As negociações sobre a transferência de Macau duraram nove meses e, para Augusto Santos Silva, são “um marco na história diplomática de Portugal”. E ajudaram, 30 anos depois, a eleger António Guterres secretário-geral das Nações Unidas.
BÁRBARA REIS 13 de Abril de 2017, 7:09
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FotoDANIEL ROCHA
Tudo podia correr mal. Era essa a convicção do lado português quando, a 30 de Junho de 1986, começaram as negociações com a China para discutir a transferência de poderes de Macau.
Portugal perdera o “hábito de contactar as autoridades da China”, lembrou há dias João de Deus Ramos, um dos diplomatas que integraram a delegação portuguesa. E além disso as posições de ambos eram muito distantes, havia pouco tempo para negociar e o “posicionamento emocional era o oposto: a China ia ganhar um novo território e Portugal ia perdê-lo”.
Entre a chegada ao poder de Mao Tsetung na China (1949) e o 25 de Abril em Portugal (1974) as relações diplomáticas estiveram cortadas. E mesmo após o fim do Estado Novo, foram precisos cinco anos para Lisboa abrir a sua primeira embaixada em Pequim. Era tal o afastamento que, nos correios, ninguém sabia onde era Putaoya (Portugal em mandarim) e alguns telegramas diplomáticos foram para o lixo.
A primeira coisa a fazer era estudar. “Entre 1979 e 1985, quando o Presidente Ramalho Eanes visita a China, a nossa aprendizagem é muito lenta”, contou o diplomata numa conferência no Museu Oriente sobre a assinatura, faz hoje 30 anos, da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau, que estabeleceu os termos da transferência de soberania do território. É nessa visita que Pequim diz formalmente que quer iniciar as negociações. Em Portugal, onde a opinião pública é apanhada de surpresa, o Governo começa a preparar-se. O embaixador Rui Medina (1925-2012) é escolhido para chefiar a delegação, que inclui, além de João de Deus Ramos, Nuno Lorena, cônsul-geral em Hong Kong, José Henriques de Jesus (delegado do primeiro-ministro Cavaco Silva) e Carlos Gaspar (delegado do Presidente Mário Soares). Octávio Neto Valério, embaixador de Portugal em Pequim, era consultor, e António Vitorino, então secretário-adjunto do governador de Macau, estava no backoffice para o trabalho jurídico.
Os "velhos amigos" e outros truques
“É nessa altura que o Rui Medina traz livros, pareceres do arquivo do ministério e um opúsculo sobre as tácticas negociais chinesas”, conta João de Deus Ramos. O livro, Chinese Political Negotiating Behavior 1967-1984, é escrito por Richard Solomon, ex-funcionário do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, e foi publicado pelo think-tank RAND em 1985 para ajudar o Departamento de Estado. Classificado como secreto, foi parcialmente desclassificado dez anos depois na sequência de um processo judicial do Los Angeles Times no âmbito da Lei de Acesso à Informação. Solomon diz que as técnicas de negociação chinesas bebem da tradição ocidental e da cultura marxista-leninista, mas que as “qualidades mais distintivas são baseadas na cultura chinesa”. A mais singular é “o esforço para desenvolver e manipular relações interpessoais fortes com os negociadores estrangeiros – um padrão a que chamamos ‘jogos de guanxi’ ou jogos de relações”. Esta abordagem vem da tradição confuciana aplicada à política. “Os chineses desconfiam de negociações impessoais e legalistas. Por isso, identificam um interlocutor simpático e cultivam uma relação pessoal, uma espécie de amizade (you-yi), e a seguir tentam manipular sentimentos de boa vontade e obrigação, culpa ou dependência para conseguirem o que querem”, escreve Solomon.
Os chineses são “muito bons” a fazer duas coisas, sublinha: arrastar as negociações e resistir a expor a sua posição até saberem exactamente qual é a do adversário. Há outras características-padrão: tentam sempre que as negociações sejam em território chinês e “orquestram a hospitalidade meticulosamente”. E tácticas de pressão clássicas: tentam sempre pôr o interlocutor na defensiva e a sentir que não tem controlo sobre o processo. E “são peritos em colocar os estrangeiros numa posição em que parece que são eles [e não os chineses] que estão a pedir alguma coisa”. Além disso, depois da cartada do “amigo” apresentam-se como vítimas. “A principal característica das suas tácticas de pressão é fazer o negociador estrangeiro sentir que a sua relação de amizade com a China está em risco, que ele não fez o suficiente para ser considerado um ‘velho amigo’.” Um dos conselhos do opúsculo é este: “Resiste à lisonja de ser chamado ‘velho amigo’ ou ao sentimentalismo que a hospitalidade chinesa suscita.”
