Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - A ave de Rapina Não Canta (4)
Por julgar actuais, decidi republicar uma série de textos que escrevi há uns 15 anos. Os textos foram, na altura, publicados no Jornal "Meia Lua", que já não existe. Hoje partilho o primeiro dessa série:
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Viajar Sentado no Mesmo Lugar (1)
Moçambique está a caminhar a passos largos para uma União Aduaneira no âmbito da SADC. Este desenvolvimento pode vir a constituir-se num importante desafio para os nossos empresários. Será que estamos preparados? Qual tem sido a nossa experiência, como país, em termos de gestão empresarial? As falências e encerramentos de empresas que ocorreram no final da década de 1980s poderão ser explicados apenas com base na eventual falta de honestidade dos gestores? Foi apenas um problema de falta de capacidade de gestão? Não será importante examinar o contexto internacional em que essas falências ocorreram? Como é que o ambiente institucional interno pode ter influenciado o mau desempenho empresarial?
Os artigos que se seguem destinam-se a problematizar a percepção que prevalece no país em torno dos encerramentos de empresas que ocorreram na década de 80. Estes fenómenos têm sido analisados apenas na base do exame do perfil dos gestores da época, os quais, muitas das vezes, são rotulados de incompetentes e desonestos. Os artigos pretendem assim trazer à colação outros factores que poderão estar na origem dum fenómeno arrasador que lançou para o desemprego e para a pobreza milhares de moçambicanos. Talvez assim nos preparemos melhor para os desafios que a União Aduaneira representa. Nada melhor do que começar por citar um curioso dito shangana: “u ta yendza na wu yo tshama” que, numa tradução não literal para o português significaria “viajarás sem te ausentares”. Esta expressão pretende ser uma admoestação contra atitudes levianas de pessoas e comunidades e é um chamado no sentido de um comportamento responsável. Funciona como um aviso de que todas as coisas erradas que fizermos serão levadas pelo vento para locais que nem sonhamos visitar. Ou seja, as pessoas parecem preferir veicular as coisas erradas em relação às boas acções. E a maneira como os outros nos encaram será construída a partir de factos pouco dignificantes
Esta questão da dignidade parece assumir nas pessoas uma dimensão transcendental, daí que elas dediquem uma atenção particular não só aos factos mas também às percepções que giram em torno desses factos da vida. Ninguém no seu perfeito juízo gosta de vender o seu lado mais defeituoso. Seria um caso raro e um doloroso exemplo de rebaixamento e de aviltamento próprio que alguém se comprazesse nos seus defeitos, que solenemente se adiantasse, cercado dos seus amigos, e exclamasse para o público, com a fronte alçada: - “fala-se aí de um tipo que é um medíocre, um indivíduo que habitualmente foge do banho como o diabo da cruz, um fanfarrão e um ébrio. Ora, com tão minguadas qualidades só eu existo por aqui. Esse indivíduo, portanto, sou eu!”
Ter uma boa imagem pública parece estar na origem do curioso dito shangana, que intima as pessoas, comunidades e países a cultivarem e a preservarem o que de melhor há neles. E, desse modo, a evitar associar-se a factos e percepções negados pela sociedade.
Moçambique, como país, não deve querer viajar sem se ausentar. Daí toda a sua indignação a actos associados, por exemplo, com corrupção. Com os roubos. Com encerramentos de empresas devido a roubos ou gestão incompetente. E, no nosso país, há várias pessoas que têm estado a viajar sentadas no mesmo lugar, acusadas precisamente deste último aspecto. Que o diga o Dr. Hermenegildo Gamito. Sempre que os seus adversários políticos lhe queiram desmoralizar, principalmente no Parlamento, é só falar da Mabor, do BPD, da MAQUINAG e por aí fora.
Evidentemente que, sobre tema tão vasto, muitas explicações podem ser avançadas, dependendo dos campos de especialização das pessoas. Mesmos entre os economistas as abordagens podem ser diferentes e os leitores poderão ser tentados a perguntar: em quem acreditar? Naturalmente que é em mim que os leitores deverão acreditar… No que se refere às diferentes abordagens, as suas causas podem ser as mais diversas. A começar pelo facto de alguns comentadores serem mais inteligentes que outros. A opção política dos intervenientes no debate pode ser outra causa das diferenças. E devo confessar que isto tem sido verdade no meu caso; ao longo dos anos, principalmente em períodos eleitorais, tenho encontrado muita sagacidade em opiniões económicas de correligionários do Partido de minha escolha, cujo analfabetismo é no mínimo proverbial, economicamente falando.
Falando mais seriamente, talvez fosse de referir que o objecto de estudo da ciência económica, diferentemente das ciências naturais, está num processo de constantes mudanças. As instituições, as empresas, o comportamento dos consumidores, a função do governo, a força de trabalho, não são fenómenos estáticos. Isto significa que a ciência económica, para não ficar fossilizada, deve se adaptar de dois modos. Ela deve mudar à medida que novas informações são obtidas ou a nossa capacidade de os apreender e interpretar melhora. E, em segundo lugar, ela deve mudar à medida que as instituições sofrem alterações. As diferenças aparecem então porque diferentes economistas têm diferentes atitudes perante as mudanças. Muitos tendem a acreditar que o objecto de estudo da ciência económica, semelhantemente ao que ocorre com as ciências naturais, é estático.
Para a tentativa de explicação que tento sugerir nos textos que se seguem, e mesmo para outras tentativas com que os amigos leitores se toparão no futuro, tenho um conselho simples. Testem as explicações na base da seguinte pergunta: a explicação procura apreender a complexidade de factores susceptíveis de explicar o fenómeno em análise? Subsequentemente, os leitores deverão se perguntar a si próprios se a explicação é verdadeiramente completa, em termos de considerar a multiplicidade de factores que influenciam um fenómeno e se essa explicação “faz sentido”, em termos mesmo de senso comum.
