sábado, 4 de janeiro de 2025

O inexplicável

 

O inexplicável
Outra coisa interessante em relação à análise em ciências sociais tem a ver com coisas inexplicáveis. Se é que existem, claro. Por exemplo, neste momento em que alguns moçambicanos estão a “organizar o País” para o resto de nós, têm acontecido coisas que merecem o rótulo “inexplicável”. Estou a pensar numa pessoa que coloca fogo numa escola, retira os carris da linha férrea, asfixia o País economicamente mesmo sabendo que vai sofrer consequências na pele – se estiver no País, não fora.
Como é que alguém em pleno uso das suas faculdades mentais afugenta o investimento estrangeiro mesmo sabendo que vai perder emprego? Isto não é diferente daquele vendedor no supermercado que entra em esquemas de baixar o preço mesmo sabendo que se a empresa falir vai perder o emprego. Ou, já agora, aquele que se envolve em esquemas de corrupção mesmo sabendo que no final do dia todo o País vai ficar prejudicado, incluindo ele próprio.
Há coisas para as quais as ciências sociais ainda não têm explicação. E são muitas mesmo. Só que ainda não ter explicação não significa que elas sejam inexplicáveis. Significa apenas que ainda nos falta o conhecimeno que precisamos de ter para abordarmos o fenómeno com utilidade. E esse conhecimento que nos falta tem mais a ver com a nossa capacidade de identificar o problema que não entendemos. Só sabendo o que não entendemos é que podemos saber o que precisamos de saber para entendermos. Por vezes, as nossas explicações falham porque elas se referem a problemas errados. E como nas ciências sociais somos muito propensos a nos ocuparmos com aquilo que já sabemos, o risco de explicarmos problemas errados é ainda maior.
No caso da acção aparentemente “irracional” dos manifestantes – queimar escolas, por exemplo – vejo dois problemas distintos. O primeiro tem a ver com o acto de destruição em si, portanto, aquilo que o objecto representa para o manifestante e o segundo refere-se à relação do manifestante com todas as outras pessoas que iriam beneficiar do bem destruído.
Como espero mostrar mais adiante, há um denominador comum, mas trata-se, na essência, de problemas diferentes. Ora, a escola, a linha férrea, o hospital, a estrada, a loja, etc. representam, aos olhos de quem destroi essas infra-estruturas, o governo – na verdade, é o Estado, mas tudo bem... – e, portanto, são alvos “legítimos”. Nenhuma dose de educação cívica vai impedir alguém de atacar um alvo legítimo quando alguém cuja autoridade ele reconhece identifica essas infra-estruturas como tal.
Ou por outra, o que precisamos de entender aqui não é a destruição em si, mas a narrativa que se constrói em torno do bem público – que deixa de o ser para ser bem do governo e, pior, da Frelimo, aliás, uma das gaffes cometidas pelo candidato presidencial deste partido durante as eleições. Essa narrativa é populista e polarizante bem ao estilo da maneira como seitas religiosas extremas constroem o “diabo” (Carlos Serra, o pai, estudou muito estes fenómenos) ao ponto de tudo o que estiver ligado a ele se tornar “impuro”. Não é por acaso que hoje em certos círculos políticos dizer algo como “isso é narrativa da Frelimo”, “esse ‘é da OJM”, “isso é obra da Frelimo”, etc. se tornou razão suficiente para ser condenável. A maneira como se desvaloriza o esforço dos cidadãos que procuram restabelecer a normalidade é mesmo esta. Diz-se que é coisa da Frelimo e fica tudo claro.
O outro problema é mais complicado. Eu não sou a única pessoa que usa uma escola. Logo, se um dia tomo a decisão de queimar a escola tenho que lidar com o facto de que vou prejudicar as outras pessoas. Essa é uma outra maneira de dizer que tenho que me certificar que tenho boas razões para não considerar os interesses dos outros relevantes. Isto remete-me ao fenómeno da falta de respeito que me parece característico da nossa sociedade. Em vários textos escritos ao longo dos anos esse tem sido um problema que me tem intrigado. As mesmas pessoas que se queixam de como são tratadas nas repartições públicas, nos hospitais, na rua (pelos “chapas”), etc. são as mesmas que, muitas vezes, usam a sua relativa autoridade para fazerem o mesmo aos outros. Parece que somos guiados por um egoísmo racional que nos ajuda a ignorar os outros em nome do que é do nosso interesse. Sublimamos isso convencendo-nos de que o que é do nosso interesse é no interesse geral.
No caso, o interesse geral é a mudança política a qualquer custo, doa a quem doer. Não é ausência de valores morais. É o que se chama de ética da convicção, portanto, a ideia de que os fins justificam os meios. Para eu não considerar os interesses dos outros tenho que construir os outros como parte do problema, pois quando se organiza o País ninguém deve ficar no muro. Sentir-se lesado é suspeito porque indica falta de compromisso com o interesse geral. Não é diferente, para sermos francos, do que os senhores de escravos ou os colonos fizeram com as pessoas. Doutro modo é difícil perceber como gente religiosa conseguiu fazer tamanhas coisas a outras pessoas. Foi preciso desumanizar os africanos para que se justificasse o que com eles se fez.
O denominador comum é esta ética da convicção que dá a algumas pessoas a sensação de serem moralmente superiores por terem a coragem de consentir sacrifícios por um bem maior. Nesta ordem de ideias, a destruição de escolas não me parece inexplicável. Não são as escolas que estão a ser destruídas. É a Frelimo e, com ela, todos aqueles que ainda não acordaram para a necessidade da mudança. O inexplicável nesta visão orweliana da realidade é quem não entende o sentido que faz queimar uma escola da Frelimo.
Na minha humilde opinião de acadmicú é assim que a tirania começa em todo o mundo. Não é iniciada por gente má. É iniciada e implementada com sucesso por gente decente movida pelos interesses mais altos do povo.
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Lyndo A. Mondlane
Os Sinaís da tiranía sao claros
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Vanessa Sissi respondeu
 