Eu sabia que podíamos confiar na palavra dos chineses. Eles dizem que quando uma palavra sai para fora, nem sete cavalos a conseguem travar.Henriques de Jesus
Para a China, resolver Macau era uma questão crucial. Nós sabíamos que eles estavam com a cabeça na guilhotina.Carlos Gaspar
“Todos lemos o opúsculo e quando as negociações começaram estava de facto lá tudo”, contou João de Deus Ramos na conferência organizada pela Fundação Oriente, o Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Mas nós caímos à mesma naquela conversa do ‘meu velho amigo’; ‘isto é apenas a minha opinião pessoal’; não se chega à conclusão de nada numa reunião, fica tudo para a próxima; quando queremos adiar, eles mostram pressa; quando queremos fechar, eles adiam. Os negociadores chineses são muito bons.”
Mas nestas negociações — que a 13 de Abril de 1987 acabaram por abrir um novo ciclo nas relações diplomáticas entre os dois Estados — havia duas coisas a favor de Portugal.
Uma era o valor político de Macau. “Como é óbvio, os chineses são o que são, e nós aqui pequeninos à beira-mar plantados. Mas em relação a Macau, a assimetria era diferente. Para a China, resolver Macau era uma questão crucial, de unidade do Estado. Nós sabíamos que eles estavam com a cabeça na guilhotina. Macau era mais importante para a China do que para Portugal”, disse Carlos Gaspar na conferência.
A pressa de Pequim
O outro factor era o tempo. Queriam tudo resolvido em dois ou três meses, pois tinham o XIII Congresso do Partido Comunista Chinês desse Outono como horizonte. Em 1984, a China tinha negociado com o Reino Unido a transferência de Hong Kong — que ficara marcada para 1997 — e queria “fechar” Macau o mais depressa possível. “Os chineses tinham pressa e tinham um calendário: Setembro de 1987. Nós dizíamos: ‘Mas qual é a pressa?’”, contou Gaspar.
Portugal viu nesta urgência uma vantagem negocial. Para Lisboa, a data era irrelevante. “Desde 1976 que tínhamos resolvido a questão, ao reconhecer que Macau era território chinês sob administração portuguesa. O que queríamos era garantir o melhor estatuto para a população local”, contou António Vitorino, ex-comissário europeu e ex-ministro da Defesa.
Na primeira ronda — em Pequim, claro — os chineses propuseram que a transferência fosse feita em simultâneo com Hong Kong. “Mas a única data que não aceitávamos era que fosse a de Hong Kong”, conta Gaspar. Era uma questão política e uma questão de honra. A data de Hong Kong não tinha nada a ver com Portugal, mas sim com os tratados entre Londres e Pequim. E as relações entre Portugal e a China eram autónomas, não um prolongamento do imperialismo britânico.
Foi a primeira surpresa dos chineses. Portugal recusou a proposta e argumentou que era “injusto” e “discriminatório” a transição de Macau ser mais pequena do que a de Hong Kong. E usou aquilo que Vitorino resume como “o argumento Calimero”: “Vocês dizem isso porque somos pequeninos. Não fariam isso se fossemos os ingleses.” Era um argumento que “não podia ser usado muitas vezes, mas que fazia mossa”. Os chineses não queriam dar a ideia de que tinham dois pesos e duas medidas para portugueses e para britânicos.
Henriques de Jesus junta-se à história: “Ouvir um ‘não’ é uma das piores coisas que podem acontecer a qualquer negociador. Devemos tentar entrar na cabeça do adversário e saber quando é que nos vai dizer ‘não’, tentar antecipar e nunca deixar que eles digam ‘não’. Fui ouvir os chineses e eles disseram que a transferência não podia passar do fim do século.”
Quando António Barreto escreveu um artigo a sugerir que a transferência de Macau fosse feita, simbolicamente, nos 500 anos da chegada de Jorge Álvares a Macau, o que fazia passar a linha encarnada de Pequim, “a China mandou imediatamente um ministro a Lisboa dizer que nem pensar”, contou Gaspar. “E as negociações foram interrompidas.”