Todas as reações:21Tu, Ido Alfred, Ivan Amade e 18 outras pessoas
Segundo texto da serie
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - A Voz do Povo (2)
A voz do povo é a voz de Deus. Esta expressão pretende significar que aquilo que o povo diz só pode ser verdadeiro. Deve ser por isso que os artistas que se inspiram no povo para produzir a sua arte são praticamente imperecíveis. As suas músicas, a sua criação plástica, a sua dança e a sua poesia são reapropriadas pelo povo para perpetuar essa sua voz, essa sua sabedoria, que não seriam mais do que a voz e a sabedoria de Deus. Creio que a maioria das pessoas tenta prestar muita atenção ao que o povo diz. Existe no entanto um pequeno detalhe que, para mim, parece essencial verificar: Essa “voz” é genuinamente do povo? Não será dum sector específico com um elevado poder de amplificação “sonora”? Esta asserção parece-me importante para aquilatar a fonte da “voz” do que é comum referir-se como a principal causa do encerramento das empresas em Moçambique.
É facto incontroverso que um número considerável das unidades fabris que circundavam a Cidade de Maputo encontra-se em situação de inactividade económica. O mesmo fenómeno pode ser observado um pouco por todo o país.
As cidades de Maputo e Matola estiveram rodeadas por uma dinâmica cintura industrial em que se destacavam os sectores dos têxteis, vestuário, calcado, indústria metalo-mecânica, indústria alimentar e de bebidas. Estes sectores constituíram, durante vários anos, os alicerces da indústria moçambicana. Trata-se de unidades fabris que, outrora, proporcionaram emprego e riqueza, cuja lista é necessariamente longa: Vidreira de Moçambique, Texlom, Cifel, Mabor, Química Geral, Soveste, Cometal-Mometal, Metalbox, várias empresas de confecções. Esta lista inclui apenas aquelas de que imediatamente me lembrei.
A partir dos meados da década de 70, estas empresas começaram a evidenciar situações de crise, consubstanciadas na incapacidade de responderem às exigências e demanda do mercado. Esta situação levou algumas dessas empresas a anunciar e, em não poucos casos, a concretizar o seu encerramento, o que veio a aprofundar-se com a abertura do mercado moçambicano, que coincidiu com o lançamento do Programa de Reabilitação Económica (PRE), em finais da década de 80.
Recorrentemente, a explicação que se encontra para a ocorrência destes encerramentos é que aquelas empresas teriam sido geridas de forma incompetente pelas pessoas que haviam sido incumbidas da sua direcção. Porque a grande vaga de encerramentos coincidiu com o início de um vasto programa de privatizações empreendido pelo Governo moçambicano, alega-se ainda que a falência daquelas unidades industriais se deveu, fundamentalmente, a uma gestão ruinosa e dolosa por parte das administrações nomeadas pelo Estado. Esta gestão ruinosa e danosa destinar-se-ia, segundo os mesmos analistas, a delapidar e a desvalorizar as empresas para que, logo a seguir, esses gestores as pudessem adquirir, no processo de privatizações em curso, a um preço de banana. Em consequência, e como se diz em shangana, as pessoas que tiveram a (pouca) sorte de gerir essas empresas têm sido postas a viajar mesmo continuando no mesmo lugar. Pode-se assumir que esta é a voz do povo. Só que, como sugeri, talvez fosse importante verificar a genuinidade da voz. Se calhar é apenas um pequeno sector da sociedade que está interessada em fazer outras pessoas viajarem estando sentadas no mesmo lugar, como se diz na minha terra.
Estas alegações encontram provavelmente suporte numa escola de pensamento que se está a generalizar, que tenta explicar fenómenos complexos com simples acusações de feitiçaria. Se um facto ocorre e para ele não temos explicação, a tendência que vem ganhando terreno é arranjarmos um bode expiatório que nos deixe confortados. Há pobreza em Moçambique? Pois claro, com tantos corruptos que temos! Um determinado projecto não teve os resultados que se esperavam? Claro, alguém roubou o dinheiro! Poucas vezes paramos para apreender os fenómenos na sua verdadeira complexidade. Porque é que o projecto só pode falhar devido a roubos? Ele foi bem desenhado? Correspondia verdadeiramente à demanda dos utilizadores? Tinha sustentabilidade? Ou dependia do apoio permanente dos doadores? Estou a tentar dizer uma coisa que toda gente sabe instintivamente: que existe uma multiplicidade de factores que concorrem para a ocorrência de um determinado fenómeno.
