletivo com a obsessividade de um íncubo.

Afinal, que podem estas vãs palavras contra a autoridade pontifícia da Organização Mundial da Saúde? OMS locuta, causa finita . É verdade que as pesquisas tremendamente científicas que associam o fumo às fogueiras do inferno omitiram todo diagnóstico diferencial entre tabacos diversamente tratados, portanto quimicamente diferentes, e se limitaram a calcular estatisticamente os efeitos de um universal abstrato. Também é verdade que não houve diagnóstico diferencial entre fumantes de regiões poluídas e limpas, nem entre fumantes ansiosos e calmos, embora seja o pulmão a sede por excelência das somatizações de angústia. É verdade, ainda, que a própria OMS instituiu o erro sistemático das estatísticas, ao autorizar a classe médica a incluir o tabagismo entre as causae mortis de qualquer fumante que morra de doença pulmonar, independentemente de exames que comprovem a conexão de uma coisa e outra no caso concreto. É verdade que a histeria antitabagística erige em norma legal a suscetibilidade mórbida do paciente alérgico, um neurótico que não consegue desviar a atenção do que o incomoda, e debilita por efeito da propaganda adversa a tolerância normal do indivíduo são. É verdade que a “saúde pública” é hoje um temível instrumento de controle social. Nem mesmo os intelectuais ousam desafiar a nova divindade: as críticas jamais respondidas da contracultura da década de 60 à então chamada “máfia de branco” cederam lugar a uma temerosa e patética subserviência universal, prelúdio de catástrofes. Finalmente, é verdade que todo paternalismo, que alega proteger um homem contra si mesmo, é um atentado contra a dignidade humana.

Tudo isso é verdade, mas S. Exa. não está nem aí. Afinal, sua sentença é apenas uma liminar, esse maravilhoso expediente que permite à consciência jurídica gastar em um segundo seus 15 minutos de fama, sem ter de arcar com a responsabilidade das decisões definitivas e irremediáveis.

A origem da nossa confusão

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 15 de outubro de 1998

A Independência do Brasil, como a das colônias espanholas, não foi uma independência senão do ponto de vista jurídico. Política e economicamente, apenas passamos de uma órbita de influência a outra, em mais um episódio da histórica rasteira que a coroa britânica deu em seus concorrentes ibéricos.

É claro que, entre os fundadores do País, havia quem fizesse força no sentido de uma independência mais efetiva. É o caso do grande Andrada, que começou por aconselhar o País a que não fizesse dívida com os grandes banqueiros europeus, porque a dívida, afirmava ele, jamais pararia de crescer. Demitimos o Andrada e estamos rolando a dívida até hoje.

A política inglesa era incentivar rebeliões e reivindicações progressistas nas colônias e áreas de influência alheias, sempre em defasagem com as possibilidades efetivas da economia local, para gerar crises e destruir a hegemonia dos impérios concorrentes. Estimuladas pelos ingleses a dançar num ritmo que não tinham força para acompanhar, as nações afetadas por essa política desenvolveram um complexo cultural crônico, que é a contradição de valores básicos: se buscam adaptar-se às exigências éticas e políticas da civilização progressista, têm de se submeter à potência internacional e perdem autonomia; se querem preservar a autonomia, têm de negar a seus cidadãos os novos direitos criados pela sociedade mais avançada. Daí que, nessas nações, os governos mais democratizantes tendam ao “entreguismo” (JK), e os governos nacionalistas ao “autoritarismo” (Bernardes, Geisel). O reflexo disto na cultura e na vida psicológica é um ambiente geral de farsa e irrealidade, onde todas as propostas têm algum vício secreto e onde ninguém pode dizer plenamente o que pensa, porque todos se sentem, no fundo, culpados de inconsistência.