FotoA 13 de Abril de 1987, Portugal e a China assinaram, na presença de Deng Xiaoping, a Declaração Conjunta
Neste início o ambiente era tenso e à noite, quando estavam no quarto de hotel, os negociadores portugueses punham o ar condicionado e as ventoinhas no máximo e falavam muito depressa, com medo de possíveis escutas. O objectivo era complicar a vida aos tradutores.
A convicção de João de Deus Ramos é que a China subestimou Portugal. No seu livro Em Torno da China – Memórias Diplomáticas (Caleidoscópio, 2016), o diplomata escreve que os chineses terão acreditado que iam ter “um processo sem divergências” com os portugueses. E mesmo em Portugal, diz Henriques de Jesus, houve quem defendesse que a delegação portuguesa fosse enviada a Pequim com “uma mera tradução mais correcta das primeiras propostas chinesas”. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Zhou Nan, que tinha chefiado as negociações sobre Hong Kong e chefiava agora as de Macau, “terá dado a entender aos seus superiores que, depois da Inglaterra, com Portugal ia ser um ‘processo sumário’”. À terceira ronda, “ainda as partes não tinham noção do que seria o bottom line de cada um”, escreve Ramos, Pequim propõe que a transferência seja feita em 1998. O ambiente desanuviou pouco depois, quando Lisboa aceitou o ano 2000 como limite. Acabou por ser Dezembro de 1999. Transferir Macau não era uma festa, mas uma tristeza, por razoável que fosse. Não sendo uma data festiva, não devia ser nem no Natal, nem no Ano Novo, explicou Henriques de Jesus. Ficou 20 de Dezembro.
Nem sete cavalos travam as palavras
Era tempo, finalmente, de tratar das questões de substância. A nacionalidade era a mais complexa. Já era claro que os enquadramentos jurídicos dos dois países eram incompatíveis e a China, ao contrário de Portugal, não aceitava a dupla nacionalidade. O que foi conseguido é o que “separa radicalmente os acordos sino-portugueses dos acordos sino-britânicos”, diz Gaspar, pois garante a um quinto da população chinesa de Macau o reconhecimento da nacionalidade portuguesa.
De todos, Henriques de Jesus foi sempre o mais optimista. “Há 30 anos, nenhum de nós conhecia o futuro da China, mas por causa da minha experiência em Macau, eu era o que tinha mais confiança. Sabia que podíamos confiar na palavra dos chineses. Eles dizem que quando uma palavra sai para fora, nem sete cavalos a conseguem travar.”
No total, foram nove meses frenéticos. Quatro rondas (40 horas à mesa das negociações) e 11 reuniões do grupo de trabalho (mais 440 horas).
O resultado de tudo isto? A Declaração Conjunta assinada a 30 de Abril de 1987 deu a Macau um sistema de direitos e liberdades de modelo ocidental, garantiu os direitos dos chineses interessados em manter uma ligação com Portugal, um sistema político consolidado, contribuiu para o crescimento do ensino da língua portuguesa na China e foi o princípio da construção de uma “relação especial e densa” entre Portugal e China e Portugal e Macau. A síntese é do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que, para novidade de alguns, acrescentou mais um resultado: o apoio da China à candidatura de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas.
“Foi claro entre os cinco membros permanentes do conselho de segurança da ONU que nos contávamos com o apoio empenhado e militante da França [a favor do candidato António Guterres] e que o segundo que mais nos apoiava era a China. Não quero desmerecer a Rússia, cuja posição era clara (“não apoio, mas não serei hostil”), nem do Reino Unido e dos EUA. Mas do P5, a China foi um dos dois que mais claro e explícito tornou o seu apoio a Guterres e mais cedo. Ouvíamos dos nossos interlocutores chineses dois argumentos: reconheciam Portugal como um país com uma voz activa e uma posição equilibrada, balanced foi a palavra que mais ouvimos. Mas os chineses tinham um argumento específico: ‘Nós conhecemos-vos há 500 anos e negociámos a Declaração Conjunta de Macau e vocês honraram todos os compromissos. Tudo o que disseram que iam fazer, fizeram. São um país em quem confiamos'.”