Sem pôr de parte a eventualidade da ocorrência de fenómenos de gestão fraudulenta, interessa-me, no entanto, expor e analisar outras causas que possam estar na origem da falência da indústria moçambicana, que se prolonga até aos dias de hoje. Uma análise estrutural ajudaria, talvez, a preparar melhor as empresas moçambicanas para os desafios do futuro que o processo da União Aduaneira encerra. A análise estrutural conduzir-nos-ia a examinar o contexto interno e externo que determinou as ineficiências estruturais das empresas moçambicanas, até ao ponto da sua total incapacidade para responderem às dinâmicas do mercado
É assim importante compreender o quadro em que se deu o encerramento de quase todas as unidades económicas a que nos estamos a referir. Como é que o processo de privatizações pode ter induzido tal fenómeno? Terão, as privatizações algo a ver com a colagem da economia moçambicana ao sistema neo-liberal e consequente abertura dos mercados? Estariam as empresas moçambicanas dimensionadas para operar num ambiente de concorrência plena e aberta? Provavelmente seja de admitir a hipótese de, num ambiente em que o concorrente da UFA, por exemplo, deixou de ser apenas a FACOBOL, para passar a ser toda a indústria de calcado no mundo, a UFA não ter tido uma estrutura de custos que a capacitasse a concorrer adequadamente, por exemplo, com as imitações de adidas vindas da Ásia. O seu encerramento não se justificaria, nestas condições, apenas com base nas alegações de roubos ou gestão incompetente, mas sim devido à mudança da conjuntura e paradigmas económicos. No próximo texto hei-de tentar expor o ambiente em que surgiu e se desenvolveu a indústria moçambicana.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Protecção a um Inábil Caçador de Ratazanas (3)
Em Madzucane, localidade de Manjacaze onde nasci, a caça aos passarinhos e às ratazanas era uma actividade que ocupava a generalidade dos rapazes da minha geração. A minha inépcia para estas actividades era proverbial. Apesar de ter acompanhado as hordas de meninos que, fisga em punho, se embrenhavam pelos bosques à procura daquelas fontes alternativas de proteína animal, não me lembro de ter fisgado um único pássaro. No entanto, o meu sucesso nas armadilhas às ratazanas (swibangwas) intrigou durante algum tempo meninos mais hábeis na confecção daqueles artefactos que, aparentemente, tinham menos êxito do que eu. O facto é que eles assistiam as minhas toscas tentativas de confeccionar os swibangwas e davam-se conta de que nenhuma ratazana digna desse nome se poderia deixar apanhar. Só que, nas madrugadas orvalhadas daquelas paragens, quando nos embrenhávamos pela savana a examinar as nossas armadilhas, espantavam-se ao testemunhar o número de ratazanas que eu havia caçado. Afinal, o que acontecia era que eu estava sendo protegido por alguns dos rapazes mais velhos que apreciavam o facto de eu pertencer ao grupo. Para evitar que eu desistisse em consequência dos previsíveis desaires, sorrateiramente, dedicavam-se a corrigir os meus imperfeitos swibangwas.
A emergência de grande parte das empresas que se encontram neste momento encerradas pode ser comparada àquela protecção ao inábil caçador de ratazanas que eu era. O surgimento dessas empresas esteve, em grande medida, ligado a um paradigma de desenvolvimento que se estruturava na base da protecção à indústria nascente. Esta foi uma prática que prevaleceu desde o período colonial, com maior destaque para os princípios da década 60. O modelo de desenvolvimento seguido, baseado na alocação induzida dos factores de produção, foi pedir emprestado muitos dos seus elementos ao paradigma de desenvolvimento baseado na substituição das importações. O paradigma da substituição das importações foi um modelo de desenvolvimento que prevaleceu por várias décadas e que se destinava a alavancar as economias dos países subdesenvolvidos da América Latina, Ásia e África. Substituição de importações entender-se-ia como todo um processo de desenvolvimento que, respondendo às restrições do comércio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições históricas distintas, a experiência de industrialização dos países desenvolvidos.
O objectivo das políticas proteccionistas adoptadas em Moçambique durante o período colonial era o de gerar uma economia suficientemente flexível, diversificada, capaz de superar choques, poder responder a estes e, por conta própria, gerar continuamente crescimento e bem-estar, principalmente para extractos da população favorecidos pelo regime colonial. A lógica básica da estratégia de industrialização seguida era que a transformação da economia moçambicana demandava protecção em relação à concorrência com produtos importados. Neste caso, o Estado colonial assumiu o papel dos rapazes mais velhos que, aleivosamente, corrigiam os meus swibangwas, impondo quotas de importação, impondo tarifas ou accionando outros mecanismos que limitavam a entrada de produtos estrangeiros no território nacional.
Na verdade, a base de sustentação da indústria manufactureira que se estabelecera no país era a garantia de um mercado interno livre da concorrência estrangeira. A ideia era que, na ausência da protecção, os custos iniciais do estabelecimento da indústria não estimulariam os investidores privados (colonos) a aventurar-se numa nova área.
Como se vê, esta estratégia de crescimento seria diferente daquela induzida pela substituição "espontânea" de importações. Esta é a que ocorreria naturalmente em resultado de uma mudança nos preços relativos do produto nacional frente ao importado, tornando o produto nacional mais barato. Esta mudança dos preços relativos pode estar associada tanto a maiores ganhos de produtividade na indústria nacional ou a uma depreciação da moeda nacional frente à moeda estrangeira, o que confere maior competitividade ao produto fabricado internamente.
O proteccionismo e a realocação induzida de factores (que ocorreu tanto no período colonial como no período socialista que se seguiu à proclamação da independência nacional) permitiram o surgimento de uma vasta gama de ramos industriais. Tudo parece indicar que estas indústrias só poderiam ser viáveis naquele ambiente de protecção, mesmo com as gritantes deficiências que começaram a evidenciar a partir dos meados da década 70. Semelhantemente, no caso do caçador incompetente de ratazanas que eu era, o meu sucesso só poderia manter-se se os mais velhos continuassem a corrigir os meus swibangwas
É importante a este respeito reparar que os industriais moçambicanos nunca haviam sido confrontados com concorrência num mercado aberto. O que muita gente ignora é que a economia colonial era fortemente proteccionista, assim como o era a economia centralmente planificada do período imediatamente a seguir à proclamação da independência. Numa situação de protecção, a colocação da produção das empresas raramente é um problema. Uma análise às dinâmicas de vendas de uma empresa como a UFA durante o período colonial demonstraria facilmente como estas empresas operavam numa situação de quase monopólio. Assim, grande parte destas indústrias veio a revelar-se desajustada com a abertura económica, que implica concorrência a uma escala global. Mesmo se considerarmos que, por vários motivos, e principalmente durante o período da economia planificada, muitas das empresas que encerraram já não estavam a abastecer eficazmente o mercado.
