Do heroísmo virtuoso
Sou duplamente suspeito para escrever este texto por ser colaborador da MBC TV e por ser visto como alguém que inveja (ou odeia) Venâncio Mondlane. A TV está de parabéns, contudo, por o entrevistar, algo que acaba mostrando muito do que está errado com a política em Moçambique, pois uma entrevista destas já devia ter sido feita pela TVM. A MBC TV proporcionou ao engenheiro Venâncio Mondlane um espaço generoso para expor o que pensa. Numa cultura política dominada por slogans e suspeitas, ouvir longamente um político a falar de si, da sua visão e das suas convicções é, por si só, um exercício cívico raro. Para quem estuda a política como eu o faço, foi uma oportunidade preciosa de compreender não apenas o homem, mas a natureza do seu projecto. A compreensão que julgo ter ganho motiva as reservas que aqui partilho sobre a qualidade da nossa política.
A entrevista revela uma figura dominada pela certeza moral do justo e pela convicção de estar em missão. VM fala pouco de políticas públicas, instituições ou programas. Ele fala de fé, integridade, sofrimento, e da própria história como via de legitimação. Apresenta-se como “ativista social emprestado à política”, “justiceiro desde criança”, “servo de Deus”, portanto, recorre a imagens que constroem uma figura messiânica, não um líder político. Chamo a isto de heroísmo virtuoso. VM constrói-se menos como líder político e mais como figura messiânica, no sentido clássico de alguém que se apresenta como instrumento da providência e não como produto de instituições. A sua autoridade não vem de um programa, mas de uma vocação. Ele fala como quem foi “chamado” e não como quem foi eleito, e a sua legitimidade assenta na pureza da intenção e não na eficácia da acção.
O líder político define-se por uma relação horizontal com os outros, isto é pelo debate, e convence, negocia e compromete-se. O messias, pelo contrário, fala de cima, em nome de um desígnio que o transcende. O primeiro precisa de aliados e instituições; o segundo precisa de fiéis. A consequência é que o espaço público, que deveria ser lugar de deliberação, transforma-se num púlpito. A narrativa messiânica é reconhecível na forma como ele se coloca sempre como sofredor redentor, aquele que foi traído, injustiçado, ameaçado, mas que persiste “pela graça de Deus” em nome do povo. A sua dor é apresentada como mediação da dor colectiva; o seu sacrifício, como promessa de regeneração nacional. É a lógica do salvador que sofre para que o povo desperte.
Essa retórica mobiliza emoções legítimas num país exausto, mas tem um custo político enorme, pois substitui a acção colectiva pela esperança individualizada. O cidadão não é chamado a deliberar, mas a acreditar. A fé substitui o programa, o testemunho substitui o plano, e o poder torna-se uma extensão da missão pessoal do líder. A política, assim, deixa de ser um exercício de governo e passa a ser um drama moral de redenção. É compreensível que, num país levado ao desespero por décadas de desilusão, esta retórica encontre eco. O problema não é o heroísmo em si, obviamente, mas o que Max Weber chamaria de confusão entre carisma e responsabilidade. O carisma funda, inspira, desperta; mas a política governa, decide, regula. E enquanto o herói procura coerência consigo mesmo, o político devia procurar coerência com o mundo, isto é, com as suas contradições, os seus limites e a pluralidade dos seus cidadãos.
Durante a entrevista, ele faz referência a quatro princípios que ele espera que o partido Anamola adopte após deliberação. São eles a crença num único Deus, a família como unidade base do Estado, liberalismo democrático e filosofia Ubuntu. Configuram a inovação ideológica que ele diz querer operar na política, mas, na prática, revelam mais ecletismo do que coerência. A crença num único Deus introduz um princípio teológico num Estado que a Constituição define como laico. Em vez de ampliar a esfera moral, arrisca restringi-la a um credo. A família como base do Estado parece uma afirmação inofensiva, mas pode servir de pretexto para excluir quem vive outras formas de pertença social, portanto, mães solteiras, jovens sem emprego, famílias recompostas, etc. O liberalismo democrático, por sua vez, é afirmado num discurso que simultaneamente desconfia das instituições e dos partidos, o que o esvazia de substância, a não ser que ele se refira ao tipo de liberalismo que hoje é reclamado pelas forças da extrema-direita no mundo. E a filosofia Ubuntu, que deveria ancorar uma ética de interdependência, surge diluída num sentimentalismo vago, reduzido à empatia pessoal do líder.
