Eliso Macamo
Quando morreu Samora Machel fui convidado a dar uma palestra sobre o assunto na universidade inglesa onde me encontrava a estudar. A notícia tinha-me chocado bastante. Lembro-me que estava a trabalhar como intérprete numa conferência quando o meu colega guineense veio me dar a notícia. Não pude continuar a trabalhar nesse dia. O título que dei à palestra, depois de muita reflexão sobre o significado do acontecimento, foi o mesmo que dou a este post: Há males que vêm por bem. Na altura estava a escrever a minha tese na qual discutia a construcção duma nação na base dum sistema monopartidário. Já tinha chegado à conclusão de que esse era um beco sem saída e constituía uma leitura bastante problemática do nacionalismo na base do qual se fizera a luta. Não via Machel como a pessoa que poderia reformar esse sistema, nem o via como o homem capaz de transpor o seu ego e pôr termo à guerra da Renamo através dum processo genuino de reformas políticas.
Os anos subsequentes com Chissano mostraram, creio, a plausibilidade dessa leitura, pois sem aquele fardo de grande marechal, visionário e líder carismático Chissano empreendeu as reformas internas necessárias para que a Renamo não tivesse mais razões para continuar a martirizar as pessoas. E não só. As reformas de Chissano deram uma deixa à Renamo para se refazer como movimento que luta pela democracia. É preciso dizer isto porque há alguns equívocos que andam por aí. Estrictamente falando, a Renamo não trouxe a democracia a Moçambique tanto mais que quando Chissano se abriu ao multi-partidarismo e mudou a constituição, a Renamo se opôs com veemência. A violência da Renamo combinada com as calamidades naturais e a abertura ao Ocidente por via do Programa de Reajustamento Estrutural, entre outros factores, tornaram o modelo mono-partidário inviável. O grande golpe negocial dos mediadores foi convencer a Renamo que ela estava a lutar pela democracia, algo que a Heritage Foundation e a Entreprise Foundation dos EUA haviam já iniciado nos finais da década de oitenta como parte das suas campanhas anti-comunistas pelo mundo. Data dessa altura o discurso pró-democracia da Renamo. Lembro-me duma conversa interessante com um alto funcionário bávaro reformado (que trabalhou com Franz Josef Strauss, na altura primeiro ministro da Baviera) que me contou ter recebido uma vez uma delegação de alto nível da Renamo e ter ficado atónito quando ao perguntar a um membro da delegação que era militar (ele não me disse o nome da pessoa, só disse se tratar dum alto chefe militar) porque lutava ele ter respondido que essas coisas de política não lhe interessavam, o seu trabalho era apenas fazer bang-bang...
O processo negocial de Roma deu maior ímpeto ainda à Renamo para abraçar a democracia como credo. Em 1987, quando a extrema-direita americana procurava obrigar o governo americano a se aproximar à Renamo, e para o efeito, bloqueou a nomeação de Melissa Wells como embaixadora em Moçambique, Chester Crocker, na altura sub-secretário para os Assuntos Africanos, justificou a posição do seu governo dizendo que a Renamo não tinha identidade política credível (os jovens que hoje falam destas coisas sem nenhuma leitura, nem reflexão precisam de se perguntar porque um movimento que lutava pela democracia não recebeu apoio de Reagan e de Thatcher apesar da sua cruzada anti-comunista; precisam de se perguntar porque estes dois países preferiam apoiar o governo marxista de Moçambique, o último até militarmente; propaganda da Frelimo como dizem os apologistas da Renamo?). Crocker respondia a uma pergunta de Jesse Helms, na altura o maior apoiante da Renamo no Congresso americano, que se viu obrigado a levantar o bloqueio quando confrontado com o massacre de Homoíne (que alguns compatriotas querem branquear; num relatório de 1991 da África Watch é entrevistada uma tal Amira Sulemane Issuf que viveu o massacre de perto, foi levada juntamente com outros membros da população para a base de Nhamunge comandada por um tal Comandante Trovoada tendo, no percurso, passado pelas bases de Machavela e Mbenyane; é preciso um alto trabalho de lavagem cerebral para vítimas inventarem coisas desta maneira...). Recorde-se que os EUA tinham interdição de vistos para a Renamo e mesmo depois desta ser levantada o governo americano manteve a interdição para Dhlakama como forma de o forçar a negociar a paz em Roma.