O ponto que aqui se pretende defender é de que o encerramento de unidades económicas ou o seu funcionamento deficiente pode estar ligado a razões estruturais, nomeadamente aquelas que têm a ver com o seu desajustamento tecnológico, para competirem num ambiente económico aberto, isento de proteccionismo. Esta realidade de abertura é contrária à realidade que prevaleceu tanto no período colonial como no período que imediatamente se seguiu à proclamação da nossa independência. Isto é, o melhor gestor do mundo, se fosse possível identifica-lo, não seria capaz de viabilizar uma Mabor ou uma Texlom sem abordar adequadamente as questões estruturais que, na sua generalidade, são de nível macro. E podem relevar de um contexto internacional específico, como tentarei explicitar em próximo artigo.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Uma Área em que os Curandeiros Ajudam Pouco (5)
A falência está alistada entre os cinco principais eventos negativos que concorrem para alterar, a bastante longo prazo, a vida de indivíduos e famílias. A falência e o consequente encerramento de empresas é, assim, juntamente com fenómenos como o divórcio, doença grave, a contracção de uma deficiência severa e a perda de uma pessoa querida, uma ocorrência a evitar a todo o custo. Ela costuma deixar profundas cicatrizes tanto na configuração psíquica como na credibilidade social dos gestores e trabalhadores afectados.
E para agravar as coisas, esta é uma área em que os curandeiros ajudam pouco, diferentemente de outras em que eles competem ferozmente na oferta de soluções e conforto. Na verdade, os nossos médicos tradicionais deveriam ser encorajados a se ocuparem desta área como já o fazem em relação às doenças curáveis e incuráveis e aos azares amorosos. No entanto, enquanto não se avançam soluções metafísicas para este fenómeno, talvez os economistas possam avançar algumas explicações.
Não fará sentido, na conjuntura actual, olhar para as organizações empresariais com uma visão ecológica? Estou perfeitamente convencido que, nesta perspectiva ecológica, o conjunto das organizações seria visto como um ecossistema no qual o ambiente exerce uma influência poderosa. Aqui, ao invés dos curandeiros, poderíamos chamar os biólogos para nos explicarem que num ecossistema existem espécies que se adaptam ao ambiente em que vivem e conseguem evoluir, enquanto outras não possuem essa capacidade de adaptação e se extinguem através de um processo de selecção natural.
Também no mundo empresarial, a volatilidade ambiental em que as organizações operam provoca uma selecção natural. É este contexto que determina o surgimento daquilo que designaríamos por taxa de mortalidade empresarial. Num ambiente desta natureza, as empresas que sobrevivem, mesmo com dificuldade, acabam por limitar a margem de escolha das suas estratégias. Procuram assim minimizar as consequências da intempérie, procurando adaptar-se às circunstâncias do mercado.
Moçambique está actualmente a passar por um desses processos. A selecção começou a evidenciar-se nos meados da década de 80, quando as empresas começam a operar num contexto interno e internacional complexo e mais competitivo.
Os processos de selecção natural podem ser socialmente dolorosos, com consequências negativas em termos de emprego e riqueza. Acredita-se, por outro lado, que a selecção natural pode promover os ajustamentos no tecido empresarial necessários para sustentar o crescimento da riqueza de forma duradoura no longo prazo. Neste caso, as organizações que encerram libertam recursos para as que resistem e para outras actividades que encontram assim melhores condições para florescer. As espécies mais capazes adaptam-se, algumas transformam-se, as que não se extinguem tornam-se mais robustas, e surgem novas espécies. Ou seja, a selecção natural pode criar condições mais favoráveis ao desempenho e prosperidade. Este desiderato, no caso moçambicano, tarda a visualizar-se.
Quer-me parecer que a ausência de empresas moçambicanas de elevada dimensão constituiu-se num forte obstáculo para a delineação de estratégias individuais direccionadas para reduzir a sua vulnerabilidade. Quatro problemas estruturais podem, entretanto, ser identificados:
(i) As empresas moçambicanas do têxtil, vestuário, calcado e pequena industria transformadora concentraram-se sempre em actividades de menor valor acrescentado, na cadeia de valor em que se inseriam. Em particular, concentraram-se sempre na produção de matérias-primas e produtos intermédios, tendo uma nula presença na concepção do produto, distribuição e comercialização internacionais;
(ii) A sua fonte tradicional de vantagem competitiva tem sido o baixo custo de mão-de-obra, vantagem que ficou ofuscada com a crescente tendência de conceder subsídios a indústrias similares de menor vantagem comparativa nos países industrializados;
(iii) Os sectores sempre apresentaram uma forte debilidade nos seus factores de competitividade, principalmente devido aos fracos níveis de qualificação dos recursos humanos, fracos níveis de profissionalização da gestão e ausência quase total de investimentos em investigação e desenvolvimento;
(iv) Inexistência de uma base tecnológica de suporte, bem como de um enquadramento politico-legal eficaz;
(v) Uma estrutura das indústrias bastante fragmentada, não existindo, alem disso, grandes protagonistas que pudessem e possam dinamizar e dar coerência à actuação das empresas dos sectores mencionados.