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FRANCISCA GORJÃO HENRIQUES 20 de Dezembro de 2004, 7:48
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FotoA 20 de Dezembro de 1999, Portugal entregou o território que esteve sob a sua administração durante 442 anos DR
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O Presidente chinês, Hu Jintao, chegou ontem a Macau para participar nas cerimónias do quinto aniversário da transferência do território para a administração de Pequim. A presença do Presidente - que nunca visitou Hong Kong enquanto chefe de Estado - é um sinal de como o desenvolvimento da região está a ganhar importância para a liderança chinesa. A expansão económica é sentida pela população de Macau como uma das grandes mudanças destes cinco anos.
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Pequim viu em Macau uma "galinha de ovos de ouro", que embora sem as dimensões da vizinha Hong Kong, poderá trazer benefícios ao Governo central. Em 2003 começou a emitir vistos individuais aos cidadãos chineses para ajudar as duas regiões especiais a recuperarem da crise provocada pela pneumonia atípica. E, actualmente, a maioria dos visitantes de Macau vêm da China continental, dispostos a deixar somas avultadas nas mesas de jogo.
O pequeno território - que é também um dos mais densamente povoados do mundo - recebeu mais de 15 milhões de visitas durante este ano. A população ressente-se.
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Onde fica Putaoya?
Portugal abriu a sua primeira embaixada na China no século XVI, mas há 30 anos, quando Pequim exigiu Macau, já não sabíamos falar com os chineses.
7 de Abril de 2017, 7:21 Partilhar notícia
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Em Março de 1979, depois de décadas de relações cortadas, o jovem diplomata João de Deus Ramos chegou a Pequim para abrir a primeira embaixada de Portugal na China desde 1949.
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Foi recebido no aeroporto por dois funcionários do Waijiaobu, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, que puseram à sua disposição dois intérpretes, um motorista e um carro cinzento de fabrico nacional. Foi nele que o encarregado de negócios foi até à cidade. Hoje, este é um percurso que se faz numa auto-estrada com várias faixas e portagens. “Em 1979, era uma estrada estreita, com muito poucos automóveis, alguns autocarros, bicicletas e carroças”, conta João de Deus Ramos no seu livro Em Torno da China — Memórias Diplomáticas (Caleidoscópio, 2016). Instalado no Hotel Pequim, o diplomata montou a “residência” numa suite e a “chancelaria” num quarto ao lado.
No dia seguinte, enviou o clássico telegrama a comunicar às Necessidades que cumprira a primeira missão. Não havia dúvida sobre o que escrever. João de Deus Ramos tinha 37 anos, mas desde o 25 de Abril vira várias novas missões serem abertas. “O texto era sempre o mesmo.” No seu caso, era isto: “Cheguei ontem Pequim e abri embaixada. Ramos.”
Simples? Não em 1979. A “máquina dos telegramas” que levara era “moderna, electrónica e a última palavra em termos criptográficos, uma malinha preta de onde saíam umas fitas de papel com o texto do telegrama”. Antes de partir, passara vários dias na Cifra, no MNE, para aprender como funcionava. Mas ninguém se lembrou de um pormenor: as fichas portuguesas não encaixavam nas tomadas chinesas. Aflito no seu quarto do Hotel Pequim, mas capaz de uma razoável ginástica eléctrica, João de Deus Ramos conseguiu mudar a ficha e escrever a mensagem na fita. Ultrapassado o primeiro susto, na manhã seguinte à sua chegada e com tudo pronto, João de Deus Ramos foi finalmente aos correios enviar o primeiro telegrama para Lisboa.
Bastava agora passar o conteúdo da fita para um impresso dos correios, coisa que o futuro embaixador fez numa sala cheia de jornalistas estrangeiros. O tradutor foi ao balcão e explicou ao que iam. Queriam enviar um telegrama para Putaoya, Portugal.
E foi aí que surgiu o segundo problema, que também ninguém antecipara. Desabituados ao nome — há 30 anos que não se ouvia falar de Putaoya na China e muito tinha acontecido nesses anos, a começar pela Revolução Cultural —, o funcionário dos correios não sabia de que país estava aquele chinês a falar. O intérprete teve de repetir a palavra várias vezes. Putaoya! Putaoya! O telegrama acabou por ser aceite, o diplomata pagou e voltou para o hotel “com a noção do primeiro dever cumprido”, escreve nas suas memórias. “Outros telegramas se seguiram nos dias seguintes e após o envio do n.º 6 ou n.º 7, vem de Lisboa uma mensagem a dizer que não tinham recebido os anteriores.”
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