Mais tarde o centro ativo da transformação mundial saiu da Europa e foi dividido entre os Estados Unidos e a União Soviética, hoje parece estar voltando para a Europa Ocidental. Mas não importa: são sempre os outros que ditam o nosso ritmo e nos forçam a mudanças que, se ampliam os direitos nominais da população, restringem a autonomia nacional e, se ampliam a autonomia nacional, atrasam a evolução dos direitos. Isso acontece hoje, por exemplo, com muita clareza, na questão da ecologia: ou defendemos o interesse nacional e nos tornamos ecologicamente “atrasados”, ou adotamos as novas normas ecológicas abdicando de nossa soberania, como ocorre nas reservas indígenas onde ONGs estrangeiras mandam e desmandam e onde um cidadão brasileiro não pode sequer entrar. Nenhuma das alternativas nos satisfaz, e não podemos também dispensar uma ou a outra. As potências que dirigem o nosso movimento estão plenamente conscientes da posição insustentável de duplo desconforto em que cronicamente nos colocam. Nós é que, às vezes, não percebemos o jogo e, aderindo a aparências, a palavras e rótulos atraentes, ora louvamos o nacionalismo sem assumir a responsabilidade pelo atraso político que ele criará necessariamente, ora proclamamos idealisticamente novos direitos sociais e políticos sem termos a coragem de confessar que o preço deles será a nossa submissão maior a potências internacionais.

Hoje estamos, com FHC, numa fase democratizante-internacionalista; amanhã ou depois, com Lula ou outro petista no governo, voltaremos ao nacionalismo autoritário de Vargas (ou – por paradoxal que pareça – de Geisel). Em qualquer dos casos, sentimos uma profunda frustração, pois nossos melhores esforços são viciados por um mal secreto. É a contradição básica que torna tão difícil a um brasileiro sustentar um discurso político coerente: a coerência das idéias torna-se incoerência dos atos, e vice-versa. Por isso os nossos governantes mais eficazes foram os que tinham o discurso aparentemente mais ambíguo e mais oco, ideologicamente, e por isso os nossos políticos mais caracteristicamente “coerentes a seus ideais”, como Luiz Carlos Prestes e Carlos Lacerda, acabam nada deixando atrás de si senão um rastro de belas palavras…

Meio farsa, meio tragédia, a nossa independência perenemente semifrustrada poderia nos levar à loucura, se não fosse a proverbial habilidade do brasileiro para viver na ambigüidade. Mas esta capacidade é por seu lado parte do estilo tradicionalmente nacional de vida, que um progressismo moralista hoje nos convida a abandonar em troca de um rigorismo legalista de tipo americano que, por sua vez, custará ao nosso país novas submissões. E assim por diante. Até quando?

O Milagre da Solidão

Olavo de Carvalho

Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário

Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um educador de seus opressores.

Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras, rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.

Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria universal.

Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é sua inferioridade social: é sua superioridade moral.

Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido, reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando todo baja/ no bajar también”!

No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.

Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte, mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.

Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas, convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República florianista, mas com a reaidade tout court.

Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires, mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca registrada de Machado de Assis.

A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor, retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas no perdão.

O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade, sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.

Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman — o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).

A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do Rei Lear: “Ripeness is all”.

Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior. Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos atrás.

A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a “solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo, uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que dispara sobre um palestino armado de pedras.

Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser vencida, no caminho do entendimento.


(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.

Copiado, para a posteridade, deste blog que pode desaparecer a qualquer momento e é a única fonte deste grandioso texto em toda a internet.

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Link: O Milagre da Solidão

Escalada neofascista

 

Escalada neofascista

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 1o de outubro de 1998

Desde a extinção da URSS, o programa da esquerda mundial resume-se nas reivindicações de homossexuais, abortistas, feministas, pedófilos e racistas do anti-racismo. Tais reivindicações podem parecer modestas em comparação com os objetivos revolucionários francamente prometéicos do velho movimento comunista, mas, quanto mais concessões essa gente obtém de uma sociedade infinitamente complacente, mais irados se tornam os seus gritos, mais vastas as suas ambições, mais profundas e temerárias suas exigências.

Os homossexuais, por exemplo, que começaram choramingando pelo direito de não ser presos pela prática da sodomia entre adultos em recinto privado, agora falam grosso em defesa da pedofilia, exigindo que não apenas seja tolerada pelo Estado, mas ensinada nas escolas. Já existe, nos Estados Unidos, uma “Associação dos Homens que Amam Meninos”, e ninguém ousa acusar os seus membros de apologia do crime, pois todo mundo sabe que, se o fizer, correrá o risco de ser espancado, preso, ou no mínimo esmagado sob as patas do lobby midiático homossexual.