Estes problemas têm uma tradução muito concreta: a reduzida produtividade da indústria moçambicana de transformação, do têxtil, vestuário e calcado. Isto consubstancia-se na sua fraca capacidade para transformar os recursos utilizados em riqueza e na sua incapacidade para competir com produtos mais baratos e, geralmente, de melhor qualidade que, com a liberalização da economia moçambicana começaram a ter acesso ao nosso mercado. Os próximos dois artigos analisarão com mais detalhe todos estes factores.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - A ave de Rapina Não Canta (4)
Se não canta não a vemos nem a ouvimos a chegar. Só nos damos conta de que ela apareceu quando um pintainho, uma galinha ou mesmo um coelho (dependendo do porte da ave de rapina) já nos foi roubado. Quem como eu nasceu e viveu algum tempo no campo conhece a frustração que esta ocorrência traz. Como nos podemos defender de um inimigo tão silencioso e tão ardiloso?
Como aves de rapina que não cantam, assim foram alguns factos que ocorreram no final dos anos 70, que vieram a ter um profundo impacto na maneira como as grandes ideias sobre a economia e o desenvolvimento económico vinham sendo discutidas e implementadas. Foi na forma de uma ave de rapina que não canta que ocorreu a mudança na balança de poder no Reino Unido e nos Estados Unidos com a chegada de Margaret Thatcher e Ronald Reagan ao poder. Como é que assuntos tão longínquos vieram a afectar um país periférico como Moçambique? Muito simples; as alterações a que me refiro vieram a reflectir-se na reversão brutal das políticas económicas seguidas e, em consequência, a adopção de políticas neo-liberais e neoclássicas, que passaram a enfatizar a liberalização económica e as privatizações. Esta brutal reversão veio a ser prontamente seguida por todos os países ocidentais e não só. Estes podem ser referidos como sendo os antecedentes internacionais próximos do processo das reformas económicas que o nosso país encetou a parir de meados dos anos 80.
Tenho para mim que, como todas as grandes alterações, a mudança de paradigmas económicos ocorreu na sequência dos desenvolvimentos que se vinham registando no pensamento económico. Com efeito, o fim dos anos 60 e os 70 testemunharam a emergência de duas tendências opostas nas teorias de desenvolvimento. Uma tendência incluía explicitamente as considerações sociais nas estratégias de desenvolvimento e a outra baseava-se na readopção do pensamento económico neoclássico. Na verdade, foi durante este período em que estes últimos pensadores lançaram, como verdadeiras aves de rapina que não cantam, os fundamentos duma nova escola de pensamento que viria a influenciar as teorias de desenvolvimento pelo mundo fora, a partir dos anos 80. Por exemplo, foi durante este período que a crítica à abordagem de desenvolvimento baseado na substituição das importações ganhou mais precisão. Este género de crítica, complementada por estudos em outros campos da economia reforçou o quadro teórico do modelo da economia competitiva à escala global. Foi ainda neste período que o papel do Estado começou a ser questionado e se estabeleceram os fundamentos teóricos e ideológicos para a sua redução a uma escala quase insignificante.
É assim que, em todo o mundo, por influência desta escola de pensamento, o Estado começa a retirar-se mesmo em áreas que se tinha acreditado como sendo de sua alçada única, como por exemplo, as telecomunicações, o abastecimento de água, o transporte público urbano, a disponibilização de electricidade, os caminhos-de-ferro e outras. As privatizações e a abertura irrestrita dos mercados foram apresentadas como o único caminho susceptível de garantir o crescimento da economia a uma escala global.
Neste novo paradigma, o crescimento económico ganhava maior relevância em relação à distribuição dos rendimentos e outros objectivos sociais. O pressuposto básico era o de que reformas económicas concebidas para alcançar eficiência e crescimento acabariam, também, por promover melhorias no nível de vida, principalmente das camadas mais desfavorecidas. Acreditava-se ainda que os custos sociais dos processos de reestruturação das economias, embora indesejáveis, deveriam, contudo, ser vistos como um fenómeno temporário.
Como referi anteriormente, esta nova ortodoxia não se transformou apenas em estratégia económica para o ocidente. Com a sua adopção pelas instituições do Bretton Woods, ela se converteu numa doutrina económica para todo o globo, não importa se adoptada voluntariamente ou não. Embora se tenha verificado um esforço de vários pensadores no sentido de resistir criticamente a esta nova formulação das teorias de desenvolvimento, esta resistência teve um efeito bastante modesto quer na prática política, quer no plano da ideologia. Por exemplo, no início dos anos 80, vários economistas britânicos manifestaram a sua rejeição frontal às ideias que vieram a ser conhecidas como “Thatcherismo”. Seja como for, as ideias alternativas que pudessem propiciar o desenvolvimento dos nossos países não foram articuladas de maneira o bastante vigoroso como para que pudessem vingar. Funcionaram como o barulho que fazemos depois de a ave de rapina que não canta ter surripiado o nosso pintainho mais gordinho. Não costuma ser com base nisso que o bicho larga a presa. A mudança começa somente a acontecer nos anos 90, principalmente a nível teórico, quando a série de relatórios de desenvolvimento humano começaram a ser publicados por Mabub Ul Haq e a sua equipa, enquadrados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Foi neste ambiente internacional que, nos finais da década de 80, o nosso país deu os primeiros passos para abrir o mercado que havia permanecido encerrado por longas décadas, tanto durante o período colonial, como no período da economia centralizada. Este processo de liberalização económica não foi precedido por qualquer exercício de capacitação das empresas moçambicanas, quer do ponto de vista tecnológico, quer do ponto de vista de gestão. Ademais, grande parte destas empresas viviam, já desde os primórdios da década 80, uma situação económico-financeira difícil o que, naturalmente, as fragilizava ainda mais, principalmente quando tiveram que passar a operar num ambiente económico de concorrência externa.
