Manifestações em que sentido?
Outra coisa que faz com que intelectuais fiquem de repente burros quando a tirania da razão está na mó de cima é a sua preocupação com conceitos. Conceitos são a sua principal ferramenta de trabalho. Sem eles, os intelectuais não conseguem trabalhar. Com eles, mas sem precisão, também não conseguem. Conceito é nome pomposo para palavras com sentido e teor descritivo, mas podem ser usadas no dia a dia, portanto, discursivamente, ou na ciência, isto é, analíticamente. No dia a dia, podemos prescindir da precisão até quando a ambiguidade impede uma melhor comunicação. Na ciência, não é aconselhável partir do princípio de que o sentido discursivo serve para um trabalho essencialmente analítico.
Uma palavra que nos desafia neste momento é “manifestação”. No dia a dia, ela significa exprimir alguma coisa e no contexto da política significa protesto. Na sociologia política ela faz parte do conceito geral de protesto e ocupa esse espaço com várias outras coisas como, por exemplo, abaixo-assinados, ocupações de espaços, cartazes espalhados em espaços públicos, etc. Dá para trabalhar com esse sentido de manifestação até um certo ponto. Quando, contudo, queremos ser mais precisos na análise, talvez seja prudente definir melhor o conceito. A definição não é estipulativa como no diccionário. É nem é ao sabor das nossas preferências individuais. É em referência à teoria, portanto, ao acervo de conhecimento já existente.
Neste sentido, o contexto teórico dentro do qual se procura por uma melhor definição do conceito de manifestação é o que diz respeito à democracia. Agora, uma coisa que é preciso ter em conta quando se fala de democracia é que ela tem duas vertentes.
Uma é processual. Ajuda uma sociedade a tomar decisões num contexto em que se reconhece a diferença de opiniões. Este é o seu forte. As decisões tomadas desta maneira não reflectem necessariamente a verdade das coisas. Reflectem os compromissos possíveis ou a correlação de forças dentro duma sociedade. Quem ganha eleições, por exemplo – se forem livres e justas, claro – não pode andar aí na rua a dizer que ganhou porque o seu programa é o que está mais próximo da verdade. É o que passou pelo crivo processual democrático, nomeadamente a regra da maioria como tiver sido definida no sistema político.
A outra vertente da democracia é que ela acontece sob o pano de fundo de protecção de certos valores, os mais importantes dos quais são os direitos fundamentais dos cidadãos. Estes são considerados em maior ou menor grau inalienáveis, dependendo da perspectiva política. Quando manifestações ocorrem numa democracia o objectivo é de exigir o respeito por estes direitos.
Não é porque alguém não levou a melhor na vertente processual. Por exemplo, se eu acho que é imperioso proteger o meio-ambiente e consigo pela via democrática que se accione um mecanismo decisor – eleger um partido ecológico, realizar um referendo, influenciar legisladores a prestarem maior atenção a essas questões entre outros – mas o resultado é-me desfavorável, se eu for à rua fazer manifestação contra o resultado, ela não será democrática.
A razão é simples, mas de extrema importância para a reflexão que estou a fazer. Ela redifiniria a democracia como um sistema político que decide matérias de facto, portanto, procura estabelecer a verdade.
Há, contudo, um contexto em que esta limitação fica tremida. No nosso caso em Moçambique temos uma situação em que a manifestação é usada para estabelecer a “verdade eleitoral”. Tendo em conta o descrédito em que caíram as instituições, isso faz muito sentido. Só que aqui surge teoricamente uma nova situação, aliás, reconhecida pelos que se dizem se manifestar. Já que não aceitam o resultado eleitoral – pelas razões sobejamente conhecidas – ao se manifestarem pela “reposição da verdade eleitoral”, essas pessoas tacitamente deixaram de reconhecer o sistema político. Não é por acaso que algumas delas falam de “revolução”.
Se a manifestação tem como objectivo a mudança (violenta ou não) da ordem política, ela deixa de ser manifestação e passa a ser outra coisa, a saber declaração de guerra ao Estado, guerra civil, tentativa de golpe de estado, tudo menos manifestação a não ser no sentido discursivo do termo. E a forma como as manifestações têm sido feitas consubstancia essa situação.
Os manifestantes declararam um estado de emergência informal em que os direitos fundamentais dos cidadãos foram suspensos. Esses direitos incluem a livre circulação, a liberdade de expressão, o acesso aos cuidados médicos, a protecção do bem público, etc. E o curioso no meio de tudo isto é que embora rejeitando a ordem constitucional, os manifestantes esperam ser socorridos por aqueles que velam pelo Estado de direito, nomeadamente os advogados que se desdobram – muitas vezes a risco próprio – na libertação de manifestantes detidos. Estritamente falando, estes manifestantes não são manifestantes. São “combatentes” pela liberdade e como tal, estão realmente em conflito com a lei.
Não estou a escrever isto para deslegitimar o protesto, nem para chancelar uma suposta fraude. Escrevo para trazer à superfície um equívoco no centro destas manifestações que levantam em mim muitas dúvidas sobre se elas vão conduzir o País à situação melhor que todos queremos. O nosso País não precisa nem dum novo Messias – embora não me queira meter com quem, individualmente, precise disso – nem de novos tiranos que cada vez mais estão parecidos com a Frelimo que detestam. Precisa de gente que luta por uma sociedade política melhor na base dos próprios princípios da democracia. Um desses princípios é a sacralidade dos direitos fundamentais e o respeito pelas instituições por muito deficientes que sejam.
