sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O dia em que o professor perdeu a turma

 Elisio Macamo

O dia em que o professor perdeu a turma
Pensar sempre teve um preço. O preço da dúvida e da solidão. Mas pensar em voz alta, isto é, trazer a reflexão para o espaço público, tem hoje um custo adicional que é o da incompreensão. Falar com rigor tornou-se arriscado, e pensar com independência é quase uma provocação. Durante muito tempo acreditámos que a democratização da palavra nos tornaria mais esclarecidos. Parecia evidente que quanto mais gente pudesse falar, mais ideias circulariam, mais argumentos se confrontariam e mais madura se tornaria a sociedade. Mas o contrário parece estar a acontecer. O que se expandiu não foi o pensamento, mas sim o barulho. A liberdade de expressão tornou-se um campo de eco onde todos falam e quase ninguém presta atenção.
A esfera pública deixou de ser um lugar de discernimento e converteu-se num palco de emoções. As pessoas já não querem compreender, querem tomar partido. O debate perdeu a sua natureza deliberativa e transformou-se em espetáculo, portanto, num território onde se disputa aplauso. A verdade ficou para trás. As ideias já não são examinadas. A gente distorce-as. O público deixou de ser uma comunidade de pensamento e passou a ser plateia. Essa transformação explica por que razão pensar em público se tornou tão incómodo. A crítica, que deveria ser um instrumento de aperfeiçoamento, é recebida como um ataque. A dúvida, que é a alma da razão, é confundida com deslealdade. O intelectual, que antes se definia pela paciência da explicação, é tratado como inimigo da emoção colectiva. É o academicú.
É assim que o pensamento, no passado sinal de compromisso com a sociedade, se transforma num acto de resistência. O preço de pensar em voz alta é, antes de mais, o de enfrentar a ilusão da equivalência intelectual, isto é, a ideia de que todas as opiniões valem o mesmo, independentemente do método ou da experiência que as sustenta. Esse nivelamento soa democrático, mas destrói o próprio princípio da razão pública. Falar é um direito, mas compreender é um dever. Uma sociedade que não distingue entre opinião e argumento abdica da inteligência que a poderia proteger.
Há, contudo, uma segunda parte desse preço que é a transformação do debate em espectáculo. As discussões já não são avaliadas pela força das ideias, mas pelo impacto emocional que produzem. O público assiste a cada troca de argumentos como quem acompanha uma novela com heróis, vilões, vencedores e vencidos. Mesmo as divergências sérias acabam reduzidas a episódios de entretenimento, com aplausos, sarcasmos e “temporadas” anunciadas. O resultado é um empobrecimento trágico da nossa vida intelectual porque a clareza dá lugar à vaidade.
Não é difícil perceber por que isso acontece. As instituições de discernimento, universidades, jornais, associações cívicas, parecem ter perdido parte da sua autoridade moral e da sua função mediadora. Nos seus lugares cresceram as redes sociais, os fóruns de opinião instantânea e a cultura do comentário. Ali, a visibilidade vale mais do que o rigor. A lógica do espectáculo recompensa a reacção rápida que, vezes sem conta, se consubstancia em sarcasmo e ataque pessoal. A consequência é previsível, pois o pensamento sério é tratado como arrogância, e a superficialidade, como autenticidade e até profundidade.
Quem insiste em pensar neste ambiente descobre cedo o paradoxo de que a sociedade exige lucidez, enquanto quem a pratica é punido pelo nivelamento por baixo. A sociedade quer explicações, ao mesmo tempo em que se contenta com slogans. O resultado é um tipo particular de solidão, não a do isolamento físico, mas a de quem vive rodeado de vozes e, ainda assim, fala sozinho. E, no entanto, é preciso insistir. Pensar em voz alta é recusar a domesticação do pensamento pela pressa e pela emoção. É reivindicar o direito de examinar, de discordar e até mesmo de formular perguntas que desagradam. É lembrar que o verdadeiro serviço público do intelectual não é dizer o que o público quer ouvir, mas ajudá-lo a compreender o que ainda não quer ver.
O preço é alto (incompreensão, caricatura, solidão), mas é o único que vale a pena pagar. Porque o que está em causa não é apenas a dignidade do pensamento, mas sim a própria possibilidade de termos uma sociedade que pense. Vou escrever alguns textos (ou lençóis) que reflectem sobre o destino do pensamento num tempo em que o confunde com opinião. O primeiro, o próximo, vai examinar a crise do discernimento e a erosão dos critérios de autoridade cognitiva. O segundo, vai descrever a transformação do raciocínio em performance e do público em plateia. O terceiro vai encerrar o ciclo com uma reflexão mais pessoal sobre o preço humano e moral de continuar a pensar quando a sociedade prefere reagir. A ideia é defender que o pensamento, mesmo quando incómodo, é ainda a forma mais alta de lealdade que se pode ter para com o próprio país.
Sabelo J. Ndlovu-Gatsheni
Very true, it's a struggle, we have to continue thinking, rethinking and unthinking thinking itself with all the risks notwithstanding!!
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O Velho Sócrates que o Diga….
Guilherme Mussane
" Academicú" é um neologismo hilariante, mas profundo neste contexto.
A "novelização" do debate é outro aspecto importante neste contexto.
Sei que o Elísio Macamo não vai desistir e muito menos se deixar perturbar por causa do que expõe e explica neste post.
Amélia Russo de Sá
Tens tanta, tanta razão, Elísio. Obrigada pela lucidez. E vale para tantos sítios deste mundo. Vivemos, sim, uma crise mundial da reflexão, do pensamento livre de pertenças a correntes que aprisionam...Não desistas . Do not give up. Obrigada
Maria João Teles Grilo
Partilho. Obrigada
Albino Forquilha
Quanta reflexão, quanta verdade, parabens

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