Os ativistas negros, que começaram reivindicando a oportunidade de desfrutar em paridade com os brancos dos direitos e benefícios criados pela civilização ocidental, agora que os obtiveram exigem que, nas escolas, essa civilização seja abertamente condenada, e exaltadas aquelas culturas africanas que desprezavam a vida humana e lutaram de armas em punho para preservar o sistema escravista quando a Inglaterra começou a reprimir o tráfico negreiro.

Os ecologistas, que começaram bradando alertas em favor das espécies animais em vias de extinção, hoje cobram do governo a proibição de matar mesmo espécies em irrefreável crescimento quantitativo, como os coiotes, cuja proliferação apocalíptica ameaça de extinção os rebanhos de ovelhas do Estado norte-americano de Utah. Os filmes de ideologia ecológica, que começaram com idílios arcadianos entre vacas e leões para o deleite de velhinhas e criancinhas, hoje apresentam como supremo ideal moral a destruição sangrenta da humanidade por lobos e leopardos, elevados à condição de anjos vingadores a serviço de não sei qual divindade justiceira das trevas, contrafação technopop do Jeová bíblico.

Quanto às feministas, que começaram reivindicando simplesmente o direito de votar, nada revela melhor o fundo de suas ambições atuais do que esta declaração de uma amiga de Lorena Bobbit: “Cortando o pênis do marido e depois chamando uma ambulância para socorrê-lo, Lorena tornou-se um símbolo da mulher ideal do nosso tempo.” Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

Qualquer pessoa adulta que, consciente da absurdidade grotesca desses discursos, se limite a ridicularizá-los como a meras extravagâncias inofensivas, ri apenas da desgraça de seus próprios filhos, condenados a viver num mundo onde tais caprichos delirantes serão lei e terão a maciça força policial do Estado para garanti-los. Uma amostra dos critérios morais que determinarão a vida no Estado futuro já foi dada pelo presidente Clinton, que, concedendo direito de asilo a todos os homossexuais que se sintam incomodados nas suas pátrias de origem, negou idêntico direito às mães chinesas que se neguem a abortar seus filhos, bem como aos médicos ameaçados de fuzilamento por se recusarem a praticar as cirurgias de aborto impostas pelo governo chinês: nossos filhos viverão sob a guarda de um Estado onde as fantasias do erotismo mais frívolo terão proteção oficial e a consciência moral será, no mínimo, reprimida como um desvio de comportamento.

Todo riso, aí, é no fundo apenas o risinho histérico de uma convulsão de pavor. Por toda parte, escorados numa retórica de ódio cada vez mais feroz e insano, no apoio cada vez mais global e avassalador do grande capital e da mídia milionária, bem como na cumplicidade cada vez mais cínica de autoridades oportunistas, esses movimentos espalham uma atmosfera de medo e auto-repressão obsessiva, onde o mero pensamento de desagradá-los infunde na alma do cidadão os mais sinistros presságios.

Essa atmosfera é inconfundivelmente fascista, e sua disseminação se torna tanto mais fácil quanto mais se apóia num discurso fingidamente alarmista voltado contra a ameaça de ressurgimento dos regimes nacionalistas de direita extintos 50 anos atrás – ressurgimento que tanto mais se denuncia como iminente quanto mais se tem a certeza de que as atuais condições de economia globalizada o tornam completamente impossível: açoita-se o cavalo morto para que o coice do cavalo vivo seja aceito como uma carícia.

