Primeira Dama do Pequeno País Insular
Circula um comentário da antiga Primeira Dama de Cabo Verde, de origem moçambicana, que tem gerado alguma celeúma nas redes sociais mozes. Nele, ela afirma que a “tocha da unidade”, transmitida entre os presidentes da Frelimo no Estádio da Machava, é, na verdade, a chama de uma “continuidade de opressão, incompetência, corrupção”, e chega a pedir publicamente que o novo presidente, Daniel Chapo, “peça desculpas ao povo moçambicano por 50 anos de desgoverno”. A indignação é legítima. Há, de facto, muito a criticar na trajectória pós-colonial do país, sobretudo no que diz respeito à persistência de desigualdades sociais, à fragilidade das instituições democráticas e à apropriação excessiva da independência por parte de uma única força política. No entanto, como o comentário é construído levanta questões importantes sobre a responsabilidade analítica de figuras públicas e o papel do discurso na vida política.
Antes de tudo, é necessário alertar para algumas falácias lógicas presentes nessa mensagem curta. Para já, faz uma generalização apressada quando reduz cinquenta anos de história a um único diagnóstico, nomeadamente desgoverno total. Esta afirmação ignora os avanços registados (que incluem a existência dum número elevado de moçambicanos que dispõem, apesar de tudo, de formação suficiente para reconhecerem o sentido que o comentário faz – ou para discordarem com conhecimento de causa), a complexidade das conjunturas (guerra civil, ajustamentos estruturais, ciclones, terrorismo), e a pluralidade de actores e momentos que moldaram o país.
Há também a falácia da falsa causalidade que ocorre quando ela atribui a responsabilidade integral da pobreza, analfabetismo e corrupção a quatro indivíduos (os presidentes da Frelimo), como se o funcionamento do Estado e da sociedade moçambicana fosse uma consequência directa e linear da vontade pessoal de cada um deles. A trajectória política nobre do pai, que foi também marcada por alianças bem feitas e mal feitas, documenta a complexidade das coisas. Finalmente, o comentário recorre ao apelo à emoção na evocação da “chama que mata a esperança dos jovens”. Parece querer comover, mais do que compreender. Embora o recurso à metáfora possa ter força retórica, pode fomentar ressentimento e desresponsabilização colectiva onde, quer a gente queira, quer não, somos todos responsáveis porque a independência só se torna independência quando nós que dela devemos beneficiar a cobramos. 
Em várias palestras que dei nos últimos dias sobre os 50 anos de independência, tenho insistido sobre esta questão: nós temos que merecer a independência e fazemos isso através do exercício responsável de cidadania. Se volvidos 50 anos continuamos a dizer que a independência é um fiasco devido a dois idosos, um desgraçado que nunca devia ter sido presidente e alguém escolhido aleatoriamente, então não vejo como podemos merecer a independência. E se dissermos que eles comandam pessoas que matam ou perseguem, pior ainda, pois esses mesmos que matam também tiveram a audácia do sacrifício. 
Num ambiente político já polarizado, comentários desta natureza, ainda que bem intencionados, podem contribuir para o acaloramento das emoções sem promover o esclarecimento. E figuras públicas como uma ex-Primeira Dama dum país irmão, com legitimidade própria e voz respeitada, têm um papel acrescido na elevação do debate, não na sua inflamação. É precisamente este o ponto mais delicado. A independência é um empreendimento colectivo, e não um fracasso alheio. A narrativa segundo a qual “eles” destruíram o país pode ser satisfatória para o desabafo, mas é politicamente improdutiva e eticamente problemática. Ela exime os restantes moçambicanos (elites opositoras, sociedade civil, empresários, cidadãos comuns) da sua quota de responsabilidade. Como cidadãos, não somos apenas vítimas ou espectadores da história, mas também protagonistas do presente.
Dito isto, não se deve deixar de reconhecer o erro grave da Frelimo ao particularizar a independência como sua obra exclusiva. Neste aspecto, as celebrações foram um verdadeiro fiasco político. Faltou imaginação a todos os níveis. A transmissão simbólica da tocha entre presidentes do mesmo partido tende a reforçar a ideia de que Moçambique foi conquistado por uma organização, e não por um povo. Esse gesto, em vez de unir, exclui e alimenta ressentimentos, sobretudo entre aqueles que sempre viveram a Frelimo como poder dominante.
Contudo, há uma diferença entre criticar a instrumentalização do passado e reescrever esse passado com as cores da indignação pessoal. Sentir-se vítima não basta para o ser, tenho dito isso. A história de Moçambique – como, aliás, a de qualquer país – é feita de contradições, de conquistas e de fracassos. Saber habitá-las com lucidez é o que distingue a crítica constructiva da retórica oportunista. O futuro do nosso país não será construído com sarcasmo nem com indignação solitária, mas com capacidade de compreender o passado de forma crítica e responsável. E isso implica reconhecer culpas, sim, mas também reconhecer as responsabilidades que nos cabem a todos.
Por fim, um apelo a todos os que se sentem tentados a ver substância no comentário apenas porque concordam com o seu conteúdo: ter razão numa indignação não é o mesmo que ter razão numa análise. Numa altura em que o debate público é muitas vezes dominado pela fúria das opiniões, é essencial distinguir entre juízo de valor e análise séria, outra coisa na qual tenho insistido ao longo dos anos. A crítica pode ser justa e ainda assim mal formulada. Ela pode estar moralmente certa e ser intelectualmente frágil. 
Conhecer conceitos não é saber usá-los. É por isso que vale, aqui mais do que nunca, um princípio que costumo repetir: sempre que tivermos a certeza de que sabemos alguma coisa, o mais prudente é perguntar-nos o que ainda precisamos de saber – e não sabemos – para termos a certeza de que aquilo em que acreditamos realmente faz sentido. Um ambiente político são precisa de cidadãos exigentes, e a exigência começa por nós mesmos.
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