Entre reforma e revolução sempre preferirei a reforma, leve o tempo que levar. Fala-se muito dos Madgerman que protestam há anos sem sucesso. Isso é verdade. Mas o que não se diz a respeito deles é que nenhum partido da oposição, nenhum grupo da sociedade civil se juntou a eles nessa luta, nenhum deputado levou o assunto ao parlamento, nada. Existem excepções, claro, mas pouco expressivas.
Eu faço parte dum grupo na Alemanha que se ocupa com a questão e em algum momento até trabalhamos com o líder do PODEMOS que se juntou a nós também pelo facto de ter frequentado a escola na Alemanha. Isto é, aquilo que nós consideramos impossível de mudar (reformar) é muitas vezes o reflexo da ineficácia do nosso próprio exercício de cidadania.
Mas já sabem, intelectual que não luta pela verdade eleitoral não é um verdadeiro intelectual!
Todas as reações:
78Tu, Rildo Rafael, Ricardo Santos e a 75 outras pessoas8 comentários
10 partilhas
Gosto
Comentar
Enviar
Partilhar
Mais relevantes
José Pinhão
Será que a verdade eleitoral é menos importante que as outras verdades?
Será que se justifica buscar muitas verdades para se manter a mentira?
A revolução poder ser só ainda um desejo mas quanto mais (e muitos) a desejar mais ela se pode concretizar.
- Gosto
- Responder
8
Bernhard Guttsche
Caro Elisio. Você viveu em países democráticos durante muitos anos. Aí foi capaz a usufruir das vantagens da democracia. Vivo na Alemanha. A democracia está a virar-se aqui porque os partidos extremistas estão a ganhar cada vez mais influência entre a população. Portanto, tenho duas perguntas: 1. Você acha que o povo de Moçambique já está pronto para viver numa democracia? (p.Ex. como a da Suica)
2. O que faz a verdadeira democracia quando é manipulada por certas forças? (Estou a pensar aqui na Show de campanha eleitoral e nas promessas de Trump nos EUA, antes das eleições)
- Gosto
- Responder
- Editado
7
N'tini Kwango Baule
Bernhard Guttsche, na verdade eu sempre tive esta dúvida em relação a moçambicanos que vivem em países considerados democráticos, mas que se posicionam contra alternância democrática nos seus próprios países de origem. É verdade que cada um tem suas opções, mas no caso de moçambicanos na Diáspora está a ser um caso notável....muitos deles transmitem a impressão de que ossistemas democráticos dos países onde vivem não são uma boa ideia para africanos. Me parece haver qualquer desencanto nesses sistemas...minha opinião (não me apedrejem) ...
- Gosto
- Responder
- Editado
2
Elisio Macamo
Bernhard Guttsche, meu caro, obrigado. é claro que estamos prontos para a democracia. temos que assumi-la exercendo cidadania. em nenhuma parte do mundo se espera até o povo estar pronto. o povo tem que ficar pronto. segundo, a democracia é sempre frágil. ninguém pode dizer que agora sou democrático e lavar as mãos. vocês estão a ver isso na alemanha. a manipulação sempre existiu e por essa razão é preciso não perder de vista os valores centrais. não se constroi a democracia atentando contra os direitos fundamentais das pessoas e minando a confiança nas instituições a não ser que o objectivo não seja a democracia.
- Gosto
- Responder
11
Nomis Erudam
Obrigado, Professor.
- Gosto
- Responder
Bernhard Guttsche
Elisio Macamo Caro Elisio! No contexto da democracia ocidental e da democracia em Moçambique, lembro-me de uma eleição em Outubro de 1986 em Nampula. Naquela altura tratava-se da eleição de representantes para a Câmara Municipal de Nampula. Foram 27 candidatos. Em cerca de 9 horas, todos os candidatos foram entrevistados detalhadamente por cerca de 3.500 pessoas. No final, apenas 22 candidatos foram eleitos. Por exemplo, um jovem candidato queria ser eleito para o departamento de juventude da cidade. Ele não foi eleito porque um vizinho roubou uma galinha. Quando esta história foi contada na Alemanha, todos riram e disseram que não era uma democracia. Penso que esta forma é mais democrática do que qualquer democracia no Ocidente.
- Gosto
- Responder
Elisio Macamo
Bernhard, bonito exemplo para uma época para todos os efeitos ditatorial. não era democracia de moçambique. era o marxismo em prática. sabes, no fundo, o teu argumento acaba sendo de que os moçambicanos, por serem moçambicanos, não servem para a democracia “ocidental”. com isso acabas querendo dizer que aqueles que lutam pela democracia em moçambique estão enganados. o melhor sistema político para nós é a autocracia… eu acredito na democracia em moçambique!
- Gosto
- Responder
2
José Pinhão
Imaginem se os militares em Portugal não tivessem desrespeitado as instituições em 25 de Abril de 1974! Ou se o regime se tivesse oposto à revolução, até hoje talvez estivessemos à espera de reformas...
Sem comentários:
Enviar um comentário