Neutralidade e ortodoxia

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 17 de setembro de 1998

As novas diretrizes para a educação primária, emanadas do MEC em elegantes volumezinhos coloridos sob o imponente rótulo Parâmetros Curriculares Nacionais , sugerem que, em matéria de instrução sexual, os professores devem assumir uma atitude de neutralidade moral verdadeiramente weberiana. Sem dizer uma palavra contra ou a favor, devem descrever diante da classe, com sublime indiferença científica, “as orientações sexuais existentes”, para que as criancinhas, livres de pressões autoritárias, “façam suas próprias opções”. Não sei o que é aí mais comovente: o respeito devoto pela liberdade dos infantes ou o rigor da isenção científica que inspira as diretrizes do ministério. Pergunto-me, apenas, quais e quantas seriam as orientações sexuais que viriam a merecer inclusão no currículo – um ponto de magna importância pedagógica sobre o qual o MEC nada nos informa. À luz da neutralidade axiológica e do rigor científico, porém, não haveria a menor justificativa para reduzi-las às três mais vulgares (hetero, homo e bi), excluindo as variedades minoritárias como o sadomasoquismo, a pedofilia, a coprofilia e a bestialidade (termo pejorativo que busca cobrir de preconceituosa infâmia a prática do amor com vacas, jumentas e outras dignas criaturas do reino animal). A exclusão dessas práticas, além de ser cientificamente indefensável, resultaria numa autoritária limitação do leque de opções que a educação deve oferecer aos pimpolhos, que afinal são, porca miséria!, o futuro da Pátria. Diante da omissão dos livretos, e para não alimentar na opinião pública suspeitas de que haja nas concepções sexológicas do ministério algum resíduo de moralismo preconceituoso, o ministro Paulo Renato faria bem em divulgar a lista completa e explícita das opções sexuais atualmente reconhecidas pela ciência, sem esquecer, é claro, aquelas jamais vistas e só conhecidas em estado de hipóteses. Somente assim a tranqüilidade voltará a reinar no seio e demais partes erógenas da família brasileira.

Mas, em contraste com a neutralidade e frieza que devem imperar na escolha dos objetos de desejo, o MEC não julga que idêntica objetividade científica deva prevalecer em outros domínios do conhecimento, como por exemplo a História e as ciências sociais. Aqui, não apenas é desnecessário examinar com imparcialidade as várias escolas, estilos e teorias explicativas, mas, bem ao contrário, a escolha pode ser dada por pressuposta sem que seja preciso sequer informar às crianças que houve alguma escolha. A interpretação marxista da História deve ser ensinada não como uma teoria entre outras, mas como a única teoria possível, a ortodoxia suprema jamais contestada. É o que se vê em vários textos aprovados pelo ministério para o ensino dessas disciplinas, como por exemplo a Nova História Crítica, de Mário Schmidt, para o 2.º grau (Editora Nova Geração), Iniciação à Sociologia , de Nelson Dacio Tomazzi, e outros (Atual Editora), Estudando as Paisagens , de Oswaldo Piffer, para a 7.ª série (Ibep) e dezenas de outras obras do mesmo teor. Nessas cartilhas sacramentadas pelo aval mequiano, o predomínio absoluto dos fatores econômicos, a luta de classes, a conveniência de uma aliança operário-camponesa para liquidar os malditos capitalistas, bem como outros itens do cardápio marxista tradicional, não são ensinados como opiniões de uma determinada corrente ideológica contestadíssima por muitas outras, mas como verdades universais primeiras e últimas que jamais foram ou serão objeto de dúvida.

Nos casos em que não tenha sido possível evitar toda menção a escolas e teorias divergentes, como por exemplo as de Weber e Pareto, Ortega e Croce, Jouvenel e Voegelin, estas são cuidadosamente reduzidas a meros instrumentos de dominação ideológica a serviço da execrável classe capitalista, de modo a que, neutralizadas pela vacina marxista, não possam fazer mal às mentes juvenis dando-lhes a impressão de que nesses campos do conhecimento exista algo a discutir.

Educada desde pequena na linha justa do materialismo dialético, a alma infantil é assim poupada de dúvidas e perplexidades intelectuais, podendo resguardar o melhor das suas energias para dedicá-las a questões mais puramente teóricas e científicas, como por exemplo a da escolha de um objeto de desejo erótico numa gama de opções que abrange imparcialmente loiras, morenas, estivadores, soldados da PM, cães, bebês, chicotes e vibradores.