Note-se que, em contrapartida, os concorrentes externos das nossas MABORs, UFAs, VIDREIRAs, TEXLOMs e outros não enfrentavam as mesmas fragilidades. Elas apresentaram-se no cenário económico moçambicano bastante bem apetrechadas quer do ponto de vista tecnológico, quer do ponto de vista de gestão e, finalmente, também do ponto de vista financeiro. Competir com sucesso nestas condições seria puro milagre.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Causas Estruturais das Falências - a - (6)
Algumas das questões referidas no artigo anterior são, na verdade, de importância transcendental na competitividade das empresas moçambicanas. Foi realçado o facto de o processo de liberalização económica não ter sido precedida por qualquer exercício de capacitação das empresas moçambicanas, quer do ponto de vista tecnológico, quer do ponto de vista de gestão. Esta realidade originou um conjunto de ineficiências empresariais que se constituíram em poderosas barreiras que, em última instância, determinaram a falta de capacidade competitiva e o consequente encerramento de inúmeras unidades industriais de referência.
Note-se que no período anterior à proclamação da independência nacional, os moçambicanos foram impedidos de participar em qualquer processo de acumulação de capital, quer material, quer humano, este último na forma de conhecimentos e capacidades próprias para gerir com sucesso um empreendimento económico. A independência nacional é o marco a partir do qual os moçambicanos começam a participar na gestão da economia do país, incluindo gestão empresarial. Nos primeiros anos, a experiência de gestão empresarial dos moçambicanos confinou-se a unidades económicas estatais ou intervencionadas. O advento da economia de mercado veio encontrar os empresários moçambicanos numa situação de grande fragilidade, sem possibilidade de competir com vantagem relativamente a empresários de outras latitudes. No geral estes últimos, para além da experiência e habilidade para administrar negócios, têm acesso facilitado a tecnologias e aos capitais o que os coloca numa situação favorável no processo de concorrência.
É óbvio que este factor alinha entre as principais causas que levaram ao encerramento do parque industrial do país. É necessário no entanto referir que outros factores mais complexos terão que ser chamados à colação quando se quiser perceber, em toda a sua plenitude, o porquê da “dumbanenguização” do país.
O fim do sistema de dominação colonial a partir dos anos 50 dera origem a um optimismo generalizado quanto à possibilidade de que os nossos países superassem rapidamente o atraso, sobretudo da indústria. De facto, até finais dos anos 70 era patente um crescimento consequente do Produto Interno Bruto dos países de África, Ásia e América Latina e, ao mesmo tempo, era visível uma rápida alteração da estrutura das suas economias, com um incremento apreciável do peso específico da contribuição da indústria transformadora.
Acreditava-se que os recursos necessários ao arranque proviriam das exportações crescentes e mais caras, de matérias-primas de origem mineral e agrícola, para os países desenvolvidos. O aumento do preço do petróleo e de alguns outros produtos primários nos princípios dos anos 70, à primeira vista, pareceu dar razão a estas esperanças optimistas. A realidade porém revelou-se muitíssimo mais complexa, agravada pela remodelação da estrutura e, mesmo, dos conceitos de gestão económica global dos países desenvolvidos. Com o desenvolvimento técnico-científico inerente a estes países, foi possível encetar-se um processo de uso mais racional dos recursos energéticos e materiais por unidade de produto. Consequentemente, as exportações de matérias-primas dos países emergentes baixaram drasticamente. Com o incremento da investigação agrícola reduziram também as necessidades de os países ocidentais importarem produtos agrícolas; surgiram contrariamente, amplas possibilidades de eles exportarem, socorrendo-se da maior eficiência e economicidade das suas herdades.
Adicionalmente, a robotização e informatização permitiram conservar nos países desenvolvidos as produções que anteriormente, devido a questões de vantagem comparativa, eram localizadas nos nossos países. Medidas proteccionistas foram também mobilizadas pelos países industrializados, no intuito de limitar o poder competitivo das economias de mão-de-obra intensiva do terceiro mundo. Por exemplo, a assistência que os países desenvolvidos têm dado às suas agriculturas, na forma de subsídios, alcança vários biliões de dólares.
É sabido que as tarifas têm sido, historicamente, a mais importante via de impor barreiras comerciais que os países utilizaram ao longo dos tempos. Porém, à medida que, por via de negociações bilaterais ou multilaterais, as tarifas se vão reduzindo, a importância das barreiras não tarifárias tem crescido substancialmente. Os subsídios à exportação integram este último conjunto de barreiras. Os financiamentos com taxas de juro bonificadas que alguns países exportadores dão aos compradores externos para financiarem as compras de seus produtos são um exemplo desses subsídios, os quais podem ser medidos pela diferença entre o juro que as nações importadoras haveriam de ter pago num crédito comercial e aquilo que efectivamente pagaram numa taxa bonificada. Noutros casos, os países industrializados estimulam suas exportações através de isenções ou reduções nos impostos devidos por rendimentos provenientes das exportações.
O impacto destes subsídios na perda de competitividade da nossa indústria e seu consequente encerramento e subsequente desemprego de vários moçambicanos foi na realidade brutal. É todo este conjunto de factores que ajuda a explicar a ocorrência do persistente encerramento de indústrias que, durante muitas décadas, representaram a nossa tentativa de entrar na modernidade.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Causas Estruturais das Falências - b - (7)
Os elevados níveis de produtividade e de eficiência que uma grande empresa como a MOZAL apresenta estão a ser atingidos com a utilização em larga escala de trabalhadores moçambicanos. Uma das grandes surpresas dos gestores da MOZAL deve ter sido a prontidão com que os moçambicanos se apossaram das complexas tecnologias que caracterizam aquela indústria. Este facto poderia ser usado para demonstrar que a ausência de desenvolvimento dos nossos países, de que os generalizados encerramentos de empresas são um sintoma incontornável, não resulta de uma inaptidão congénita dos Africanos. A capacidade produtiva dos nossos povos é tão boa como a de qualquer outra nação.