2 respostas
Dadivo Jose Litsecuane Combane
Bem, eu sou aquele bom samaritano que não gosta de ser egoísta. Entro para chamar os meus amigos Ilidio Lobato e Elias Gilberto Djive . Mundasali xikurusao
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Tristencio Sambo
Sentar na cadeira, organizar computador para escrever condenando o povo por ter ateado fogo contra as sedes de um regime, ignorar os actos bárbaros do mesmo regime que não poupa esforços em chacinar população indefesa incluindo prisioneiros já capturados deve ser "muito patriotismo". Não entendo Deus, mas, acredito que Ele odeia mais o assassino de indefesos do quê ladrão de arroz e farinha...
Boa tarde Professor Elísio Macamo
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Tristencio Sambo respondeu
 
5 respostas
Ze Salazar 
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Subscrevo!
Os fins não justificam os meios!
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Eliha Bukeni
Do que tenho estado a assistir (ainda ontem por volta do meio dia, escapei de levar com uma pedra no vidro parabrisas do carro no merr estrela por dois marginais que estavam a partilhar uma garrafinhas de xivotxongo, uma bebida álcoolica de elevado teor álcoolico que é uma simples mistura de álcool etílico e corantes. A garrafinha custa entre 20 a 35 meticais. Os marginais exigiam que pagasse 200 mts para passar pela rua adjacente à Escola, entretanto, alguns vendedores de peças viram o episódio e resolveram intervir repreendendo os marginais. Prosseguindo,, grande parte dos 'manifestantes" que vandalizam bens públicos e privados são marginais. Eles já se encontram a margem da sociedade e não valorizam as infraestruturas que destroem tal como nós. Eu sei o que significa os 700 milhões de mts (mais de 10 milhões de USD) de equipamentos e artigos médicos que foram torrados no armazém do MISAU, mas essa informação não diz nada aos marginais, que até viram que as 3 dezenas de viaturas eram novinhas em folha.
Dito isto, o inexplicável, para mim, está do outro lado da barricada. Vi a intervenção do Professor na STV, onde defendeu que a violência das manifestações já tinha se escalado de problema político para problema se segurança. De facto, o problema do vandalismo é um problema que convoca o Estado a usar os seus meios de repressão para lidar com a situação, porém, todos nós estamos cientes de que o Estado não dispõe dessa capacidade. O saldo de mortes já vai em cerca de 3 centenas e ainda que evolua para um milhar, isso não vai resolver o problema porque a quantidade de marginais que a sociedade gerou é de milhões.
Durante a sua campanha eleitoral o candidato declarado vencedor sempre disse que queria deixar legado no final do seu mandato, talvez porque a alegada falta de legado é uma das questões que ensombram o actual incumbente que se queixa de ter inaugurado o seu mandato com eventos climatéricos desfavoráveis, depois vieram as dívidas ocultas que afastaram os parceiros de cooperação e investidores estrangeiros e mais tarde a Covid-19.
É inexplicável que almejando deixar legado, o candidato vencedor não perceba que no seu próprio interesse deveria livrar-se das algemas da disciplina partidária e iniciar conversações com vista a parar com a destruição da economia do país. O Ministro da Saúde disse que os danos no sector apenas podem ser recuperáveis em 2 anos, isto é, no sector de saúde só em 2027 voltaremos a estar ao nível de 2024. Mas os danos não se cingem a saúde, pois em termos económicos, para além dos danos materiais que podem ser valorados, existem os danos intangíveis, tais como os reputacionais do país que o tornam de país de elevado risco de investimento.
A acrescer, está a insatisfação dos principais parceiros de cooperação tais como os EUA e a União Europeia pela forma como foi concluído o processo eleitoral o que indicia que o próximo governo vai ter dificuldades em obter apoio financeiro num contexto em que a dívida interna que ajudou o actual incumbente a safar-se já está insustentável, aliás, o rating da nossa dívida interna é mais baixo que o da dívida externa.
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Elisio Macamo respondeu
 
1 resposta
Marilu Lopes Agibo
Revolução!!
José Pinhão
Há muito mais coisas "aparentemente" inexplicáveis!: https://www.facebook.com/share/p/1Cei8afdwx/
Andre Mahanzule
É grave o que aquele candidato nos está a fazer passar. Tínhamos que ter um cidadão daqueles como nossos compatriota. É muito azar para uma só nação.
E se por acaso ele conseguir a presidência vai reclamar um cacifo em Mavalane!? Santo Deus!?
Nuno Ganda
Esta tudo combinado
Delfim Jr de Deus
Muito bom texto Prof. Como o são a maioria, ando a procura de um dos seus textos em particular, sobre determinada agremiação que está calibrada para fazer as piores escolhas !!!