O discurso do engenheiro revela, contudo, a ausência de uma teoria do Estado, entendida não como exercício académico, mas como a espinha dorsal de qualquer projecto político. Ele fala de fé, integridade e amor ao povo, mas não define o que é o Estado, qual o seu papel, nem como deve equilibrar autoridade e liberdade, iniciativa e regulação. No lugar duma arquitectura institucional, encontro apenas uma ética pessoal, isto é a convicção de que a virtude individual pode, por si só, regenerar o país. Essa crença, embora moralmente louvável, confunde a transformação das consciências com a reforma das estruturas. O Estado, porém, não pode ser uma extensão do carácter dos seus dirigentes, ainda que o nosso discurso moral sempre insista nisso. É um conjunto de regras que precisamente existem para limitar o poder dos virtuosos e dos medíocres por igual.
Essa lacuna conceitual torna-se evidente no ecletismo dos quatro princípios que o líder enuncia, Deus, família, liberalismo democrático e filosofia ubuntu. Cada um provém de uma tradição diferente (religiosa, moral, económica e comunitária), mas nenhum é articulado num modelo coerente de governação. Não sabemos se se trata de um Estado confessional ou laico, liberal ou comunitário, centralizado ou participativo. Tudo se mantém na esfera do sentimento. O problema é que, sem um diagnóstico político preciso, portanto, sem nomear a ferida histórica a que se quer responder, o projecto não passa dum gesto de purificação moral. O resultado é inspirador, mas não me parece operativo. Assemelha-se a um catecismo de virtudes sem teoria de poder.
Para mim, todavia, o mais perturbador é o contraste entre o esgotamento do partido no poder e a imaturidade das alternativas. É legítimo reconhecer que a Frelimo perdeu há muito a capacidade de se renovar moral e politicamente. A multiplicação de “marchas de saudação” e a insistência numa mensagem política que coloca o Presidente no centro de tudo me parecem indícios claros da incapacidade da Frelimo de se renovar. O país precisa desesperadamente de novos horizontes, mas é precisamente por isso que se esperava mais da oposição emergente, portanto, mais pensamento, mais substância e mais política.
O mais preocupante, contudo, é que esta fragilidade conceitual não é apenas individual. Ela é o espelho da pobreza intelectual da nossa política. A Frelimo perdeu há muito a capacidade de pensar a si mesmo, e a oposição ainda não aprendeu a pensar o país. Dum lado, a inércia institucional, do outro, o moralismo carismático. Ambos substituem o pensamento pela convicção e a estratégia pela emoção. Confundimos a energia da denúncia com visão de governo, e o carisma com programa político. O resultado é um debate público onde se compete por pureza, não por ideias e onde o Estado continua sem ser repensado como instrumento republicano de justiça, e não apenas como palco de redenção.
A verdadeira tragédia não é que faltem líderes, mas que faltem teorias do poder capazes de transformar virtude em instituição, indignação em política, e esperança em projecto. O país precisa de uma oposição que raciocine, mas só tem uma que inspira; de dirigentes que aceitem o fardo da responsabilidade, não apenas o brilho da coerência moral. Weber tinha razão quando escreveu que o carisma funda, mas só a responsabilidade governa. Enquanto não entendermos isso, continuaremos a oscilar entre os que governam sem dar ouvidos a ninguém e os que querem governar sem compreender. O resultado disto só pode ser uma democracia que, ao invés de amadurecer, continuará a viver à mercê dos seus salvadores.
Moçambique continua longe. Muito longe!
Sem comentários:
Enviar um comentário