Que factores, então, explicariam a aparente recusa de África em se desenvolver? Que factores explicam a generalizada “dumbanenguização” das nossas economias e o consequente colapso da economia formal? Será que a emergência de um ambiente empresarial sadio, no qual as instituições nacionais (financeiras, judiciais, políticas e outras) funcionam adequadamente é culturalmente determinada por cada região, ou depende da cultura de uma única região, nomeadamente o Ocidente? A cultura será referida neste texto no seu sentido mais lato, como uma forma de vida e de viver juntos. Isto inclui os valores que as pessoas seguem, a tolerância para com a diferença (raça, género, estrangeiro), a orientação e inclinação das pessoas (para dentro ou para fora?)
Um dos vários paradoxos que têm acompanhado a internacionalização e a globalização é o facto de as peculiaridades locais estarem a ganhar uma relevância nunca testemunhada antes. A globalização parece estar a estimular a “localização”. As pessoas parecem estar a se voltar para a cultura como uma forma de auto-identificação e de mobilização. Assim, o pluralismo cultural começa a ser visto como uma resposta forçada a processos de globalização assimétricos. É necessário, contudo, estabelecer um balanceamento adequado entre o universalismo e o “localismo” e evitar a adopção de um extremo ou do outro.
Políticas de desenvolvimento mais diversificadas e ligadas às culturas, instituições e hábitos locais parecem encontrar justificação no seguinte: (i) a cultura ocidental tem dominado as teorias de desenvolvimento; (ii) esta influência teve uma tendência crescente nos últimos vinte anos; (iii) existem modelos de desenvolvimento alternativos baseados na diversidade cultural e nos antecedentes históricos e institucionais (iv) essas alternativas poderão se multiplicar nesta era de globalização que, paradoxalmente, poderá gerar mais diversidade do que uniformidade.
Muitos dos economistas neoclássicos têm a tendência de aplicar os seus modelos “universais” unilateralmente para todos os países, negligenciando os antecedentes históricos, culturais e institucionais dos diferentes países. Os que se opõem a esta abordagem sugerem, em contrapartida, que o conceito chave não deveria ser universalidade mas sim diversidade e interacção. Por exemplo, muitos economistas têm argumentado que a desregulamentação deveria ser implementada tão intensivamente quanto possível, simultaneamente e rapidamente em todas as frentes. No entanto, esta abordagem assume implicitamente que as instituições já existentes na Europa e na América do Norte estão implantadas em todo o mundo. Ou que, pelo menos, elas podem ser estabelecidas rapidamente por iluminados reformadores com a ajuda de consultores e de organizações internacionais. A recusa de considerar a validade das diferenças culturais e dos processos evolucionários da história conduz necessariamente à confusão e ao colapso da ordem existente ao invés da desejada reforma. A persistência da fome, 14 anos depois do fim da guerra de desestabilização, o desemprego generalizado e a marginalização de milhões de camponeses moçambicanos, em termos da sua inserção no mercado, podem ter a sua explicação nesta política de desenvolvimento de tábua rasa. O encerramento persistente de empresas, que vem ocorrendo desde a abertura económica do país, mais do que à incompetência e roubos dos gestores, pode ter a sua explicação nesta visão de desenvolvimento.
Como garantir a sobrevivência das empresas se as necessárias infra-estruturas institucionais, em termos por exemplo de um sistema bancário e financeiro, um sistema judicial e um quadro político/administrativo não existem? Como políticas macroeconómicas adequadas podem ser implementadas se o sistema empresarial que existia foi levado ao colapso e medidas não foram tomadas para a sua substituição por um outro sistema mais competitivo? A este respeito, talvez sejam de reter as palavras do Antigo Presidente da República, Joaquim Chissano, quando numa ocasião defendia que o que Moçambique precisa não era de uma reforma do seu sector de justiça. O Presidente Chissano defendia a urgência da construção de um sistema de justiça. Ou seja, contrariamente ao que os doadores acreditavam (e pressionavam) não existia no nosso país um sistema de justiça a ser reformado. Havia, isso sim, que investir na sua construção. Isto parece valido para todas as instituições em Moçambique. Mais do que reformadas carecem, em minha opinião, de serem construídas e reforçadas.
Isto significa que forçar um modelo uniforme para diversos países e situações culturais, prejudica o futuro económico desses países bem como o futuro do mundo como um todo. Provavelmente, mais do que procurar bodes expiatórios, o que os nossos países devem fazer é identificar que políticas de desenvolvimento estão mais adequadas de acordo com a sua história, de acordo com a sua cultura e de acordo com o desenvolvimento das suas instituições nacionais.
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - A História da Pequena Borboleta (Conclusão)
Há uma história que me lembra outra contada na minha infância em Madzucane e que me parece apropriada para fechar esta série. Voltei a encontra-la num site electrónico que frequento (Mozambiqueonline). É a história da pequena borboleta. A história ensina que, num belo dia, um homem bondoso viu uma pequena abertura que começava a se evidenciar num casulo. O nosso homem, que não devia ter muita coisa para fazer, sentou-se a observar como, durante horas, uma borboleta se esforçava por passar pelo pequeno buraco do casulo. No início parecia que estava a correr tudo bem. Devia ser, no entanto, o entusiasmo de todos os movimentos pioneiros, de todas as ideias novas e, no caso da borboleta, o entusiasmo que emanava do chamado para a nova vida que se enunciava. Só que, a partir de determinada altura, a pequena borboleta pareceu ter cessado de empreender qualquer esforço. Estava aparentemente exausta e sem força para continuar a lutar pela vida. O nosso homem, que como eu disse, era bondoso, decidiu ajudar a borboleta: ele pegou num canivete e aumentou o buraco do casulo. A borboleta, então, saiu facilmente. Só que o seu corpo parecia enfezado, estava murcho e as asas careciam de qualquer vigor.
