Desconheço quem seja Vladimir Pliassov. Desconheço se é um mero expoente de literatura russa em solo português ou um elemento encoberto do Kremlin destinado a subverter a opinião pública em relação à Guerra na Ucrânia. Desconheço se nas suas aulas explicava os contornos do existencialismo de Dostoievski ou se realizava propaganda do regime russo.

Nem esses aspetos me importam agora. A consternação que este novel escândalo na Universidade de Coimbra me causa não se prende com a eventualidade de termos um propagandista russo nos bancos da faculdade, mas de esse juízo ter sido tomado sem o próprio visado exercer qualquer direito de defesa ou, sequer, sem haver qualquer tipo de precisão e concretização dos factos que lhe foram imputados. Abstraindo-me de qualquer busca em torno da verdade dos factos ou sequer de argumentar se a propaganda pró-Kremlin encontra ou não respaldo na liberdade de expressão constitucionalmente consagrada, o que este triste episódio da academia nos revela é a fragilidade dos nossos valores em cenários de crise, para a qual devemos estar sempre em alerta.

Ou mantemo-nos fiéis aos valores humanistas (para não usar um termo historicamente mais adequado, mas que fará de mim um polemicista: cristãos) que norteiam a nossa civilização liberal e democrática ou então degeneramos naquilo que afirmamos querer combater.

A emergência civilizacional gerada pelo conflito militar na Ucrânia não pode servir de mote para abdicarmos dos nossos princípios éticos e civilizacionais; ou para, em nome do “lado certo da História”, reemergirmos o pior que há no chauvinismo e no jingoísmo e do qual fomos todos vítimas há pouco menos de um século atrás. Combater o regime putinista passa igualmente por conservar a nossa bússola moral e por não cedermos à sensual tentação de prevalecermos dos mesmos meios antidemocráticos que afirmamos vitimar o povo russo.

O art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, assegura os direitos de defesa e de contraditório do arguido em qualquer processo de natureza sancionatória. Abrange-se aqui qualquer tipo de procedimento disciplinar, haja ou não um vínculo laboral em vigor. Aliás, faz parte do panteão de um Estado de Direito democrático que qualquer pessoa acusada de um facto torpe ou censurável tem o direito de se defender do mesmo, apresentando as suas razões e provas.

A Universidade de Coimbra, tomando uma decisão unilateral e despótica, sem qualquer contraditório prévio do próprio visado, atuou frontalmente contra os princípios instituídos na nossa Lei Fundamental. O Senhor Reitor decidiu sobre a vida alheia sem qualquer garantia de defesa, sem qualquer transparência e equidistância na condução do processo e sem qualquer indícios de democraticidade. Muito se lamenta que a Universidade de Coimbra, um farol histórico da luta contra o obscurantismo e a opressão, tenha abdicado dos seus princípios fundacionais.

Por estas e outras razões, 2023 está verdadeiramente a ser o annus horribilis da academia conimbricense.