O texto sem mundo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de setembro de 1998

Um homem que decidisse dilapidar sua fortuna em champagne, cruzeiros marítimos e corridas de cavalos estaria fazendo alguma coisa inequivocamente estúpida por meios inequivocamente elegantes. Esse exemplo ilustra a idéia de que a elegância dos meios nada tem a ver com o valor dos fins. Aplicada às teorias hermenêuticas em voga no nosso meio universitário, ela nos ensina que uma teoria perfeitamente idiota pode ser exposta por meio de raciocínios sumamente elegantes que lhe dêem ares de alta sabedoria.

Muitas dessas teorias, aquelas que vão do estruturalismo ao desconstrucionismo, baseiam-se no pressuposto de que o conhecimento objetivo de um texto consiste em enfocá-lo “em si mesmo”, como objeto a ser descrito e analisado, sem nenhuma referência a significados exteriores.

Mas, para provar que é possível explicar um texto “em si mesmo” e sem referência a nenhum objeto exterior, seria preciso, primeiro, demonstrar que esse texto efetivamente não remete a um objeto exterior, que ele é efetivamente um universo fechado, completo e auto-explicável. Caso contrário, a hipótese da clausura textual seria ela mesma um texto cerrado que não se referiria a objeto algum, isto é, que nem de longe poderia ter algo a ver com o texto que diz analisar.

Seria preciso esclarecer, em seguida, se o autor do texto percebeu ou não estar escrevendo a respeito de nada ou se ele, ao contrário, tinha a ilusão de estar se referindo a alguma coisa, isto é, estava radicalmente enganado quanto à índole do seu próprio escrito, a qual só será revelada por nós. Nesta última hipótese, seria preciso dar algum fundamento razoável à nossa pretensão de conhecer o nexo interior de um texto mais do que foi preciso para produzi-lo.

Seria preciso, ademais, demonstrar como veio a ser possível que nossa explicação, por sua vez, não constituísse um todo fechado, que ela, na medida em que tem por objeto um outro texto, escapasse miraculosamente à lei da clausura textual que ela mesma proclama.

Como essas condições jamais se realizam nem mesmo hipoteticamente, por impossibilidade absoluta de concebê-las de modo simultâneo sem autocontradição lógica, os adeptos da teoria do texto fechado recorreram ao expediente de alegar que um texto se refere a outro texto que se refere a outro texto e assim por diante indefinidamente, de modo que o conjunto dos textos só fala de si mesmo sem jamais chegar a se referir a um objeto verdadeiramente exterior. Concedendo que o texto não é um todo fechado, asseguram que o mundo textual no seu conjunto o é.

Mas isso não melhora em nada a situação, porque um texto não é outro texto, e restaria explicar como um texto pode ter por objeto outro texto sem a mediação de algo que não é texto, como por exemplo os olhos do leitor, o papel ou, no caso da leitura em voz alta, o ar. Afinal, textos não lêem textos.

Evidentemente o clausurista fanático poderia objetar que essa mediação é apenas a condição exterior da existência dos textos e nada tem a ver com o seu significado, mas, esta afirmação por sua vez, distinguindo entre o que é texto e o que não é, fala de algo que não é texto. Ela escapa, portanto, à regra que proclama. Então, ou admitimos que essa afirmação não é texto, embora possa ser feita por escrito, ou admitimos que pelo menos um texto, isto é, aquele mesmo que o nosso clausurista acaba de escrever, escapa à lei universal da clausura textual – o que nos coloca na desagradável contingência de ter de justificar teoreticamente essa mágica exceção.

Não resta, enfim, para explicar o prestígio hipnótico dessas teorias, senão a hipótese de que a impossibilidade mesma de perceber aí algum sentido razoável contribua para fixar nelas, como num quebra-cabeças indefinidamente auto-renovável, a atenção do leitor. Como a busca de solução ao que não tem solução é um movimento masturbatório que excita o desejo e a fantasia em progressão geométrica à medida que aumenta a intensidade da dedicação, e vice-versa, logo o leitor entra num estado alterado que, com um pouco de boa vontade, será tomado por sinal de inteligência. E como, enfim, esse estado é compartilhado por milhares de pessoas dedicadas por ofício universitário a esse gênero de práticas, acaba por se formar entre elas algo como um campo semântico especial, semelhante ao dos drogados ou ao dos aficionados de UFOs, que pela interconfirmação de cacoetes verbais lhes dá o sentimento de saber do que estão falando – como se fosse possível, na sua teoria, falar de alguma coisa.