O homem continuou a observar a borboleta, esperando que, a qualquer momento, ela conseguisse abrir e esticar as suas asas, de modo a serem capazes de suportar o corpo e voar como todas as borboletas dignas desse nome. Nada aconteceu! Na verdade, a borboleta passou o resto da sua vida rastejando com um corpo murcho e asas encolhidas. Ela nunca foi capaz de voar. O que o nosso homem nunca foi capaz de entender foi que o casulo apertado e o esforço necessário à borboleta para passar através da pequena abertura constituíam um passo necessário para que os fluidos do seu corpo passassem para as asas. Na verdade, uma vez fora do casulo com esforço próprio, a borboleta estaria apta a voar.
A ideia que estes parágrafos pretendem transmitir é que cada corpo, natural ou social, há-de, necessariamente, passar por algumas etapas. Pode ser falta de perspectiva histórica almejar que os nossos países tenham, hoje, as empresas sólidas que caracterizam a Europa ou os Estados Unidos, ou que tenham as instituições sólidas que aqueles países tiveram a paciência, repito, a paciência de construir ao longo de vários séculos. Há uma ideia que o penúltimo texto desta série sublinha e é a de que não se podem transpor as instituições e a moral da Europa ou da América do Norte para os nossos países como se de fatos a pronto vestir se tratassem. O que se pretende dizer é que a eficiência e a eficácia institucional que existe nos países ocidentais não há-de ser estabelecida rapidamente nos nossos países por iluminados reformadores com a ajuda de consultores e de organizações internacionais. Terá que resultar dum esforço próprio de crescimento com respeito pelas idiossincrasias locais. De outro modo seremos como a pequena borboleta.
Escrever para os jornais é uma experiência única (e Elísio Macamo é o principal culpado desta minha aventura...). E não há satisfação maior como aquela que ocorre quando, na rua ou na “barraca”, alguém nos interpela para nos informar que tem lido os nossos artigos. Eu nunca supusera que houvesse tanta gente interessada no tipo de abordagens que faço. Na primeira série de artigos tentei problematizar o entendimento prevalecente sobre a corrupção. Nesta última série, pretendi analisar o fenómeno do encerramento das empresas que ocorreram, principalmente após a introdução do PRE.
Há sempre um enorme risco de se ser mal entendido ao problematizar ideias que foram elevadas à categoria de voz do povo. E já vimos que a voz do povo é a voz de Deus. Amigos a quem pedi para lerem estes artigos antes da sua publicação alertaram-me para uma maneira provável de ser mal-entendido. Essa maneira é simples e, no nosso meio intelectual, costuma ser usada para fechar circularmente o próprio debate. É só dizer, com base numa leitura miópica, que o articulista defende a corrupção e desculpabiliza as pessoas que, irresponsavelmente, afundaram as nossas empresas. É muito comum o uso da expressão "defensor da corrupção" para rotular um adversário, de maneira que a discussão deixa o campo das idéias, passando para o ataque contra uma figura estereotipada (um "espantalho", ou "straw man"): por outras palavras, inventa-se uma posição política que é fácil de criticar, e então atribui-se esta posição ao adversário. Algumas vezes esta é uma estratégia consciente e deliberada, mas, muitas pessoas aceitam esta linha de raciocínio simplista como se fosse verdadeira. Algumas pessoas vão ver nestes artigos uma apologia dos nossos próprios males. Se os outros também são corruptos, se as empresas faliram devido a problemas estruturais e se era impossível resistir aos ventos do neo-liberalismo, porque havemos de nos preocupar? Apenas poderia lamentar se os meus artigos fossem entendidos desta maneira.
A ideia de base que esteve por detrás deste exercício era mostrar que uma empresa está inserida numa envolvente institucional, socio-económica, cultural e internacional específicas. Daí o ter pedido emprestado a outras ciências a noção de “perspectiva ecológica”, em que o conjunto das organizações seria visto como um ecossistema no qual o ambiente exerce uma influência poderosa. Esta perspectiva pode ser útil na preparação das empresas moçambicanas para os desafios que a União Aduaneira no âmbito da SADC encerra. A tónica que tem sido adoptada na análise dos encerramentos de empresas que ocorreram a partir dos meados da década de 80 é aquela que se baseia no exame do perfil dos gestores da época, os quais, muitas das vezes, são rotulados de incompetentes e desonestos. Estes artigos tentaram trazer para esta complexa equação outros factores que poderão estar na origem dum fenómeno arrasador que lançou para o desemprego e para a pobreza milhares de moçambicanos.
Basicamente, o fio condutor que enforma estes artigos pode ser enunciado como segue: A abertura económica do nosso país representou um desafio inultrapassável para empresas que haviam surgido num contexto fortemente proteccionista como era a sociedade colonial dos princípios da década de 60. O modelo socialista adoptado nos primórdios da nossa independência não só não corrigiu o velho paradigma proteccionista, como parece tê-lo exacerbado, tendo em conta alguns dos slogans que vigoravam na altura (Contar com as próprias forças). Como se processará, então, a marcha para a anunciada União Aduaneira se não começarmos a ver a empresa em toda a sua complexidade?
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