Não morrer por burrice
Recentemente, conversei com diplomatas dum país doador em Maputo que queriam saber a minha opinião sobre o grande julgamento. Disse-lhes várias coisas, por exemplo, (1) o meu receio que se transformasse num julgamento político (aquela coisa do juiz dizer que detesta a corrupção, e não dizer que é pela justiça deixou-me assustado), (2) que criasse um ambiente de linchamento (vê-se isso nas redes sociais e por onde passa o Sérgio Moro moze), (3) que impedisse que a Frelimo fizesse uma introspecção há muita necessário (ao invés de reduzir o problema à conduta individual), (4) que isso exacerbasse ressentimentos regionalistas e étnicos (com os malabaristas políticos da nossa praça a transformarem o assunto num acto de menosprezo em relação à etnia que se considera estar no poder – o que não corresponde à verdade, pois mesmo quando Machel, Chissano e Guebuza estiveram no poder se pode dizer que estavam no poder os machanganas), mas acima de tudo (5) que houvesse uma descredibilização tal da Frelimo e das instituições ao ponto de se chegar ao colapso do sistema político com todas as consequências daí decorrentes.
Aí perguntei aos diplomatas: qual é o vosso plano B? Notei constrangimento porque, aparentemente, não tinham pensado nessa possibilidade. E, entretanto, ela é real. É como em Sherlock Holmes: por mais que uma coisa seja improvável, se for possível, pode ser a explicação para o crime. Sempre disse, e sempre o direi, que as dívidas ocultas têm dois lados. Um lado é a arquitectura do auxílio ao desenvolvimento e o outro é a cultura política da Frelimo. O primeiro lado impõe constrangimentos à acção de governantes que dependendo do político à frente dos destinos do País pode significar submissão servil, ou tentativa de emancipação.
Qualquer decisão tem os seus riscos. Quem se submete, como geralmente o fizemos desde a assinatura do Acordo de Paz de Roma, penhora o que sabe, a sua experiência bem como os interesses do País a um complexo burocrático internacional que transaciona política como se de tecnologia se tratasse. Tenho ex-estudantes daqui que ocupam grandes postos nos nossos países e que sei que não têm nem a experiência profissional, muito menos a experiência política dos nossos governantes. A sua autoridade é a que vem com o facto de eles serem porta-vozes de quem tem dinheiro. Disse isso aos diplomatas com quem conversei e pareceu-me que tivessem corado quando ouviram isso.
Quem não se submete, é obrigado a assumir sozinho o falhanço que pode ser estrondoso como é o caso das dívidas ocultas. A necessidade de se libertar do bafo quente e mal cheiroso de quem acha que tem que saber de tudo leva ao secretismo que, por sua vez, apenas cria mais oportunidades para o desvio. Ao contrário de muitos moralistas da praça, eu continuo a pensar que o negócio podia ter dado certo. Se não deu certo não é apenas porque 19 pessoas decidiram defraudar o povo. Não deu certo por várias razões, uma das quais foi o facto de ter sido feito nesse ambiente de dependência.
O economista Carlos Nuno Castel-Branco sempre disse, e com razão, que a nossa dívida foi crescendo a um ritmo alarmante com o beneplácito dos doadores. Quando fomos “aprovados” como país pobre altamente endividados nos finais da década de noventa do século passado, a ideia não era só de gozarmos do perdão da dívida. Era também de podermos contrair dívidas (escrevi isso na altura). Por isso, quando vejo pessoas a correrem dum lado para o outro a reclamar das dívidas ocultas sem se preocuparem com a verdadeira dívida que contraímos com a ajuda dos que nos querem bem, fico assim!
O outro lado das dívidas ocultas é a cultura política da Frelimo. Lembro-me de ler um texto da autoria do António Cabrita em 2015 preocupado com o futuro do País por causa da eleição dum Presidente claramente inexperiente. Na altura, considerei o receio exagerado, também por achar que o partido Frelimo dispunha de quadros que bem colocados nos vários órgãos iriam ser um suporte sólido para o seu timoneiro. Equivoquei-me. Não tomei em conta o facto de na Frelimo o princípio segundo o qual o chefe tem sempre razão, estar acima de tudo.
O que se seguiu, desde 2015, foi um alheamento progressivo dos membros da Frelimo e, praticamente, o abandono do Presidente à sua sorte que é, na verdade, a sorte da própria Frelimo. Fez-se rodear pelos piores porta-vozes públicos que uma pessoa decente como ele parece ser pode ter, pessoas que se especializam no insulto descarado a tudo que é contra o chefe, pessoas, portanto, que apostam na asfixia do debate e na hostilização de tudo o que é diferente.
O resultado é o que tenho vindo a criticar desde o princípio, desde uma paz definitiva pírrica até à violência em Cabo Delgado. O fio condutor nesses desaires todo é a inépcia política. A maior demonstração dessa inépcia política tem sido a forma como o partido lidou com o dossier “dívidas ocultas”. Ao contrário de muitos, não vejo nenhuma razão para supor que o Presidente da República tenha tido algum benefício pessoal directo deste assunto. As alegações que se fazem apontam para um benefício de natureza partidário (dinheiro para as eleições). É grave, mas não assim tanto. O grande problema para mim é que ele é uma das pessoas que esteve à frente desses negócios do Estado na sua qualidade de Ministro da Defesa. O falhanço deste negócio, portanto, é também da sua responsabilidade. Isso levanta sérias questões sobre se ele tem estofo para dirigir um País quando foi uma das pessoas à frente dum negócio que se deu tão mal.
Por isso, a prioridade, assim que o escândalo rebentou, devia ter sido uma abordagem política do problema. Essa abordagem devia ter consistido em assumir responsabilidade, em nome do partido (e não pessoal) pelo problema, o que iria exigir uma reforma profunda do próprio partido e a maneira como ele funciona. Não fez isso. Deixou-se levar pelos que tinham contas a ajustar com o Tchembene, pelos doadores com os seus interesses e sua perplexidade, pelos oportunistas étnicos e regionalistas e, duma forma geral, pelo medo generalizado dentro da Frelimo de ser mal visto por dizer o que se pensa.
Numa altura em que o País precisa dum esclarecimento sobre as dívidas, portanto, duma resposta política, a Frelimo caiu na cilada duma solução técnica (ao gosto da burocracia internacional) que implica um julgamento que não vai apurar nada substancial senão a penalização de alguns desgraçados que tiveram o azar de estar no lugar errado, na hora certa, ou no lugar certo, na hora errada.
Ao ouvir o áudio que anda por aí esta manhã, pensei neste tudo. Perguntei-me se alguém dentro da Frelimo tem algum plano B, não plano B no sentido negativo do termo, mas sim plano B no sentido de as pessoas que se consideram decentes dentro da Frelimo socorrerem o Presidente que tanto precisa delas neste momento. Não entrar em boladas nem sempre é sinal de decência, ou prudência. Pode ser sinal de burrice em que potenciais comparsas te dão cabeçada e mais tarde tens que sofrer as consequências. Quando é assim a resposta não pode ser de individualizar o problema. Tem de ser de o abordar de forma sistémica e estrutural.
1 comentário:
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