Uma boa parte da nossa atividade universitária no domínio das ciências humanas consiste precisamente disso e de nada mais.

Ciência e demência

 

Ciência e demência

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 20 de agosto de 1998

Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico quanto à conspiração urdida pelo universo para destruí-lo?

Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é impotente no caso. Um doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo acende todos os seus bytes de uma vez e ele nos prova , por a + b, que as rotas dos aviões foram propositadamente desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina para ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no raciocínio, mas nas premissas. Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam certas percepções intuitivas e o senso das proporções. Como estas coisas só se adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai e se perde no fosso intransponível entre dois mundos eternamente separados.

É desesperador.

Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais – chamemô-los assim – tornou-se uma experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se fossem pessoas normais, porém, depois de uns minutos de conversa, percebemos que eles simplesmente não sabem do que estamos falando. Provavelmente a dose de informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias percepções. Não crendo mais no que enxergam individualmente, apegam-se com desespero ao que imaginam coletivamente. É o primeiro grau da maluquice: a histeria. Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só faz isto em estado de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito faz com que sinais cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para produzir o transe. O sujeito que começara por confundir intensidade e realidade termina por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se um feto humano é humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e com um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de Chartres e as obras de Basquiat, que entre o carinho físico e uma facada no estômago a diferença é apenas de grau, que a consciência humana não existe, que o amor de uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc., etc. Aí ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra universitária.

Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico; um desconstrucionista também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.

O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade, assuntos que um pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua inteligência. Sempre que me vejo na contingência de ter de fazer isso, tenho de me imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de precauções para não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados do Henrique IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique IV para não contrariar o patrão maluco que imagina que é Henrique IV, terminam acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV. Quando não agüento mais e parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da minha saúde.

Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha contribuído para reduzir multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal disfarçado pela linguagem pedante em que se expressa. Pois a ciência é apenas uma das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da racionalidade se torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas diferenças, ele pressente, num primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em seguida, quando lê que “não há provas científicas” de que essas coisas existam, sente um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego é quem as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor honesto para lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa acepção do método, fraquíssimo argumento contra a existência do que quer que seja, principalmente daquilo que se conhece de longa data por percepção direta. Mas, para ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso saber o que é ciência e o que não é – e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para a quase totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.

Ralé de toga

 Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 6 de agosto de 1998

Embora não seja estrita verdade o que pretendia Karl Marx, que a condição social dos homens determine a sua consciência, ela o faz às vezes, e no mínimo é imprudente esquecer que ela pode impor severos obstáculos ao conhecimento. É característico dos modernos acadêmicos precaver-se contra esse erro no estudo de todos os assuntos humanos, salvo no deles mesmos. Se há um tema raro nas investigações acadêmicas, é o das relações entre a estrutura do poder universitário e as idéias dominantes entre estudantes e professores.

Mas é claro que a organização social e econômica do trabalho intelectual molda em parte a temática e os pressupostos da investigação e do debate, e não é possível que um tipo qualquer de organização – seja dos letrados chineses, seja a do clero medieval, seja a da moderna burocracia acadêmica – deixe a mente totalmente livre de entraves para enxergar a verdade tal e qual. Por isso é da mais alta conveniência que, numa mesma época, coexistam várias modalidades de esforço intelectual, somando, por exemplo, ao trabalho coletivo das academias as contribuições de free lancers outsiders . Afastar ou menosprezar estes últimos trará a consagração da organização acadêmica como o único canal permitido de atividade intelectual – e, quanto mais homogênea a classe pensante, mais hão de proliferar nela os erros consagrados em dogmas.