Os principais impulsos para a democratização foram dados por Chissano. A constituição de 1990 permitiu o regresso de alguns exilados (como Máximo Dias), a emancipação de organizações bem como a liberdade de expressão. Na única contribuição significativa que a Renamo fez com a ajuda dos americanos (encorajados por Chissano a ajudarem a Renamo nesse sentido) foi um projecto de constituição cuja única inovação era a exigência de re-introdução da pena capital. Uma boa parte do resto das negociações foi em torno de garantias de segurança, sobretudo porque a Renamo não achava que tivesse apoio significativo em Moçambique e receava uma vitória da Frelimo que a pusesse em situação vulnerável. Ela própria estava ciente do mal que tinha feito. É verdade que em alguns casos ela puniu prevaricadores. O líder interino, por exemplo, em 1988 foi acusado de alcoolismo, roubo (roubou bens de pessoas que vinham da África do Sul e do Zimbabwe) e tribalismo, razão pela qual ele foi transferido para outras funções, mas aqueles que cometeram chacinas não foram punidos pelo simples facto de que isso fazia parte da estratégia militar. Quando leio coisas de pessoas que dizem que esses excessos fazem parte de qualquer guerra fico arrepiado com tanta ignorância consciente. A Renamo começou a prestar atenção a essas coisas precisamente porque estava a deixar mal aqueles que a queriam apoiar, notavelmente nos EUA.
Com a morte do seu líder, grande democrata que nunca conseguiu democratizar o seu próprio partido e, por isso, sofreu ao longo do tempo uma enorme sangria de quadros a começar pelo homem que negociou a paz com Guebuza em Roma, a Renamo tem hoje uma grande oportunidade de ser aquilo que pensa ser, mas nunca foi. Para que isso aconteça, ela precisa de definir essa democracia que diz defender. É interessante notar que até hoje nunca houve uma proposta clara de democracia que não vá para além do ajustar das instituições para acomodar os seus interesses muitas vezes contra os partidos pequenos. A concepção que se tem é demasiado básica assim como é básica a própria crítica que a Renamo sempre fez à Frelimo: comunismo, guias de marcha, aldeias comunais. Relatos de pessoas que fugiram do cativeiro da Renamo durante a guerra reduzem a sua luta à participação nos benefícios da independência. Nós também queremos comer!
Nunca houve, nem no período subsequente aos Acordos de Paz, nenhuma exposição da ideia que a Renamo tem de pessoa humana, seu lugar na sociedade, sua relação com o Estado, o valor da liberdade, etc. A sua ideia de democracia é feita de slógans que até hoje são referidos. Quando alguém tenta explicar a luta pela democracia e o mérito do líder nisso o único que é dito é que acabou com as guias de marcha. Isso não é fortuito. Reflecte as origens da Renamo que são essencialmente de reacção aos excessos da Frelimo gloriosa. No fundo, a paternidade pela democracia atribuída à Renamo é idêntica à paternidade pelo socialismo que se daria a um sindicato que por força de greves e outras manifestações por melhores condições de trabalho de repente levasse o governo a mudar as suas leis laborais...
É claro que neste momento este tipo de análise não vai fazer muito sentido para aqueles que olham para o País sempre na perspectiva do momento presente. A fácil aceitação da paternidade pela democracia mostra até certo ponto quão todos nós ainda estamos distantes dela. Não somos exigentes e, por isso, tudo que alguém faz apelando para a democracia passa facilmente. Isso é reforçado pelos momentos de crise e também pela forma como os detentores do poder o gerem. Tanto quem defende o Governo, quanto quem defende a Renamo em nome da democracia não tem nenhum compromisso com ela, mas sim com o partido que defende. Não usa os princípios que a definem para se relacionar com o seu partido e até ganhar a possibilidade de lhe chamar atenção. Democracia é uma palavra oca que muitos vão repetindo por aí sem, contudo, se comprometerem com ela. Vem daí o à vontade com que multidões passam a ser o critério para determinar se uma causa é justa, esquecendo-se que multidões podem ser o reflexo de outras coisas como por exemplo insatisfação com o Governo, sentimentos regionais e étnicos, ignorância, entre outros factores. Espero viver tempo suficiente para ver a cara daqueles que dizem que a Renamo lutou pela democracia quando ela estiver no poder. Caras sem vergonha que são vão, provavelmente, reagir como reagiram à violação da constituição pelo recurso às armas como forma de mudar o sistema político. Vão dizer que os fins justificam os meios.
Gostaria de pensar que a morte do “pai da democracia” dá à democracia a chance que ela nunca teve. Ficamos menos vulneráveis aos humores dum homem que não hesitava em sacrificar vidas humanas e agia ao sabor do problema em mãos sem grande reflexão sobre as suas implicações. Mantenho a analogia que uma vez fiz com Pablo Escobar, um homem que se tornou grande por conta do acaso.
1 comentário:
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