Por isso mesmo jamais me atraiu a profissão universitária, inadequada a uma vocação pessoal demasiado sui generis . O primeiro assunto que me interessou nesta vida foram as religiões comparadas, das quais não havia curso universitário no Brasil e ainda são anêmicos entre nós. Foi a necessidade de esclarecer certos problemas de teologia mística – islâmica, para tornar a coisa ainda mais exótica – que me levou aos estudos filosóficos; e a busca de uma precisa diferenciação entre o discurso da mística, o da poesia, o da filosofia, etc. foi que me pôs na pista da “teoria dos quatro discursos” ( Aristóteles em Nova Perspectiva , Rio, Topbooks, 1997), a qual, se tem algum valor filosófico independente, não é para mim senão etapa de um percurso que começa e termina na vida interior. Como poderia eu adequar esse trajeto às exigências de programas e chefetes, é coisa que escapa à minha imaginação.

Tão alheias são essas questões ao nosso mundinho universitário que ninguém, absolutamente ninguém na universidade brasileira, se deu o trabalho de discutir minhas teses, e, se alguém aí quis dizer algo a respeito, foi para dar o show de inépcia daquele parecerista da SBPC que escrevia “inverossímel”, com “e”, e confundia Santo Alberto Magno com São Gregório Magno. Várias vezes observei que todo o nosso primeiro escalão acadêmico reunido não teria força para empreender uma discussão séria do meu livrinho – e ao dizer isso não estava sendo nada hiperbólico, mas fazendo uma descrição precisa de um estado de coisas alarmante.

Para complicar, a teoria dos discursos incluía estudos de argumentação e persuasão, que depois apliquei ao exame de mil e um debates da atualidade, em artigos de imprensa cuja ligação íntima com um trabalho filosófico nem todos os leitores perceberam, ainda que eu a declarasse no prólogo a Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1998). E jamais a burrice acadêmica se desmascarou tanto quanto nas suas reações a esses artigos. Quando um posudo acadêmico, apanhado em flagrante delito de vigarice intelectual, reage com insultos ou insinuaçõezinhas, sem sequer se dar conta de que não foi vítima senão da aplicação rigorosa de distinções lógicas que ele teria a obrigação de conhecer e praticar, isso só denuncia, mais enfaticamente ainda, a situação calamitosa de um ensino universitário no qual faltam menos verbas do que quem as mereça.

Nessas condições, a entrada em cena de um trabalhador intelectual autônomo, simpático ou antipático não vem ao caso, mas capaz de renovar uma certa ordem de estudos longamente abandonada neste país, deveria ter sido saudada como uma ajuda providencial, o que não se deu porque a nossa casta universitária não tem, para tanto, nem o necessário amor ao conhecimento, nem suficiente desapego a vaidades corporativas.

Mas não é só com os de fora que o meio acadêmico tem má vontade. Quando se vê, de um lado, a indolência com que esse círculo adiou até agora um exame do pensamento urgente e revigorante do professor Roberto Mangabeira Unger, e, de outro, o entusiasmo indecente com que estudantes açulados por professores da UFRJ se apressam em agredir com gritos e pancadas um reitor que não veio ao seu gosto – então se percebe a miséria de uma casta tão empenhada em fugir do seu dever quanto em mandar no que não é da sua alçada.

É a essa gente arrogante e burra, a essa ralé togada que vamos entregar o futuro da inteligência no Brasil?

Operação Avestruz

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de julho de 1998

O novo mundo de governo planetário e “paz perpétua” que se anuncia para o século vindouro só é reconfortante e tranqüilizador para a população dos cemitérios. Para o restante da humanidade, ele é tão estranho, incompreensível e atemorizador, que as mentes mais fracas se recusam a vê-lo e se refugiam numa feroz nostalgia das guerras e revoluções do século 20, onde pelo menos todo mundo acreditava saber o que estava em jogo. Como fantasmas num teatro abandonado, continuam a reencenar mecanica-mente os velhos enredos, para uma platéia vazia, enquanto em torno o universo rui.

Quando ouço os miúdos discursos domésticos de nossos esquerdistas e de nossos liberais, em defesa do Estado ou da livre empresa, não posso deixar de constatar que tudo não passa de uma regressão uterina para um extinto mundo simples, em reação de autodefesa psíquica ante um súbito e temível alargamento do cenário histórico.

Entre nossos intelectuais, acadêmicos, jornalistas, políticos e comentaristas de tevê, quase ninguém quer realmente saber o que se passa, e, bem ao contrário, todos buscam produzir ansiosamente um discurso qualquer que os dispense de olhar para o mundo e lhes dê a ilusão de estar pisando no terreno firme da década de 40.

Mas a simples ignorância natural não bastaria para defendê-los de um mundo que se precipita, em velocidade atordoante, para dentro do desconhecido. Para manter-se numa reconfortante penumbra, têm de produzir com esforço deliberado uma espécie de ignorância ativa , reforçada todos os dias mediante novas e mais engenhosas negações dos fatos. Toda a imprensa nacional, sem exceções visíveis, é hoje apenas um mecanismo auxiliar dessa vasta Operação Avestruz, a força-tarefa designada para a missão de tapar os olhos da massa às notícias incatalogáveis.

Um exemplo característico é a facilidade unânime com que se dá por pressuposto, seja para maldizê-la, seja para enaltecê-la, que a Nova Ordem Mundial não é se-não um novo nome do bom e velho imperialismo norte-americano. Partindo dessa premissa, tudo não passa de uma questão de reeditar o discurso varguista contra o inimigo estereotípico da soberania pátria, ou de, inversamente, louvar os benefícios de uma economia transnacional. Ano após ano, enquanto o mundo em torno vai se tornando cada vez mais sinistro e ininteligível, o confronto nacional de idéias repete o debate Almino Affonso versus Carlos Lacerda, ou, na mais atualizada das hipóteses, sambão versus Tropicália. A moçada das redações, ignorante até o limite do sublime, reproduz as velhas notícias, com o entusiasmo caipira do trilionésimo Colombo.

Há certos temas de atualidade, no entanto, que por sua simples menção bastariam para desmantelar todo o teatrinho mental em que essa gente se refugia, e os quais, por isso mesmo, jamais entrarão na nossa imprensa, se não for pelo preciso canal por onde estão entrando agora, isto é, por um artigo assinado do campeão nacional de atipicidade jornalística, que não é outro senão este vosso atento criado, obrigado.

Digo logo um deles: em muitos meios conservadores norte-americanos – aqueles mesmos que, no nosso catálogo mental, seriam os mais associados aos interesses das grandes empresas –, a Nova Ordem Mundial é abominada como temível ameaça à soberania nacional dos Estados Unidos . Na visão dessas pessoas, o Federal Reserve System que governa hoje a economia norte-americana é uma intervenção estrangeira, o resultado de uma conspiração de poderosos interesses multinacionais que pretendem transformar a nação ianque em instrumento passivo de um inédito esquema onde, pela primeira vez na História humana, o futuro será inteiramente fabricado em laboratório, re-baixando a democracia à condição de um véu de fumaça para encobrir secretos manejos de engenharia social.

Como os sujeitos que dizem isso destoam das nossas expectativas quanto ao que deve ser a conduta supostamente típica de um imperialista ianque, livramo-nos deles num relance, decretando que devem ser uns esquisitões irrelevantes ou então agentes disfarçados da mesma conspiração que condenam. À horrenda perspectiva de ter de pensar para poder compreender um fenômeno estranho, optamos, no primeiro caso, por imaginar que sabemos melhor que os americanos quem é e quem não é importante na sua política interna; no segundo, como bons paranóicos, apostamos num maquiavelismo hiperbolicamente satânico do denunciante para não ter de nos preocupar com a hipótese mais dosadamente maquiavélica que ele denuncia.

Em ambos os casos, é a Operação Avestruz em marcha.

A intelectualidade brasileira nunca foi muito hábil em prever para onde vai o mundo, e nós dentro dele. Pois agora sua minguada capacidade preditiva vai sendo ainda mais debilitada, com a ajuda de uma imprensa unanimista onde o que não sai num jornal não sai em nenhum deles, e em coro, diante de qualquer fato novo, recua com o horror do poeta García Lorca ante a “sangre derramada” de seu amigo, toureiro morto na arena:

– No! Yo no quiero verla!